O Grande Palco da Vida - Live escrita por Celso Innocente
Terça-feira, dez de Janeiro, no início da noite, estava por acaso assistindo a um programa de fofocas pela televisão, quando o apresentador anunciou:
“— Garoto cantor Regis Moura decide abandonar a carreira. É isso. Em nota ainda não oficial, pessoas ligadas a Regis Moura alegam que o menino decidiu abandonar a carreira de cantor. Tudo começou depois do sequestro pelo qual o menino passou há quase um ano, com objetivo de extorquir dinheiro e a cruel tentativa de homicídio; caso esse que resultou pela família na demissão de seu empresário, alegando irresponsabilidade do mesmo; atitude essa que o menino não aprova e em protesto decide abandonar definitivamente a carreira… Eu tentei falar com o próprio Regis, ou alguém de sua família, mas nenhum deles quisera falar sobre o assunto. Regis não disse nada e a família disse que não há nada decidido. Tentamos falar com o ex-empresário, mas ele também está ausente da capital. Vamos esperar pra ver o que acontece”.
O apresentador ainda deu sua opinião:
“— Concordo plenamente com Regis, não no sentido de abandonar a carreira, pois seria uma grande perda pra nossa música popular; mas duvido que tenha havido irresponsabilidades do empresário sobre o fato do sequestro. Sequestro é sequestro e ninguém quer! Bandido é bandido e não espera atitudes irresponsáveis para capturar uma vítima! Se houve irresponsabilidade de alguém, prefiro dizer que é de seus próprios pais, pois se tinha o empresário como responsável pelo menino, é porque confiavam nele! Ninguém dá um filho pra alguém cuidar se não confia! Tenho certeza de que deveria existir um documento judicial autorizando o empresário a viajar com o menino! Vem depois de um fato triste como ocorreu jogar a culpa em quem menos deve! Sinto muito, mas analise melhor os fatos. Será que o tal empresário também não sofreu e ainda sofre com o triste episódio do cruel sequestro? Parabéns Regis, por sua atitude humana! Mas não abandone sua linda carreira não, tá? Sua atitude de protesto já é muito louvável.”.
Às dez horas da manhã seguinte eu já estava em sua casa. Fui recepcionado na sala pelo senhor Pedro. Após cumprimentá-lo, lhe perguntei:
— E Regis?
— Está no quarto, estudando.
— Vi ontem na televisão um fato que me deixou preocupado. O que há de verdade?
— Não sei!
— De fato, o senhor não se preocupa se Regis abandonar a carreira pela qual tanto lutou?
— Claro que me preocupo! Não tenho nada contra você! Não sou o monstro que todos estão imaginando! Quero você trabalhando com Regis, mas aqui em São Paulo! Não quero você com ele na estrada, não é porque eu acho que você seja o culpado do que aconteceu a ele! É que você não serve pra cuidar dele! Por quê? Você é mau? Não! Pelo contrário, você é criança igual a ele e não impõe respeito! Ele faz de você o que quer!
— Até o dia do sequestro, não havia nenhuma barreira entre estes fatos! Deixe-me trabalhar com Regis. É tudo o que mais quero!
— Na estrada, fica fora de cogitação!
— Trabalho com ele pela metade do salário.
— Pago o dobro do que você ganhava pra ficar aqui em São Paulo!
— Ele já vai fazer treze anos! Vai me apoiar mais. Não é mais tão criança!
— Não o proíbo de serem amigos! Ao contrário! Apoio muito! Sei o quanto ele te adora! Quer ir vê-lo? Ele está no quarto.
Fui até seu quarto; ele estava de joelhos próximo à cama, escrevendo em um caderno.
— Regis! — chamei-o.
Ao me ver, balbuciou de um jeito muito engraçado:
— Oh, owh...!
Deixou o caderno, levantou-se e me abraçou sorrindo.
— O que veio fazer? — perguntou-me, sentando-se na cama.
— Vi algo na televisão ontem que me deixou preocupado — sentei-me a seu lado.
— Sei! Tenho três parâmetros comigo, que ouvi em uma mensagem de um pastor evangélico (Silas Malafáia da Igreja Evangélica Assembleia de Deus do Rio de Janeiro) e vou seguir à risca. “O que eu sou, o que eu tenho e o que eu faço é pra Deus”. No entanto, se o que eu faço não está sendo do agrado de Deus, é melhor abandonar.
— O que você faz é pra Deus, Regis! Suas músicas não falam besteira! Pelo contrário, são mensagens de meditação e fé. O que você tem é pra Deus! Você reparte o que ganha com pessoas necessitadas sem que ninguém precise ficar sabendo disso! Lembra do que você disse sobre a mão esquerda não ver o que a direita faz de bem!? O que você é, também é de Deus! Nunca vi um menino mais puro de coração como você!
— Se o que eu faço não agrada a minha casa, como pode agradar a Deus?
— Nem tudo o que agrada a Deus agrada aos homens! Isso também está na Bíblia!
— Não consigo me aceitar sendo injusto. Sei que você está triste por não trabalhar conosco.
— Já lhe disse várias vezes, você não está sendo injusto comigo! Seu pai pode ser que esteja, mas você jamais! A homenagem que você me presta nos shows paga tudo o que fizemos juntos! Se você abandonar a carreira, aí sim ficarei muito triste; pois sei que estará abandonando aquilo que mais gosta! Aquilo que conquistamos juntos!
— Não sei o que fazer!
— Você tem toda razão... estou muito triste em não trabalharmos mais juntos. Tem dia que começo a pensar e até me revolto. Às vezes fico em minha casa sem ter o que fazer e imagino procurando outro menininho de seis anos pra começar tudo de novo...
— Será que não sentirei ciúmes, de você criando outro menininho?
— Não farei isso! — neguei com leve sorriso. — Só imagino!
— Estou confuso.
— Sinto tanto ter perdido você! É como um filho que a gente espera voltar pra casa mas nunca volta. Ainda ontem ouvi uma frase em um filme na tevê que dizia assim “Tire o filho de um homem e ele não terá mais nada a perder” (filme Zumbilândia).
Olhou-me sério e percebeu meus olhos cheio de lágrimas.
— Que isso, Willian! Homem não chora!
— Não? Quem lhe disse?
— Eu choro às vezes. Mas ainda sou pré-adolescente.
— Então meu filho pré-adolescente, faça o seguinte, tire uns dias de folga e vamos juntos pra São João. Você vai visitar seus parentes e amigos. Lá você tem primos que nunca viu!
— Não poderei! Tenho uma agenda de shows marcada, que mesmo que resolver abandonar a carreira tenho que cumprir. Começa neste final de semana.
— Concordo plenamente. Pense bem, por mim e por você. Não abandone aquilo que você tanto batalhou! Conheço seu coração, carinha! Você jamais me desapontará!
— Tudo bem! — calou-se por um instante, depois pediu. — Você escreve uma música pra mim?
— Que música?
— Gostaria de prestar em meus shows, uma homenagem cantada a você, mas eu não sei compor! Havia pedido a seu amigo José Fernandes pra fazer isso. Na mesma hora, ele abriu a gaveta e me entregou aquela que cantei em São João e disse, está pronta. A música é realmente linda e foi mesmo feita pra você, mas ainda não é a minha homenagem.
— Entendi! — sorri. — Eu mesmo escrevo uma música de homenagem pra mim?
— Prometo cantar em todos os shows! Mesmo que não esteja gravada em disco.
— É o seguinte, você já vai fazer treze anos! Toca violão! Compor é mais fácil pra ti do que pra mim! Tente e verás!
— Nunca compus uma canção.
— Pois bem, pegue o violão e sente-se aqui na cama. Vamos começar sua primeira canção!
Ele tomou o violão entre os braços, sentou-se na cama, afinou-o graciosamente, depois insinuou:
— E agora?
— Rabisque os dedos nas cordas, imagine a canção, tire a música e criamos a letra. Já temos o tema, homenagem a este cara aqui!
Ponteou algumas notas musicais, mas como não achou facilidade, me pediu:
— Me de uma frase!
— Meu amigo... Eu recordo com saudade — cantei desafinado como sempre “sou”.
Ele continuou no violão e depois cantou:
— Meu amigo... Eu recordo com saudade... Nossa felicidade...
Com sua voz bonita a canção soa diferente.
— Como flor desabrochou — continuei.
— Querido amigo, eu era só uma criança — emendou ele.
— Mas tinha alguma esperança... — cantei com minha voz desafinada.
— De um dia ser um cantor!
Permaneci o dia todo em sua casa. Trabalhamos mais algum tempo na criação desta canção, onde, embora fosse difícil, mas com ele no violão, parecia mais fácil e apesar de não sairmos da primeira estrofe, pelo menos teríamos dado um passo, criando pelo menos a melodia.
Só retornei para São João no início da noite, com a promessa de que ele continuaria sendo artista.
No dia seguinte continuei a escrever a tal canção, que deveria se intitular “Homenagem” e embora parecesse fácil compor uma música e apesar de já ter a primeira parte praticamente pronta, não estava conseguindo criar nada bonito. Para mim, escrever uma canção não era muito fácil, pois como não sabia tocar qualquer instrumento musical, ficava difícil criar a nota musical própria para a canção e com isto, demorei três dias para criar uma que talvez fosse a que Regis queria, então pensei em enviar-lhe pelos correios, mas acabei mesmo telefonando a ele e ditando a letra, que ele escreveu e então apenas confirmei o primeiro tom, que ele já sabia e assim ele cantou uma parte dela, com sua voz bonita de criança, pré-adolescente. Era isso mesmo: a música ficaria linda em sua voz afinadinha, de “Canarinho da Cidade”.
Em onze de Maio de um mil novecentos e oitenta e quatro, sexta feira, iniciado as nove e findado as vinte e três horas, comigo presente, como espectador, onde, embora o promotor de acusação quisesse ouvir Regis, porém, a pedido do próprio menino, que não queria confrontar seus opressores, o magistrado determinou desnecessário e inclusive, aceitando como parte de provas, as fotografias feitas durante cativeiro, o tribunal do júri, formado por sete jurados, sendo cinco homens e duas mulheres, entre empresários, estudantes e operários, condenou José Renato, por sequestro, cárcere privado (artigo 148, parágrafo primeiro), constrangimento ilegal (artigo 146, parágrafo primeiro), tortura e formação de quadrilha, a pena de dezoito anos de reclusão; Laura e Paulo, pelos mesmos crimes, com a agravante de abuso de vulnerável (artigo 217a) há vinte e quatro anos e a Luís Marcos, por sequestro, cárcere privado, tortura, formação de quadrilha (artigo121) e tentativa de homicídio sem chance de defesa (artigo 17), ao menor Regis de Assis Moura, a vinte e nove anos de reclusão; todos em regime fechado.
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Em uma tarde de domingo, tentando encontrar alguma coisa de interesse na televisão em canal aberto, me deparei com Regis se apresentando em um dos programas de auditório. Como o programa já havia começado, ele já teria cantado pelo menos uma música e naquele momento estava sendo entrevistado:
— As crianças e adolescentes sempre tomam seus artistas como exemplo — afirmou o apresentador. — Por exemplo, no modo de se vestir, pentear... O que você acha disso?
— Acho que o artista, não só o brasileiro; precisa aprender a se vestir bem... se pentear bem... a se portar muito bem! Já que ele serve de espelho a seus seguidores.
— Regis Moura também é um espelho a seus fãs?
— Gosto de ver quando as crianças usam o mesmo penteado que eu uso! Roupas não digo, pois procuro me vestir de um jeito muito simples. Mas sei que tenho entre meus amigos muitos sósias!
— Os amigos que você sempre diz são os fãs? Você disse em uma de suas apresentações que você não tem fãs e sim amigos! Que você não gosta de ser ídolo!
— Não! Sou uma pessoa comum. Sou muito querido por ter tido o privilégio de desfrutar de uma carreira pública. A carreira que sempre foi meu sonho e me considero feliz com ela. Mas quanto a ser ídolo... Prefiro seguir os caminhos que me levam a Deus!
— Mas é um herói nacional? — insistiu o apresentador.
— Por que sou um herói? O que fiz pra merecer tal honra?
— Você passou por uma situação... Dramática! Você leva mensagens de amor e esperança às pessoas através de suas músicas...
— Herói é o médico, que às vezes durante a madrugada, deixa em casa seu filho doente pra salvar o filho de um desconhecido! Herói é o soldado do corpo de bombeiros, que muitas vezes esquece sua própria vida, enfrentando um inferno em chamas pra conseguir salvas tantas vidas desconhecidas! Herói é o pai de família, que sai de casa de madrugada, levando uma pequena marmita com apenas arroz, feijão e ovo frito, indo trabalhar na lavoura ganhando um salário irrisório, pra nunca deixar seu filho passar fome... Ele às vezes passa fome, mas o filho, nunca.
— E o que é o artista?
— O artista... Cantor, jogador de futebol... O escritor, animador de tevê... — deu leve sorriso pela ironia. — e todos desta categoria, é aquele seu amigo, que te transporta a um verdadeiro mundo de sonhos e fantasia. Digamos que ele vem a ser algo mágico! Mas quanto a receber título de herói!... Já vi sim, artista herói! E com uma ação tão insignificante pra ele, mas que representa tanto a outros!
— O quê?
— Já vi artista ser herói... De criança em estado de saúde terminal. Uma criança com câncer, era fã de um certo artista, famoso... Que por sinal é amigo meu e esta criança almejava conhecê-lo; esse artista foi fazer um show em sua cidade e foi visitá-la, depois à noite levou-a em seu show, mantendo-a em seu camarim e depois a colocando sobre o palco, como se estivesse cantando pra ela. O que custou em razão de dificuldades a este tal artista? Nada! Mas o que significou à esta criança? Magia... Julgo que este artista foi um grande herói, sem precisar ter feito tanto.
— E a criança? — especulou o apresentador.
Regis fez uma pausa e emendou em tom triste:
— Já foi pro Céu...
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