Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 34
Sanidade




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Eu podia ouvir sua valsa melancólica no piano de ali de fora. Havíamos voltado do cemitério há cerca de duas horas, e eu estava admirando o pôr do sol sentada na escada da saída de emergência do loft de Oli, enquanto ele tocava incessantemente. Confesso que estava repassando o que acabara de acontecer diversas vezes em minha mente, enquanto me questionava o que eu estava fazendo. Acontece que eu não sabia. Me levantei, o que fez a estrutura de metal ranger, e fui até ele, observando sua performance profunda e intensa. A partitura em sua frente repleta de tercinas era uma peça de Schubert, seu compositor favorito. Quando finalmente concluiu a valsa, se virou para mim.

–Precisa ir para casa? – Perguntou sereno.

Após uma pausa, respondi:

–Não sei na verdade. Ultimamente me sinto observada onde quer que eu vá por lá.

Oli deu um riso silencioso.

–Pois saiba que não é só lá, há desencarnados em toda a parte. É bom se acostumar com a ideia ou ignorá-la – disse ainda entre risinhos.

Bufei e sentei-me em sua cama, derramando uma série de reclamações:

–Leonard vive me atormentando por lá, não sei se conseguirei paz tão cedo. Estou tentando me acostumar, mas, não é justo sabe? Um vivo precisa de privacidade para recuperar o mínimo de sua sanidade, caso os mortos não saibam.

–Ah o clássico drama – uma voz atrás de mim irrompeu, o que me fez paralisar todos os músculos. – Em vida suportei Edward, na morte tenho que lidar com adolescentes dramáticos como você. Só pode ser carma.

Leonard estava sentado do outro lado da cama em sua postura impecável, atrás de mim. Oliver o fitava aparentemente tão perplexo quanto eu.

–Olá Wingfield – saudou Leonard, tirando a cartola em um gesto teatral.

Oli não respondeu verbalmente, apenas engoliu em seco e o cumprimentou com um gesto de cabeça. Toda aquela cautela não combinava muito com ele. Seria aquilo... Medo?

–Vejo que minha presença é muito querida por aqui, não é? – Disse se levantando, dando voltas pelo loft. – Que lugar organizado... ah, a boa e velha arte – comentou enquanto contemplava as reproduções de Van Gogh nas paredes.

Oliver o seguia com o olhar, em uma expressão indecifrável. Em um piscar de olhos, Leonard estava ao lado dele no piano.

–Vamos garoto, toque alguma coisa para mim.

E quando disse isso, as mãos de Oliver pareceram involuntariamente buscarem as teclas. Leonard fechou o punho e estreitou o olhar para ele, que imediatamente começou a tocar uma música um tanto quanto caótica e assombrada. Era como se fosse uma tentativa de transformar a Marcha Fúnebre em algo animado, obtendo um resultado assustador. Os nervos das mãos e dos pulsos de Oli se contraiam enquanto ele continuava tocando a valsa frenética de Leonard, que acompanhava tudo ainda de punho fechado ao lado do piano, com um olhar sádico.

–Pare com isso! – gritei.

–Calada! – Leonard me repreendeu quase que instantaneamente, esticando o outro braço com a bengala em suas mãos apontada para mim. - Essa é a melhor parte.

Oli deslizou as mãos no teclado indo da oitava mais alta até a mais baixa, e finalizou em um acorde grave dissonante.

–Bravo! – Aplaudiu Leonard, finalmente interrompendo aquela tortura.

Oli estava trêmulo e com as pupilas dilatadas, fazendo seus olhos parecerem negros. Ele se levantou e veio cambaleante em minha direção. Abracei seus ombros e o ajudei a deitar na cama.

–Oli, tá tudo bem? – Sussurrei.

–Agora vocês verão o que é uma boa performance – Leonard decretou sentando-se ao piano. Apoiou sua bengala na banqueta e começou a tocar algo enérgico que identifiquei sendo Beethoven.

–Tudo sim – Oli respondeu também aos sussurros, alongando as mãos e estalando os dedos.

–Como ele fez isso? – Perguntei.

–Algum truque idiota de possessão – respondeu cuspindo as palavras sussurradas.

–Mas isso funciona até com você? – Enfatizei a última palavra.

–J, acho que não lhe contei... Leonard também foi um Tenebris, e dos perigosos.

Provavelmente esbocei uma cara de espanto. Agora as coisas faziam mais sentido: isso explicava a força e dominância que ele parecia exercer sobre as coisas. Não podiam ser apenas brindes da mortalidade.

–Já contou sua historinha para ela, mago Merlin? – Interrompeu Leonard, materializando-se sentado em nosso lado. O piano continuava a tocar a valsa, agora sozinho.

–Por que está fazendo isso? – Oli perguntou entre os dentes.

–Você quem me possibilitou tudo isso, caro Wingfield – Leonard disse com um sorriso cínico. – Achou que era uma via de mão única? Vim só para refrescar sutilmente sua memória mortal de que eu ainda quero o que é meu.

–Não sei do que você está falando – respondeu Oliver esfregando o rosto com as mãos.

–É claro que não sabe. Mr. Wingfield, Ms. Dubrowsky, passar bem.

E dizendo isso Leonard se curvou, tirou a cartola em gesto de despedida desapareceu em frente aos nossos olhos. O piano cessou e o silêncio dominou o ambiente como se nada houvesse acontecido. Ficamos longos minutos em silêncio absorvendo tudo o que havíamos visto. Por fim, perguntei:

–Sobre o que ele estava falando?

–Leonard é totalmente louco, J. Totalmente louco – repetiu várias vezes com um olhar vago, quase que em estado de choque.

Soltei um riso amargo.

–O que foi? – Perguntou um pouco irritado.

–Sinceramente eu achava que você não tinha medo de nada – falei, com o sorriso morrendo em meus lábios.

–Acredite, estaria com medo também em meu lugar. Minhas “habilidades” – disse fazendo aspas com os dedos – parecem ineficazes quando se trata dele.

Ele colocou os cabelos para trás, e com as mãos na nuca fitou o teto por longos minutos.

–Acho que é melhor você ir agora, não estou sendo uma das melhores companhias – ele disse finalmente.

Não me opus. Ele me levou para casa em seu carro, e antes de eu descer meu deu um beijo suave na testa.

–Se cuide Johanna.

–Você também, Oli.

Já em meu quarto, deitei em minha cama e comecei a rabiscar no canto de um panfleto que haviam deixado no correio essa manhã. Uma música alta vinha abafada do quarto de Johnny no andar de baixo, o que era sinal de que ele estava aprontando algo que não deveria ser ouvido. Típico. Enquanto isso eu me encontrava em um enorme conflito – como se eu precisasse de mais um – em relação a confiar em Oliver. Ele havia prometido ser franco comigo, assim como esperava que eu fosse com ele. Mas as palavras de Leonard e a maneira que ele pareceu teme-lo me foram realmente estranhas nesta tarde, me fazendo questionar se ele escondia algo. E teve ainda aquele beijo... não, oprimi imediatamente o pensamento do beijo. Sempre soube que Oli queria algo a mais comigo desde o primeiro encontro, mas conforme nossa amizade cresceu, achei erroneamente que isso não importava mais tanto. E tinha Zac... por onde andaria Zac? Eu realmente sentia sua falta. Não me importa que estivesse vivo ou morto, mas eu havia me acostumado com sua presença. Sempre que ouvia um barulho na minha janela desde que ele desaparecera, instintivamente e secretamente eu desejava que fosse ele. Ao menos se ele me desse alguma explicação, alguma luz nisso tudo... tudo me parecia abstrato quando vinha de outros. Ele com certeza daria um jeito de tudo parecer absolutamente plausível e, arrisco até dizer, normal.

–Perdida em pensamentos, menina? – a sarcástica e tão conhecida voz irrompeu novamente.

–Vai ser assim para sempre agora? – perguntei exausta.

Leonard estava sentado no chão e encostado na parede. Se estivesse de roupas íntimas, sua pose poderia estampar outdoors de propaganda de cuecas.

–Não, não se preocupe – disse com olhar distante – É só que hoje estou me sentindo social. Vamos conversar. O que lhe atormenta os pensamentos?

–Zac – respondi.

A que ponto eu havia chegado. Desabafar com um fantasma.

–Ah, o maldito Walker. De fato, ele anda sumido mesmo.

–Sinto falta dele.

–Oh, pobre garota. Eu não aconselharia você à jogar sua âncora em um morto, minha querida. Podemos ser bem intensos ou instáveis, ainda mais quando você é um eterno jovem.

– Um eterno jovem... – repeti enquanto refletia.

–Já leu Peter Pan, de J. M. Barrie? É isso que acontece quando você é uma criança para sempre. Sua pouca sanidade se esvai por completo – disse rindo consigo mesmo.

–O que tem de demais em Peter Pan? – Questionei.

–Ora, pense um pouco: você recruta outros para serem praticamente seus servos, enquanto se torna um mimado egocêntrico e egoísta no seu mundinho do faz-de-conta. É claro que você já deve ter deduzido que nessa história ele e provavelmente todos os meninos perdidos estavam mortos. Ou você conhece outra maneira de não crescer?

Arqueei as sobrancelhas. Até que fazia sentido. Antes que eu o respondesse, meu celular vibrou exibindo uma mensagem.

–Argh. Tecnologia é uma grande destruidora de sentimentos e confiança – murmurou Leonard enquanto eu desbloqueava a tela e lia o conteúdo da mensagem.

Era Laurie, perguntando como eu estava e se poderíamos nos ver. Imediatamente respondi que sim, havia uma série de perguntas que eu precisava fazer a ela. E quando desliguei a tela do celular e olhei para frente de novo, Leonard já não estava mais lá.


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