Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 35
Família Castenmiller: Parte I




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No dia seguinte, pela manhã, combinei de encontrar Laurie na praça central da cidade. Ela deixaria de ir a aula – seria seu sacrifício – para me ver. Quando nos encontramos, ela era a mesma de sempre, mas parecia diferente. Talvez eu quem estivesse.

–Uau, olha só o seu cabelo! – Ela exclamou ao me ver, dando-me um abraço.

Laurie era levemente mais baixa do que eu, mas comparada às outras garotas, uma das únicas com praticamente minha altura. Notei isso quando não precisei me inclinar para lhe retribuir o abraço. Nós duas seguimos em direção ao bosque perto da praça, a mesma trilha por onde Oliver me levara um dia para conhecer a mais famosa cachoeira azul da cidade. Enquanto seguíamos bosque adentro, ela me disse que inventou uma desculpa de que eu estava doente para a diretoria, para que não começassem a planejar me reprovar por falta. Depois começou a me atualizar das histórias do Masefield, contando que Stan e Izzy estavam tendo um lance supostamente secreto sabe se lá há quanto tempo, e Nathan havia os flagrado na biblioteca, o que me fez rir. Ela tinha um semblante preocupado, embora sua seriedade habitual. Imaginei que estivesse brava comigo pela falta de explicações.

–Obrigada – eu disse, interrompendo-a em seu raro tagarelar. Ela se virou séria e estreitou os olhos, interrogativa.

–Obrigada por ter falado com a diretoria, e ter feito algo que nem eu mesma me preocupei em fazer – completei envergonhada, dando conta de minha irresponsabilidade.

–Estamos todos preocupados com você, J. Não vim te procurar antes pois imaginei que você precisava do seu tempo. Mas até quando? – Perguntou. Seu olhar tinha certa súplica implícita.

Comecei então a contar sobre tudo. As descobertas, as alucinações e inquietações, contei sobre meu quarto, minha casa, sobre Oliver, sobre tudo. Dessa vez lágrimas não escorreram, intrometidas, no meio da narrativa: eu estava finalmente mais forte. Ao final, Laurie que concordava com a cabeça atentamente fez uma longa pausa enquanto parecia refletir e me analisar, taciturna. Era como se ela já soubesse.

–E por onde anda Zac? – ela finalmente questionou.

De tudo que contei, não esperei que essa seria sua primeira pergunta.

–Eu não sei, ele simplesmente desapareceu desde o Halloween – disse sem esconder a angústia que isso me causava.

–Johanna, você é mais forte do que imaginávamos – ela disse.

Sem que eu percebesse, havíamos chegado na clareira da cachoeira. Nos sentamos nas pedras próximas ao lago que se formava, que estavam úmidas e me deram uma súbita sensação de frio. Tudo ali perto continha musgo.

–Não lhe escondemos por mal – Laurie começou. – Se bem que agora que você conhece a verdade, deve perceber como soaria estranho ou irracional contar a alguém. Mas é uma questão delicada, têm que se descobrir por si próprio.

–Oliver me contou algo sobre isso... – resmunguei.

–Você e Oliver parecem bem próximos ultimamente – disse quase que em desaprovação.

Antes que eu perguntasse o que havia de errado nisso, ela continuou sobre Zac:

–Desde o nosso primeiro contato, senti que havia algo de muito errado com ele. Bem, eu sinto coisas J, desencarnados causam uma grande impressão, acredite. Quando descobri fui tirar a limpo com Abby, até porque ela sempre foi do tipo inconstante e sensível para lidar com algo desse porte. Infelizmente esse é o tipo preferido dos ‘fantasmas’ – disse fazendo aspas com os dedos. – Ela então me contou que o encontrou na velha casa vitoriana quando foi pedir doces naquela noite, pois tinha visto movimento na casa. Abby sempre foi do tipo solitária que fazia essas coisas sozinha.

“Mas enfim, eu meio que servi de mediadora da situação, Abby estava apavorada tendo que guardar tudo dentro dela. Ela me contou muito pouco, mas disse ter descoberto o que ele era da pior maneira. Zac era, digamos, ainda mais difícil de se lidar. Ele parecia muito perdido e sem real consciência do que havia acontecido com ele. Acabou que ele estava tomando a vida dela para si mesmo, fazendo-a viver apenas para si. E o pior: com o consentimento dela. Ela estava perdidamente apaixonada por ele. Quando ela o apresentou para Oliver, eles formaram um trio inseparável, e eu fiquei em segundo plano os ajudando apenas pelos bastidores. Foi bom de certa forma, a presença dele nunca me fez bem. ”

–Você acha que Zac escolheu Abby? – Perguntei.

–Na verdade, Johanna, foi Abby quem escolheu Zac. Ela trocou sua vida pela dele, que já acabou faz tempo. Ela deixou seus amigos, colégio, tudo, para ser inteiramente dele. Mas os mortos não são lá muito confiáveis. Não que ele nunca tenha gostado dela, acredito que ele o fez e muito, mas ela era o que tinha, se é que me entende. Ele não teve opção. Ela foi sua salvação e seu caos, assim como ele foi para ela.

Refleti um pouco.

–E quando isso começou a dar errado?

–Bem, é só pensar um pouco – ela disse acendendo um cigarro. – Uma relação abusiva onde um faz o que bem entende e o outro, sufocado, se submete, não iria acabar bem de qualquer maneira. Mas demoraria, até lá geraria apenas sofrimento mútuo. Porém houve um fator determinante que apressou as coisas – ela fez uma pausa enigmática. - Uma garota se mudou para a velha casa vitoriana.

Arqueei as sobrancelhas, pega de surpresa.

–Ah, por favor Johanna, não dê uma de quem não sabia de nada – ela disse com um sorriso de malícia no rosto.

–Mas eu não sabia! – protestei, com um sorriso aflorando também em meus lábios contra minha vontade.

–Zac teve uma queda por você desde o primeiro momento, e Abby percebeu isso.

Senti uma sensação estranha, como se pingassem a cera quente de uma vela em meu sistema nervoso central. Era aquele tipo de coisa que só parece obvio quando outra pessoa fala, e não sua consciência, que quer que aquilo seja real e ao mesmo tempo reprime esse desejo.

–Começou com o pretexto de se aproximar de você para poder continuar frequentando a casa... mas dava para ver que não era apenas isso.

Senti meu rosto ficar quente lembrando dele surgindo pela minha janela, e pedindo para que eu não contasse a ninguém. Uma confusão de sentimentos aflorou dentro de mim, um misto de medo com um secreto lisonjeio.

–Isso são apenas especulações suas – falei cética, quase que para mim mesma.

–Bem, era a especulação geral – disse com um sorriso tímido. - O que importa é que Abby ficou com ciúmes, ela também havia se tornado muito possessiva. E isso começou a gerar conflitos entre os dois cada vez piores.

–Você sabe por onde anda Abby? – Perguntei lembrando-me subitamente de seu desaparecimento.

–Ninguém sabe – ela disse, olhando para o vazio – Devíamos fazer uma visita aos pais dela, eles devem estar precisando.

–Pais? Ela nunca me falou nada deles... nem sei onde ela mora – disse me dando conta do pouco que eu a conhecia.

Laurie me fitou por um longo tempo, mas não consegui decifrar o que seu olhar queria me dizer.

–É meio complicado. Mas vamos lá.

E dizendo isso, se levantou foi em direção à trilha com um passo apressado.

–Agora? – perguntei subitamente.

–Você vem comigo? – Gritou já a alguns metros de distância.

Bufei e fui até ela, que segurou minha mão e me puxou correndo de volta ao centro da cidade, rindo.

x x x

Chegamos à praça central em menos de dez minutos. Sentei-me em um banco exausta e com a respiração descompassada, enquanto Laurie me olhava e ainda ria. Ela parecia estar perfeitamente bem como se nada tivesse acontecido. Olhei para ela indignada:

–Você tem superpoderes ou o que?

–Talvez eu tenha – disse enquanto tirava uma garrafa de água da bolsa, a qual tomei enquanto recuperava o fôlego.

Quando finalmente me recompus, ela sugeriu que pegássemos um ônibus, ainda fazendo piadinhas do meu estado. Revirei os olhos e seguimos até o ponto central. Sem muita espera, o ônibus chegou e nos sentamos no fundo.

–Ela mora muito longe? – Indaguei, ansiosa.

–Já vai ver – respondeu olhando a paisagem da janela.

Passamos pelo Masefield, nos distanciamos do centro e seguimos pelo mesmo caminho que fizera com Oliver dias atrás. Passamos pela praça do cemitério e da enorme catedral enquanto as montanhas nos acompanhavam no horizonte, com a habitual neblina em seus picos. Aos poucos as ruas começaram a se tornar arborizadas, as calçadas mais largas e as casas maiores. Eu nunca havia estado naquele bairro. Quando descemos, uma suave brisa passou pelos meus cabelos. As árvores, que eram simetricamente distribuídas dos dois lados da rua, se curvavam e pareciam formar um belo corredor de galhos e folhas alaranjadas, filtrando a luz do céu. As casas eram enormes e clássicas, em sua maioria com portões exuberantes e fachadas imponentes. Caminhamos ao longo daquela quadra, quando Laurie parou em frente a uma das casas e apertou a campainha.

–Por isso eu não esperava – comente, enquanto Laurie ria baixinho.

–Tente se sentir confortável. Eu costumava vir muito aqui quando pequena, eu e Abby brincávamos muito sob a sombra dessas árvores.

Uma voz respondeu no interfone, e quando Laurie se identificou, a voz adquiriu um tom amável e convidou-nos para entrar. O portão se destrancou, e seguimos pelo caminho de pedras que havia até a porta de entrada da casa, que ficava relativamente distante. A grama era perfeitamente verde e aparada, e havia uma fonte de pedra com estátuas de anjo no centro do jardim. Uma sebe podada em formato quadrado traçava limites em torno da casa linearmente, dando impressão de que eu estava em um jardim real da corte. Algumas árvores antigas espalhavam-se pelo terreno junto à arbustos, tudo na mais perfeita organização. O céu começou a ficar nublado, e a brisa a tornar-se vento. Apressamos o passo. Quando chegamos até a porta de entrada, uma senhora com uniforme de empregada nos cumprimentou, dando um abraço fraterno em Laurie e dizendo como ela estava grande e essas coisas que senhoras dizem quando ficam um bom tempo sem nos ver.

–E quem é esta outra moça? – perguntou dirigindo-se a mim.

–Esta é Johanna, amiga minha e de Abigail – Laurie respondeu, enquanto eu acenava com a cabeça para a senhora em um comprimento.

A senhora nos conduziu até a sala, dizendo que sr e sra. Castenmiller chegariam daqui a pouco. A casa era escura, com abajures distribuídos em mesinhas por quase todos os cômodos. Passamos pelo corredor repleto de quadros antigos e subimos uma enorme escada de madeira em espiral, que continuava por mais uns dois andares. Ficamos no primeiro, em uma enorme sala de estar cuja lareira estava acesa. Sentamos nas poltronas que ali haviam, e a senhora desapareceu novamente no corredor. O lugar era enorme, com um lustre central imponente iluminando-a parcialmente. Todas as iluminações dali pareciam parciais. Diversas estantes de livros cobriam as paredes, que eram forradas em um papel de parede floral repleto de detalhes. A decoração extremamente detalhada com tons escuros dava um ar barroco ao local, embora elegante. Uma enorme televisão ficava na parede oposta, lado-a-lado com quadros que aparentavam ser do século XV. Um piano de cauda cor madeira ocupava o lado leste, em frente à enorme janela que dava para frente da casa. Fui até ela observar a paisagem: podia-se ver a cidade toda dali, pelo visto estávamos em um ponto alto.

–Como está, pequena Laurie? – A voz suave da governanta me deu um susto, trazendo-me de volta de minha imersão de pensamentos. Quando me virei, ela estava servindo silenciosamente as duas xícaras de chá que trouxera em uma pequena bandeja de prata, que estava sob sobre a mesinha central.

De repente, vi o portão de entrada se abrir. Um enorme carro preto entrou, e parou em frente à garagem. Do banco de trás, uma mulher loira de meia idade saiu, elegantemente vestida, seguida a um homem grisalho igualmente elegante. Senti um breve nervoso. Aqueles eram certamente Sr e Sra. Castenmiller.


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