Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 31
Bárbaros: Parte I




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Voltei pelo mesmo caminho da margem do rio, com os passos um pouco mais rápidos e decididos. Saindo do bosque, quando a ponte apareceu na paisagem, me deparei com um carro preto ali estacionado, e um Oliver em pé encostado na porta dianteira olhando-me chegar. Seus braços estavam cruzados e ele pareceu soltar um sorriso aliviado quando me viu. Acelerei o passo chegando até onde ele estava rapidamente.

–Como sabia que eu estava aqui? – perguntei surpresa conforme me aproximava, mas ele pareceu não ouvir minha pergunta e arregalou os olhos cinza, quase sempre inexpressíveis.

–J! O que aconteceu com seu cabelo? –perguntou ele com um ar trágico.

–Cortei nessa madrugada, estavam me incomodando faz um tempo – falei só depois me dando conta que cortar cabelos de madrugada não era uma prática assim tão comum.

Ele tocou suavemente em meus cabelos, enquanto me analisava com um olhar desconfiado. Enrolando-os em seus dedos, os soltou suavemente, e as mechas retornaram a pousar sobre minhas clavículas. Finalmente pareceu aliviado, e soltou a respiração me dando um abraço apertado.

–Continua muito bonita, de qualquer maneira – falou baixinho em meus ouvidos.

Entramos em seu carro, e ele me levou até seu loft. Disse que havia passado em minha casa antes, e quando viu que eu não estava, mandou a mensagem e imaginou que eu estivesse no bosque. Achei um tanto quando suspeita à parte do “imaginei”, mas relevei. Havia coisas mais importantes para se conversar. Durante o percurso, percebi com a visão periférica que quando parávamos, ele analisava meu novo perfil sorrateiramente, com um ar curioso que eu não consegui definir se era admiração ou suspeitas.

Entrando em sua casa, seu sempre organizado loft estava todo revirado. Uma série de papeis sobre a mesa, alguns amassados, capas pretas jogadas sob a cadeira, o cinzeiro sujo e livros no chão. Ele apressadamente começou a organizar as coisas, quase que de maneira compulsiva, enquanto eu observava sentada na banqueta do piano. Em poucos minutos tudo estava na habitual ordem. Ponderei se ele tinha TOC.

–Desculpe essa bagunça, ontem depois do Samhain voltei tarde, e como saí com pressa agora de manhã, mal tive tempo de organizar aqui – disse se justificando, enquanto terminava de recolocar na estante os últimos livros.

–Oliver – eu disse rindo. – Sabe que ninguém se importa com isso além de você, não é?

Ele franziu o cenho com um olhar divertido.

–Eu não consigo nem raciocinar direito se isso aqui estiver uma bagunça. E todo mundo deveria ser assim também, o mundo seria um lugar melhor. Ou pelo menos mais simétrico – decretou.

Minhas suspeitas do TOC se intensificaram, o que me fez rir ainda mais. Ele se aproximou e sentou na cama, estalando os longos dedos. Parecia um pouco apreensivo. Enquanto isso um turbilhão de pensamentos me cercavam: até que ponto Oliver saberia das coisas? Eu deveria falar sobre Zac, Leonard, e tudo de estranho que me aconteceu na madrugada, ou o silêncio seria a escolha certa? Oliver me parecia confiável, mas sempre havia a chance de ele me achar uma louca. Ou de me esclarecer tudo. Até que me recordei de que, afinal, eu estava ali porque ele quem queria conversar. Aguardei então alguma manifestação de sua parte.

–Está tudo bem mesmo, J? – ele perguntou, com sua voz grave rompendo o silêncio.

Ele não iria me chamar ali para nada. Seu ar apreensivo queria me dizer algo, que eu não estava conseguindo decifrar. E ele não iria atrás de mim tão cedo a ponto de deixar sua casa uma bagunça, o que lhe parecia algo aterrorizante. Resolvi jogar com ele.

–Não me chamou aqui para saber se eu estou bem, não é? – interroguei.

–Não posso querer saber como você está? – disse irônico, esperando minha reação.

Mas não expressei reação nenhuma além de levantar uma sobrancelha. Ele ponderou um pouco, balançando o pescoço em movimentos afirmativos enquanto parecia formular a próxima sentença. Dobrei minhas pernas e abracei meus joelhos, aguardando-o.

–J, acho que podemos ser francos um com o outro. Não irei lhe esconder nada, e espero que você também não. Acontece que eu sei da condição de Zac, e sei que agora você também sabe.

Um calafrio percorreu meu corpo, mas mantive a expressão intacta. Deveria decidir agora se cofiaria em Oliver ou não. Eu estava sem saída, gostaria de falar com Laurie antes, saber o que ela sabia ou pensava sobre tudo isso e ganhar um norte para seguir, mas eu precisava lhe dar uma resposta, e imediata. Tive que confiar e seguir à mim mesma. Dessa vez eu estava sozinha.

–Pois é eu soube. Um homem estranho me contou tudo noite passada. – disse, ainda com eufemismos.

–Ah, por favor, J, pare de agir como se isso fosse a coisa mais normal do mundo! – Ele exclamou com olhar suplicante, levantando-se. – Porque cria essa barreira entre nós? Pode se abrir, você pode falar o que quiser comigo – ele então se agachou em minha frente, ficando um pouco abaixo à minha altura, e cravou os olhos acinzentados nos meus, acalmando-se. – Você pode, por favor, confiar em mim?

Sua voz era tenra. Fechei os olhos e soltei a respiração, relaxando a postura. Comecei a falar.

–Zac está morto. O homem que me disse isso, Leonard, também está. Eu realmente não sei como isso pode ser possível, mas é. Você também está morto, Oliver? – perguntei abrindo os olhos, sentindo-os encherem de lágrimas.

–Não, Johanna, não! – disse pegando minhas mãos e apertando-as contra seu peito ardoroso. – Pode sentir? Eu estou aqui, estou vivo, acredite – disse abaixando o tom de voz. Eu sentia seu peito latejante e quente sob minhas mãos, e seu olhar triste para mim. Era a primeira vez que parecia se colocar de maneira inferior a qualquer coisa.

–Tudo bem Oli, eu acredito em você – abracei-o e comecei a chorar, me odiando por isso.

Estava exigindo que eu fosse mais forte do que suportava. Ele então me abraçou mais forte, dizendo-me palavras doces e que estava tudo bem. Em seu abraço, comecei a falar:

–Ontem antes de ir para o festival um vestido apareceu no meu quarto. De madrugada, meu pai havia acordado na floresta e me pediu ajuda, foi quando voltei para casa com Zac e tudo aconteceu. O vestido era coisa de Leonard, que estava nos esperando. Ele de alguma maneira expulsou Zac e me revelou tudo, pelo menos parte de tudo. De repente todos são sonâmbulos lá em casa, meu amigo está morto e há fantasmas pela cidade inteira!

–Calma J, não há fantasmas pela cidade inteira, é que ontem era Samhain, eles aparecem mais que o normal nesta noite apenas – disse com naturalidade, querendo me tranquilizar.

–O que você sabe sobre isso tudo Oli? E como você sabe?

Ele me soltou do abraço suavemente e sentou-se na cama de novo.

–Você foi franca comigo, então preciso ser também. Tudo o que eu já lhe contei foi verdade, mas eu precisava omitir algumas coisas. Zac e eu de fato fomos grandes amigos, e Abby quem nos apresentou. Ela não me contou nada, mas eu desde o início havia ficado desconfiado. Ele era realmente muito estranho, e nas primeiras vezes que eu o vi calafrios me percorriam o corpo. Passar tempo com ele me deixava cansado, como se eu tivesse perdido muita energia apenas com sua presença. Foi então que secretamente comecei a analisar seu comportamento e compará-lo aos meus estudos. Conforme passava o tempo, e como eu já havia te dito, ele foi se normalizando, mas minhas suspeitas foram acirrando. Até que comecei a perceber como ele amava sua casa. Aquilo só podia ter alguma ligação com seu passado, até então uma incógnita. Então fui atrás da documentação dos donos, e depois de certo trabalho descobri que houve um período em que a casa pertenceu aos Walker. A partir daí, não foi difícil encontrar a documentação da família, e com isso seu atestado de óbito por overdose.

Ouvi atentamente. Suas informações iam preenchendo vazios, embora tudo ainda soasse um tanto quanto anormal para mim.

–Porque nunca me contou isso, Oli? – perguntei com a voz falha.

–Há certa regra quanto a isso – disse Oliver. – Não se pode simplesmente contar para os outros. Primeiro por que, obviamente, ninguém acreditaria. Isso lhe serve também, saiba que agora você guarda um grande segredo. E segundo, porque quando revelei a Zac que já sabia, ele me fez prometer que não contaria a ninguém sob hipótese nenhuma, o mesmo que fez Abby prometer antes. E ninguém quer problemas com um espírito. Assim como eu tive de descobrir sozinho, você também teve.

Absorvi suas palavras, até que retomei a um ponto que parecia ter ficado perdido.

–Você disse que o comparou com seus estudos... Que tipo de estudos?

–Estudos de mitologia – disse rapidamente, completando-me.

–Você estuda mitologia por conta própria? – perguntei, percebendo que ele estava com um ar desconfortável. Ele disse que não ia esconder nada, certo?

Oli então cruzou as pernas como quem medita e de repente sua expressão tornou-se pacífica. Ele deu um meio sorriso com os lábios fechados antes de me responder.

–Bem, acho que talvez seja um momento oportuno para eu te contar. Eu estudo não só mitologia, mas magia celta. Eu sou um descendente druida, ou um mago, ou bruxo, use o estereótipo que preferir.

Minha boca se abriu involuntariamente, e arqueei minhas sobrancelhas. Soltei um riso e mordi meu lábio inferior, sem certeza de como prosseguir.

–Sério? – foi minha reação mais inteligente.

–Consegue acreditar em mortos entre nós, mas duvida disso – ele disse revirando os olhos.

–Não! Desculpe, não estou rindo de você – justifiquei rapidamente. – É que achei que nada mais iria me surpreender... e me pergunto até que ponto minha sanidade será testada.

–Quando você finalmente achar que já viu de tudo, Blue Falls dará um jeito de lhe surpreender novamente – Oliver proclamou, passando a mão nos cabelos com um movimento para trás.

–Você disse então descendente druida? – retomei curiosa. - Me conte sua história, Oli. E sem esconder nada.

Ele deitou na cama com os braços atrás da cabeça, como sempre fazia, e deu início a narrativa:

–Bem J, vamos começar pelos primórdios. Minha mãe, Vivien, tinha apenas 20 anos quando veio da Irlanda para a Inglaterra em busca de um famoso mago muito conhecido pela comunidade pagã. Aparentemente ela era apenas uma jovem do fim dos anos oitenta fascinada pelo ocultismo – ele disse com um riso – mas ela tinha coragem, devo admitir. Chegando ao país, ela descobriu então que o mago morava em uma pequena cidade, mais precisamente em uma antiga floresta de carvalhos que ficava dentro das fronteiras dessa cidade.

Oliver narrava como quem conta uma fábula, o que dava um ar divertido a história que eu ouvia atentamente. Ele então prosseguiu:

“Chegando a Blue Falls, ela logo comprou mapas e pediu informações por toda parte sobre onde ficaria a tal floresta. Após alguns dias por aqui de muitas caminhadas perdidas, ela finalmente, em uma caminhada habitual, encontrou árvores tão grandes e esplendorosas que estava certa de que aquela seria a tal floresta. Adentrando-a, seguiu a suave trilha que se formava sob seus pés e descobriu um pequeno chalé com uma chaminé, de onde saía fumaça. Ela bateu à porta, mas não havia ninguém lá. Esperou até o fim da tarde, voltando para a cidade quando começava a escurecer. Isso se repetiu no dia seguinte, até que no terceiro dia quando ela decidiu passar a noite ali, um homem, de longos cabelos negros e barba comprida, veio por entre as árvores até onde ela estava. Era a primeira vez que ela via meu pai.”

–Uau – consegui dizer. Eu me sentia uma criança ouvindo a um conto.

–Meu pai era o Mago Mordred. O povo dizia que ele era apenas um louco que tinha o dom de prever as coisas e que vivia nas florestas como um selvagem, mas essa era justamente sua máscara. Afinal, não era bom para um Tenebris ser importunado.

Tenebris? – perguntei.

–Esta é a nossa tradição. Todo mago segue uma, seja ela de sangue ou não. Nós Tenebris tivemos esse nome posteriormente dado pelos romanos, que nos consideravam bárbaros. Do latim, significa escuros, literalmente, e era o adjetivo popularmente atribuído à nossa linhagem por conta de nossos cabelos negros. Apesar da disseminação do cristianismo, as florestas e montanhas ainda abrigavam os costumes pagãos, e continuarão abrigando até o fim dos tempos. Quando viemos para a Inglaterra fugindo da era das fogueiras, nos fixamos em florestas de carvalho das montanhas do norte, assim como diversos druidas de outras tradições fizeram. A união foi necessária, mesmo que temporária e entre inimigos, para nossa sobrevivência. A magia concentrada foi tanta, que conseguiram criar barreiras contra qualquer tipo de invasão. E foi assim que nossa linhagem fugiu da Inquisição.

–Peraí, você está dizendo que descende de uma linhagem milenar? – perguntei, descrente.

Oliver então deu um meio sorriso, olhando fixamente para mim. Fiz um olhar interrogativo de resposta, mas ele continuava fitando-me com a mesma expressão; foi quanto olhei para baixo e só então me dei conta: a banqueta em que eu estava sentada levitava cerca de 30 cm do chão.

–Mas que diabos..? – comecei a dizer, quando Oliver abriu a palma da mão e a banqueta tornou ruidosamente ao chão. Eu estava perplexa.

–Telecinese, só um truque barato – ele disse, como se aquilo não fosse nada de demais. – Posso prosseguir?

Assenti com a cabeça, com as mãos trêmulas temendo o que estaria por vir.


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