Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 32
Bárbaros: Parte II




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/600893/chapter/32

“Após certo tempo Vivien tornou-se então uma aprendiza do Mago Mordred, que aceitou ensiná-la magia através da Tradição Tenebris. Claro que não foi fácil, ainda mais se tratando de um homem recluso e enigmático como ele. Mas houve um fator que facilitou isso tudo; digamos que o mesmo fator que possibilita até o impossível... Sim, estou falando do amor. Mordred se apaixonou por Vivien, pois assim que a viu entendeu que ela era seu destino.”

–Isso é bonito – comentei.

–Nem tanto, J. Muitas atitudes equivocadas são tomadas quando a razão dá lugar ao sentimento. No caso de Mordred, ele caiu em um paradoxo: se apaixonou por Vivien ao profetizar que se apaixonariam.

Assenti com a cabeça, pensativa. Ele então continuou:

–Passado um ano lunar de estudo e aprendizado, os dois já viviam como um casal sem perceber. Mas, como eu disse, o sentimento gera atitudes inconsequentes. Era véspera de Beltane, o festival da primavera que marca o início da parte iluminada do ano. Ele é o oposto do Samhain, que celebra a morte: Beltane é o mais alegre dos festivais celtas e celebra a vida, a fertilidade, a união entre as energias masculina e feminina. É comum celebrar acendendo duas fogueiras, representando o feminino e o masculino da natureza. Mas havia um antigo ritual sagrado, um tanto quanto ousado, que os dois queriam realizar.

–Que tipo de ritual? – perguntei curiosa.

–Aquele era o período sagrado de fertilidade na roda do ano. Havia uma antiga tradição medieval a qual dizia que uma criança concebida na véspera do Beltane entre as fogueiras gêmeas, possuiria capacidade e poderes mais elevados. Nas lendas Arturianas já constam relatos disso, uma vez que segundo o mito o Rei Artur teve um filho com Morgana nesse mesmo ritual. Mas enfim, você já deve imaginar o que aconteceu depois. – Oliver disse, deixando a consequência no ar.

– Você é essa criança? – eu disse, em uma expressão surpresa.

–Poderia ser. Entretanto, cego pela paixão, Mordred ignorou o fato de que este era um ritual restrito aos sacerdotes e bruxos sangue-puro. Uma criança gerada em um ritual de Beltane, provindo de um mago com uma simples garota certamente não passaria batido, e seria logo visto como um mau augúrio. Na lenda Arturiana, o filho de Artur e Morgana ao crescer trai seu pai e trava com ele uma batalha que resulta na própria morte. Não é uma passagem muito otimista certo? – disse ele, dando um sorriso irônico. Seus olhos estavam cravados nos meus desde o começo da narrativa. – Então Mordred teve a brilhante ideia de entregar seu filho amaldiçoado ao seu irmão, e deixar Blue Falls para sempre.

–E sua mãe? – perguntei imediatamente.

–Eu nunca soube. Meu tio, que me criou, conta que ela ficou desesperada quando foi separada de seu filho, mas que também nunca mais foi vista depois da ocasião. Os boatos foram de que Mordred pudesse tê-la matado ou algo do tipo, mas meu tio diz que ele não seria capaz de uma atrocidade dessas. O que aliás, eu sinceramente não sei. A única herança física que tenho dele é seu Livro das Sombras, que segundo meu tio é prova de que ele honestamente me amou. Todo o seu conhecimento na Tradição estão descritos nele, bem como rituais e registros variados. E foi a partir dele que comecei a aprender tudo que sei.

Recordei-me então do enorme livro que encontrei sobre sua mesa certo dia, que continha a mesma página da folha rasgada que Laurie me deu com aquele ritual da lua negra descrito. Seria Laurie também uma bruxa? Olhei para Oliver, que agora fitava o chão, perdido em lembranças e pensamentos. Concentrei-me em seus cabelos negros. “Os escuros”... Parecia fazer sentido, se a Tradição fosse algo hereditário. Ri ao me dar conta de como as coisas não paravam de ficar cada vez mais surreais.

–Laurie também faz parte dessa Tradição? – perguntei de repente.

Oliver arqueou as sobrancelhas com minha pergunta, e então soltou uma longa risada. Riu tanto que se deitou na cama, cobrindo o rosto com as mãos. O fitei séria, sem entender.

–Você tá falando sério? - perguntou, com os olhos lacrimejando de tanto rir.

Ainda sem responder, o fiz uma expressão interrogativa.

–Me desculpe – disse ele, endireitando a postura enquanto censurava o riso – me esqueço de que isso tudo é novo para você. Mas respondendo sua pergunta, não. Laurie faz parte daquele grupo de pseudo pagãos de Feiras Renascentistas, vestindo capas e balançando cristais. A Tradição Tenebris é uma linhagem muito mais antiga do que isso. A maioria imagina que somos apenas bruxos, dançando nus em volta de uma fogueira à luz da lua e derramando sangue para alimentar o solo seco. “Seguidores de caminhos antigos, ultrapassados, bárbaros segundo os padrões da sociedade moderna” – disse ele fazendo aspas com os dedos. - Isso é tudo o que a maioria dos forasteiros vê de nós. A realidade é que somos portadores da uma sabedoria antiga, a qual tantas pessoas no mundo moderno decidiram ignorar por não se encaixar fácil ou confortavelmente na sua forma de vida escolhida.

–Mas você não acha que está se prendendo à um passado mítico? – questionei, impertinente.

–Não J, ao contrário do que muitos pensam, a magia está no hoje, não nas lendas. Qualquer um pode ser um mago. Qualquer um pode estudar magia em uma Tradição e exercê-la. Poucos compreendem que o elemento principal dela está dentro de cada um, no íntimo do nosso ser, porque afinal a origem de tudo é a Natureza. E o que nós somos, além de filhos dela? – ele perguntou de maneira retórica. – Claro que se você nascer na Arte, como eu nasci, facilita as coisas. Como eu fui ensinado desde pequeno, nunca fechei minha mente para o lado natural e mágico do mundo. É isto que concebemos por nossa “linhagem”. Acontece que a sociedade moderna que se diz “civilizada” virou as costas para o mundo natural, e vive cada vez mais reclusa, tornando as pessoas indiferentes e ignorantes. Isso dificulta e muitas vezes impede o desenvolvimento das capacidades psíquicas necessárias.

–Isso explica seu gosto pelas florestas e a quantidade de plantas que você cultiva aqui – observei, enquanto um sorriso tímido abriu em seu rosto.

– Bem, não podemos ser rotulados como meros “abraçadores de árvores”. Mas tomamos como nossos princípios os da natureza, e seguimos seu código de moralidade e de bem comum. Em comparação aos rígidos padrões judaico-cristãos, podemos parecer totalmente amorais, mas isso não nos perturba. A natureza em si é amoral. Existem dias no qual ela é cruel e dias onde ela é beneficente. E nós, Tenebris, vemos isso como o nosso certo também.

–Talvez por conta dessa ligação ao mundo natural que vocês foram um dia rotulados por bárbaros. Mas sinceramente eu consideraria um título nobre, se este fosse o motivo.

Percebi um sorriso ambicioso despertando em seus lábios.

–Se somos bárbaros? Ah, sim, de várias formas. Sinceramente me enoja essa sociedade moderna que não aguenta sujar suas mãos, que faz sua matança por controle remoto, que espalha o sexo através de telas de monitores e cartazes, mas que não pode ter uma conversa honesta sobre ele. Se for ver desse ponto, somos então bárbaros de várias formas e nos orgulhamos disto. Prefiro ser bárbaro a ponto de cortar gargantas de cabras em sacrifício que fazer parte de um povo “civilizado” que derruba florestas, envenena a Terra e faz guerra com nações distantes que eles nunca viram.

Arqueei as sobrancelhas em fiz um movimento afirmativo, refletindo sua ideologia. Enquanto o fazia, Oli levantou-se e foi até a estante pegar seu volumoso e antigo Livro das Sombras.

–Veja só – ele disse, trazendo o livro em seus braços e colocando-o em meu colo. – Eu nunca o mostrei para ninguém fora da Tradição. Mas de certa forma, J, eu confio em você.

Esfolheei o livro que já vira uma vez, ocultando meu conhecimento e fingindo ser a primeira vez em que o via. A mesma caligrafia floreada, as páginas amareladas e os registros corridos. Porém agora, um significado todo novo e precioso. Conforme passava as páginas, cheguei até a que faltava um pedaço, o conhecido pedaço que tanto me havia intrigado.

–O que aconteceu aqui? – perguntei para ver sua resposta.

–Ah, isso me perturba até hoje. Faz um tempo que esse pedaço sumiu, inclusive era justamente um ritual que poderia lhe interessar agora... – ele disse, abaixando o tom de voz conforme pensava. – Interroguei todos os suspeitos, mas não descobri quem o roubou.

–Não pode ter rasgado sem querer? Essas folhas parecem ser sensíveis.. – comecei a dizer.

–Só parecem – ele complementou. – São folhas feitas com madeira de carvalho, artesanalmente. Era uma prática comum, e as propriedades sagradas do carvalho eram eternizadas na folha durante a confecção. Acredite, não é tão fácil arrancar uma destas.

Pelo que parece, Laurie não é então apenas uma pseudo pagã de feirinha, pensei. Depois de algum tempo, Oli quebrou o silêncio:

–O que se passa em sua mente, J?

–São tantas coisas... –limitei-me a responder.

–Espero não ter enchido sua cabeça. Que idiotice a minha, te jogar tantas informações quando você já estava perturbada! – ele disse, aproximando-se de mim e abraçando minha cabeça contra seu peito.

–Oli... Você é mortal? – perguntei, com a voz abafada em seu abraço.

Oliver soltou um riso suave, e passando a mão delicadamente em meus cabelos respondeu:

–Sou tão mortal e humano como você, Johanna. A diferença é que eu gasto meu tempo no desafio que é aprender cada vez mais a controlar minha mente, e com ela controlar a natureza no pouco que nos é permitido.

No caminho de volta para casa, as palavras de Oli reverberavam em minha mente conforme caminhava. Neguei sua carona, eu precisava de um pouco do ar fresco de uma caminhada para pensar. Um passo após o outro, o vento frio em minha pele e a luz crepuscular acompanhavam meu caminho, enquanto o caos de vozes minha mente aos poucos se silenciava. Chegando em minha rua quase uma hora depois, o céu já estava completamente escuro. Abri meu portão, que fez um longo rangido, e entrei em casa silenciosamente. Meu pai estava na sala, e meu irmão provavelmente em seu quarto. Subi para meu quarto rapidamente, desejando enfiar minha cabeça no travesseiro e sair um pouco da realidade esmagadora o mais rápido possível.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Blue Falls" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.