Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 30
Plenitude




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Acordei aos poucos, voltando a mim mesma suavemente e retomando a consciência de tudo que havia acontecido. Leonard já não estava mais ali, e a luz da aurora atravessava a janela. Ainda me lembrava das histórias da noite anterior atingindo-me como socos no peito, das pessoas estranhas vistas da janela ou da luz fantasmagórica que entrava por debaixo da porta de meu quarto escuro, memórias envoltas por uma névoa confusa. Parecia ter sido um pesadelo distante, mas bastava olhar em volta e ver meu papel de parede rasgado, exibindo a parede azul com a enorme mancha de fogo, para confirmar que tudo havia sido real. Uma súbita racionalidade me invadiu, e eu observava tudo e revisava as lembranças como quem já sóbrio analisa o que fez fora de si em uma noite anterior, ou como um investigador analisaria a cena de um crime.

Levantei-me, havia acabado dormindo ali na janela em cima da capa vermelha, já desamarrada de meu pescoço. Atravessei o quarto para então mirar meu reflexo no espelho: a maquiagem dos olhos borrada, assim como o que sobrou de meu batom da noite anterior. Ainda usava o vestido dado por Leonard, ideia a qual me fez querer tirá-lo imediatamente. Conforme tentava abrir o zíper das costas, uma das longas mechas de meu cabelo se prendeu nele, travando sua abertura. Bufei. Fazia tempo que eu estava de saco cheio do meu cabelo, que já passava da cintura em direção ao quadril. Ao longo do seu comprimento, ele formava uma cascata de ondas castanhas escuras. Foi então que vi a tesoura em minha escrivaninha, repousando ali tranquila junto à canetas usadas em meu último desenho. Sem pensar muito a peguei, e em um movimento rápido cortei a mecha que impedia o zíper de abrir. Tirei o vestido calmamente, jogando-o por cima da cama, e fitei o espelho novamente. Tudo havia mudado. Em apenas uma madrugada todas as minhas convicções foram amassadas e descartadas, e uma nova realidade fora me apresentada. Ainda segurando a tesoura com as mãos trêmulas, observei em meu reflexo que eu ainda era a Johanna Dubrowsky. Porém seria a mesma J? Os mesmos olhos verdes, agora cansados, a mesma pele branca, porém agora pálida. Tudo o que eu conhecia parecia ter desabado, junto com tudo o que eu acreditava. Mas eu ainda era Johanna Dubrowsky, afinal. Endireitei minha postura e levei a tesoura até a altura das minhas clavículas. Com movimentos rápidos, cortei meu cabelo naquela altura, e antes que a última mecha tocasse o chão, minhas mãos não tremiam mais. Eu não era mais a mesma J.

Tomei um banho longo livrando os últimos resquícios da madrugada anterior, vesti um suéter comprido cinza e desci as escadas, encontrando na cozinha um Johnny sonolento e muito provavelmente de ressaca. Ele estava sentado na bancada com sua xícara de café, e quando me viu franziu o cenho. Em seguida fez uma expressão de espanto.

–Santo Cristo, o efeito dessa coisa ainda não passou – disse ele indo até a pia lavar o rosto desajeitadamente.

Revirei os olhos enquanto servia uma xícara de café para mim. Ao secar o rosto, com os cabelos bagunçados e olheiras em torno dos olhos, ele chegou perto de mim e tocou meus cabelos.

–Isso é real? – ele perguntou, rindo ao perceber que meus cabelos estavam de fato pouco abaixo de meus ombros.

–O que você acha? – perguntei indiferente.

–J, sem joguinhos mentais, por favor – ele disse devagar, fechando os olhos. – Me deram uma parada nessa noite e cara, o que foi aquilo... – disse rindo consigo mesmo enquanto se apoiava na bancada em minha frente, visivelmente tonto. – Mas que diabo deu em você para cortar seu cabelo? Ele era praticamente um patrimônio histórico da família!

Ri com seu termo, mas de fato, eram anos que eu não o cortava.

–Mudanças são necessárias, caro Jonathan – eu disse, bagunçando seu cabelo com os dedos, o que o fez fazer uma careta.

–Não toque em mim, por favor – ele disse imóvel, apertando os olhos fechados – qualquer toque parece um soco profundo na alma.

Ri de sua situação, e ao perceber que eu ria, ele riu também. Até que nossos risos morreram aos poucos e meus pensamentos me levaram até papai.

–Papai voltou para casa? - perguntei aflita, lembrando-me subitamente da situação da noite passada.

–Ele me ligou de madrugada. Fui com uns amigos buscá-lo, ele estava no bosque aqui de trás de casa. Costumávamos caminhar por lá juntos lembra J? Graças àquelas trilhas tive uma mínima noção de por onde estava indo. Papai deve estar dormindo ainda.

Sorri orgulhosa, e um pouco triste lembrando-me da época em que caminhávamos juntos pela floresta, um tempo em que eu jamais imaginaria tudo o que aquele lugar me revelaria futuramente.

–Ele acordou na floresta mesmo? – perguntei, preocupada.

–Sim, ele me disse que faz algum tempo que ele vem fazendo coisas enquanto dorme... – Johnny abaixou o tom de voz. – E sinceramente, acho que tenho feito também.

Arregalei os olhos.

–Sério? – perguntei.

–Sim J, mas como sou eu – pronunciou enfatizando a ultima palavra – achei que era coisa da minha cabeça, então nem comentei pra ninguém. Iam me acusar de estar usando alguma coisa de qualquer maneira – disse sarcasticamente, dando os ombros.

–Ué, mas não é o que você sempre faz? – perguntei no mesmo tom, encostando o dedo indicador em sua testa e empurrando para trás, o que fez com que ele apertasse os olhos novamente com uma expressão de dor e me xingasse de uma série de coisas.

De volta em meu quarto, terminei de tirar o papel de parede e o joguei debaixo da cama. Colei meus desenhos de volta na parede agora azul, que no final até que combinou com as outras brancas de meu quarto. Quando estava colando o último desenho, peguei o autorretrato de Zac em minhas mãos, o que me causou certo calafrio. Respirei fundo e decidi colá-lo de volta com cuidado na parte manchada da parede. Encarei seus olhos azuis na fotografia por alguns segundos, antes de vestir um casaco e pegar minha bolsa, rumo a qualquer lugar longe dali.

Fazia frio na rua, mas um sol tímido infiltrava-se entre as nuvens fazendo brilhar o orvalho nas plantas. Conforme caminhava acendi um cigarro, o que me trouxe uma pequena dose ilusória de paz, e observei os arredores calmamente, sentindo-me fisicamente plena, embora mentalmente ainda confusa. De qualquer maneira, as coisas pareciam fazer mais sentido do que nunca; embora estivessem cada vez mais insanas. Enquanto caminhava, o vento passava por entre meus cabelos, agora leves e um tanto quanto mais lisos, dando-me a sensação de alguma forma ser livre.

Passando sobre a pequena ponte sob o riacho de meu bairro, decidi seguir suas margens adentrando a floresta, como no dia em que Abby e Zac me deram aquele susto idiota. Por falar em Abby, por onde será que ela estava? Se bem que tanto fazia, eu não parecia alguém que ela gostaria de ver no momento. Sem que eu me desse conta, cheguei até o tronco que atravessava a trilha, onde me sentei. Ali a copa das árvores encobria parte do céu, embora os delicados raios de sol conseguissem passar por entre eles, iluminando o caminho.

Contemplando os arredores, terminei meu cigarro. Abri minha carteira para acender um novo, mas para minha surpresa aquele fora o último. Amassei a carteira e joguei de volta em minha bolsa, quando meu celular vibrou exibindo uma mensagem:

Podemos nos ver? Precisamos conversar.”

Foi então que identifiquei o número sendo o de Oliver.


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