Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 26
Samhain: Parte I




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O cemitério durante aquele ponto em que o dia não é mais dia, porém a noite ainda não é noite, parecia ameaçador. A neblina baixa percorria vagarosamente as lápides e o vento soprava como se antecedesse um temporal, deixando um clima de prelúdio no ar. Meus cabelos voavam junto ao vendaval, e enquanto eu lutava para mantê-los fora de meus olhos, avistei Zac sentado sobre um dos túmulos. Ele segurava as pernas com as mãos e suas mechas loiras teimavam em voar em seus olhos, rebeldes. Então eu virei para o outro lado, e nesse, Oliver estava em pé debaixo de um carvalho segurando um cajado. Ambos me encaravam sérios. Quando tornei a olhar para frente, um homem usando cartola com cabelos negros ondulados na altura dos ombros me olhava, com um sorriso sádico no rosto. Na sua mão, uma bengala muito adornada, suas roupas aparentando algo próximo da era vitoriana.

“Ora ora, as coisas irão ficar animadas por aqui” ele disse, ainda sorrindo.

Um trovão retumbou ao longe.

Acordei encolhida em minha cama, ainda ouvindo o eco do trovão de meu sonho em meus ouvidos. Afastei os pensamentos angustiados e me levantei, espreguiçando-me e seguindo para o banheiro. Logo o pessoal passaria para irmos a Bloomfield, e seria interessante que eu não me atrasasse. Coloquei minha calça preta junto à minha jaqueta jeans, onde meus longos cabelos engatavam nos botões, e desci animadamente as escadas.

–Por que tanta alegria? Vai ser só uma viagem chata – disse Johnny enquanto preparava seu café, vestindo uma samba canção.

–Ah cala boca – eu dizia enquanto colocava um pedaço de torrada na boca.

–Vocês vão tomar cuidado não é? – papai perguntou, encostado no balcão.

–Claro pai, iremos usar cinto de segurança e essas coisas todas.

Felizmente, uma buzina soou lá fora interrompendo as outras possíveis perguntas de papai, o que fez com que nós três nos entreolhássemos.

–Seus amigos estranhos chegaram J – disse meu irmão.

Peguei minha mochila previamente preparada e segui em direção ao portão. O carro era um modelo antigo de Chevrolet , que para minha surpresa era dirigido por Nathan, que eu nem sabia que iria. Enquanto fechava o portão, vi Johnny rindo e apontando para nós pela janela.

– Oi J! – Laurie exclamou do banco do carona.

Abracei-a através da janela aberta do carro e cumprimentei Nathan com um aceno. Ao abrir a porta de trás me deparei com Zac e Abby esparramados.

–Oi vocês – disse ao entrar, empurrando-os para o lado.

Zac, no meio de nós, deu seu sorriso vivaz a me ver. Abby parecia um pouco nervosa, embora sorrisse também. Seu sorriso sempre tinha um tom maníaco.

No caminho, ninguém falava nada. O dia estava nebuloso como habitual, ainda mais por ser cedo, e as janelas começavam a ficar embaçadas. Na rodovia, a vegetação escura nos observava de todos os lados, e eu sentia Zac inquieto ao meu lado. Percorremos uma longa descida repleta de curvas, onde senti meus ouvidos taparem. Aos poucos, vegetação foi ficando menos espessa e o céu um tanto quanto mais limpo. De repente, quando as descidas que pareceram uma eternidade cessaram e a rodovia tornou a ser plana, passamos por uma pequena placa indicando o limite de Blue Falls: estávamos fora da cidade.

Foi como se junto a ela ficassem para trás as expressões mórbidas: Nathan abriu as janelas e ligou a rádio, onde tocava um rock animado. O vento já não parecia mais tão frio. Abby largou seu semblante de preocupação e Zac estava mais animado do que nunca. Ele cantava a música que tocava usando minha mão ou a de Abby como microfone, e imitava os riffs de guitarra fazendo acordes na sua guitarra imaginária, o que fez até a séria Laurie rir até chorar. Nathan batia as mãos no ritmo da bateria no volante e Abby, desafinada, cantava junto. Era um clima de animação inédito para mim ali. E parecia muito bom rir com eles.

Conforme a hora foi passando, comecei a ver prédios no horizonte, as placas indicando nosso destino a poucos quilômetros. Ao redor da rodovia viam-se campos, e então entendi o nome da cidade. O vento das janelas abertas em nossos cabelos, o som da música alta e o sol sob nossos rostos me lembraram dos tempos de Portland, e por um momento pareci ter visto a mesma nostalgia nos olhos de Zac. Quando saímos da rodovia e adentramos na cidade, as avenidas largas e as fachadas modernas das lojas tomaram conta da paisagem. Os terraços, os carros, os prédios, tudo resplandecia em clima de metrópole, embora a cidade não fosse tão grande.

Nathan virou em uma rua sem saída repleta de muros pichados e ali estacionou. Quando descemos tirei meu casaco e dei uma boa olhada em volta: as árvores na calçada com poucas folhas indicavam a presença do outono, e embora ainda frio, o calor do sol nos confortava. Zac abriu o porta-malas e tirou de lá um skate, seus olhos brilhavam.

–Quanto tempo faz que não ando de skate pela cidade... – ele dizia baixinho enquanto subia no skate dando algumas voltas velozes ali no beco.

–De nada – disse Nathan rindo, tirando outro skate do porta-malas e seguindo Zac. Presumi que ambos fossem dele.

Laurie, Abby e eu sentamo-nos na calçada observando os dois, que riam e pareciam competir por quem fazia manobras melhores. Zac era realmente muito bom, além de ser muito mais leve que Nathan, que embora pesado não ficava para trás. Zac veio em minha direção ainda no skate e em um movimento rápido o fez parar, ficando em pé à minha frente. Ele vestia uma enorme flanela xadrez e calças jeans desbotadas. Nathan parou um pouco depois, deixando o skate de lado.

–Já andou de skate alguma vez Johanna?

Fiz que não com a cabeça, o que era mentira. Na verdade era péssima em questão de equilíbrio, e ser relativamente alta não ajudava. Na infância eu adorava passear de skate por Portland, mas ficou por isso, anos e centímetros de altura atrás. Mas ele não se convenceu: puxou-me pelas mãos e fez sinal para que eu subisse. Eu não queria, mas ele insistia. Dei os ombros e subi, dando alguns passos de impulso ainda devagar.

Nossa, fazia tempo mesmo, pensei. Meus braços se abriram instintivamente buscando equilíbrio, mas até que eu estava me saindo bem. Inclinava meu corpo para a direção que queria e o skate me obedecia, assim como em meus 12 anos. Ouvi aplausos e assobios deles atrás de mim e sorri nervosa ao perceber que estava mesmo conseguindo. Foi então que ouvi o barulho de outras rodas sendo aceleradas e senti o vento passando por mim à minha direita: Zac havia subido no outro skate e seguia à frente, olhando-me como se me desafiasse. Levantei as sobrancelhas para ele e resolvi dar um impulso mais forte, seguido por outro, e outro, e quando vi já estava logo atrás dele.

Era como andar de bicicleta: nunca se esquece. Fizemos a curva da rua em que estávamos e ouvi os gritos de nossos amigos ao fundo nos chamando, enquanto o vento contra nosso rosto nos incitava a continuar.

Ele desviava das pessoas na calçada sem mover um músculo junto à sua imagem refletida nas vitrines envidraçadas, enquanto eu, desastrada, ia pela avenida nervosa. Até que ele virou subitamente em uma galeria e o segui, só depois me dando conta do que estávamos fazendo. Ele olhou para mim com um sorriso travesso, enquanto todos que passavam no corredor nos dirigiam olhares ultrajados ou praguejavam quando passávamos muito perto.

Naquela velocidade eu parecia ter a visão de um filme; todo o resto parecia passar por mim mudo e desfocado enquanto Zac ocupava o close principal, centro da minha atenção. As lojas e lanchonetes da galeria pareciam ser seu parque de diversões, e com movimentos suaves e despreocupados ele ia ziguezagueando através dos obstáculos facilmente.

Saímos pela porta do outro lado, ainda ouvindo alguns xingamentos ao longe. Do outro lado da avenida dos fundos da galeria havia uma enorme campina, onde no horizonte viam-se ao longe as montanhas nebulosas de Blue Falls, imponentes. Zac parou subitamente com um grito de entusiasmo, pegando seu skate com as mãos. Já eu, ainda contemplando a paisagem, me dei conta tarde demais de que já devia ter freado. Desastrada, pulei na última hora e fui cambaleando pela calçada, até parar segura nos braços de Zac que me impediram de cair na avenida. Meu skate não teve a mesma sorte e atravessou com o pouco que sobrou de impulso, enquanto os carros desviavam e buzinavam furiosamente.

Quando finalmente recuperei o fôlego da adrenalina repentina, meu coração voltou a acelerar ao perceber que eu ainda estava no abraço de Zac, que ria observando o caos dos carros para desviarem do pobre skate no meio da larga avenida.

Passado o susto, atravessamos a rua e pulamos o arame farpado que nos separava da imensa campina. Com a facilidade que ele tinha, deduzi que pular muros era sua habilidade natural. Uma vez do outro lado, ele correu por entre as flores silvestres coloridas e dentes-de-leão que cresciam por ali na altura de nossos joelhos, rindo e arrancando algumas. Observei sua alegria, eu nunca o tinha visto tão... Vivo. Seguimos até uma parte mais elevada do campo, onde nos sentamos e contemplamos a paisagem em silêncio. Zac abriu os braços e fechou os olhos, parecendo em paz.

–Você consegue sentir J? – perguntou ele ainda de olhos fechados. – Consegue sentir a plenitude que vem deste lugar?

Franzi o cenho, embora me divertisse o vendo naquele estado eufórico praticamente de nirvana. Ele sorriu e então se deitou por entre as flores, observando o céu que estava na mesma cor de seus olhos.

–Eu vinha muito aqui – começou a dizer, com aquele olhar vago que tinha quando trazia a tona antigas memórias. – Este costumava ser meu refúgio quando as coisas saiam do controle. Este horizonte sempre me fez pensar, tipo, como somos pequenos não é? Por que nos importamos com tantas coisas ainda menores em nossa vida? Isto é, que diferença faz no universo quem você é ou o que você faz?

Ponderei seus levantamentos, enquanto ele já sentado olhava para as montanhas. Um vento percorreu a campina fazendo as flores e a copa das poucas árvores que nos cercavam tremularem. Do lado oposto às montanhas, viam-se os prédios e a cidade. Senti sua mão sobre a minha, e seu semblante ficando triste. O abracei.

–Ei, deu de lembrar coisas tristes, viemos para ter um dia divertido não? – questionei.

Ele balançou a cabeça e esfregou os olhos.

–É verdade J, é verdade. Hoje é Halloween! E não estamos naquela maldita cidade! – ele gritou, o que fez com que sua voz ecoasse no vale.

O que ele tinha contra Blue Falls?

Naquele instante, vi que nossos amigos vinham em direção da avenida, nos chamando. Descemos e fomos até eles, pulando o arame farpado de novo e recolhendo os skates que havíamos deixado ali. Todos reclamaram por termos saído daquele jeito, e Abby abraçou Zac me lançando um olhar enciumado, o que era compreensível. Eles pareciam um pouco distantes nos últimos dias.

Durante o dia, fizemos um tour pela cidade, Zac sendo nosso guia turístico. Ele nos mostrou sua antiga loja favorita de discos, a mercearia em que costumava roubar vodka e até sua antiga rua, em um bairro classe média. Lá, ele tirou da sua mochila uma lata de spray e começou a pichar o muro de uma das casas, quando uma garotinha de bicicleta viu e com uma expressão de espanto gritou:

–Vou contar pros meus pais!

Saímos correndo. Nathan riu e ajudou Zac a terminar a pichação, eu Abby e Laurie já distantes observando a cena. Os dois jogaram a latinha no gramado da casa, que soou um alarme subitamente, fazendo-os fugir correndo para nossa direção.

No fim da tarde, voltamos para a campina e estendemos ali uma toalha, onde fizemos uma espécie de piquenique. Conforme entardecia o vento ia ficando mais frio, mas a fogueira acesa nos aquecia. Nathan tocava o violão que trouxera nas costas e Abby assava marshmallows encostada no ombro de Zac, cuja alegria pareceu ir se esvaindo com o entardecer. Seus olhos continuavam vagos pela campina. Laurie o observava enquanto acendia um cigarro, mas ele parecia evitar seu olhar. Estava acontecendo algo em segundo plano que eu não estava sabendo.

Com as horas, o céu tornou-se laranja e o sol se pôs nas montanhas majestosamente.

–Temos que ir pessoal, não podemos perder o festival – Laurie ia dizendo, guardando a toalha na sua bolsa e começando a remexer a fogueira para apagá-la.

–Vamos indo pro carro J – Nathan me disse, dando-me um dos skates e colocando o outro em baixo do seu braço.

–Isso, vão vocês na frente que eu e Zac iremos terminar de guardar as coisas aqui – Laurie disse enquanto guardava objetos em sua mochila.
Abby ainda estava grudada ao braço de Zac, e pareceu irritada quando Nathan a chamou.

–Não, eu fico aqui, vou depois com eles.

–Abby, você não tá entendendo, pode ir à frente, por favor? –Laurie falou entre os dentes, olhando-a no fundo dos olhos.

Ela imediatamente concordou como se tivesse sido hipnotizada, e juntou-se a Nathan que já estava alguns passos à frente. Os segui atrasada, achando aquilo muito estranho.

–Por que temos que ir na frente? – perguntei, mas ninguém me respondeu.

Chegando à calçada da avenida, olhei para trás e os dois pareciam discutir, gesticulando muito. De repente, Zac virou as costas para ela subitamente e veio em nossa direção gritando “esperem!”. Notei o espanto nos olhos de Nathan ao se virar e focalizá-lo correndo até nós. Abby pareceu indiferente, provavelmente sem saber o que estava se passando, assim como eu. Laurie vinha mais atrás, com passos longos, séria.

–Vamos logo, não quero perder o festival – ela disse arregalando os olhos para Nathan, que franziu o cenho olhando para ela e Zac como quem pedisse explicações.

Sem resposta, ele então deu os ombros e finalmente tornou a seguir em direção do carro.

O caminho de volta pareceu mais curto. Zac sentou-se na janela do carro com as pernas para dentro e o tronco para fora, segurando-se no rack do teto para aproveitar os últimos minutos de Bloomfield. As luzes dos postes e dos letreiros refletiam no para-brisa e iluminavam as avenidas, que se enchiam de pessoas fantasiadas para o Halloween. Conforme os prédios iam ficando para trás, o vento esfriava. Quando entramos na rodovia e as tortuosas curvas -agora em subida- recomeçaram deixando os campos para trás, senti definitivamente que estávamos voltando para casa. A última parte clara do céu no horizonte escurecia-se.

A noite de Samhain estava só começando.


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