Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 25
Memórias Vagas




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–Você deve estar me confundindo com alguém, senhor – Zac disse calmamente.

O homem ainda parecia aterrorizado.

–Não! Minha memória nunca falha! Você não mudou nada... Como pode?

–Senhor, eu não te conheço, é sério – disse Zac, se afastando. – Sempre há uma primeira vez para nossa memória falhar.

Eu olhava para eles atônita. Zac agora parecia tranquilo e com certeza em suas palavras. Mas não dava para descartar o choque do pobre homem. Resolvi intervir.

–Senhor, ele é meu amigo, acredito que esteja se confundindo.

Nos afastamos e decidimos ir embora, enquanto o homem ainda inconformado nos olhava balançando a cabeça negativamente.

–J, seu amigo esquisito estragou nossa noite – disse meu irmão enquanto seguíamos de volta para casa.

–Pare de chamar meus amigos de esquisitos, Johnny.

Olhei para trás, Zac andava mais atrás e estava muito sério. Usava um moletom comprido cinza sobre uma camiseta clara, que saía por baixo. Atrasei o passo para ficar ao seu lado.

–Ta tudo bem com você? – perguntei a ele.

–Ta sim – disse, forçando um sorriso.

–Zac, quem era aquele homem? – questionei.

–Eu não sei, to tão chocado quanto você.

–O que ele falou que você era? Filho de quem?

–Eu nem entendi direito J, nunca vi aquele cara na minha vida!

Analisei seu aspecto, mas era impossível não acreditar nele. Suas expressões faciais eram sempre impassíveis, e ele agora parecia muito calmo. Ou ele estava falando a verdade, ou mentia muito bem.

–Tudo bem – eu disse finalmente, tentando aliviar a tensão.

Ele passou o braço por meus ombros me trazendo para mais perto de seu corpo. Continuamos caminhando em silêncio contra o vento noturno.

Chegando em casa, pela primeira vez Zac entrou pela porta da frente. Ri ao lhe falar isso, que riu de volta me fazendo uma careta.

–Por onde estiveram? – meu pai ainda estava na sala, começando uma maquete na mesinha de centro.

–Eu te falei para onde íamos – disse Johnny, largando a mochila cheia de doces em cima do sofá.

Papai nos encarou, levantando as sobrancelhas. “Não pode ser...” disse baixinho, agora rindo. Johnny pegou a mochila de volta e subiu as escadas.

–Só não pegamos mais por culpa do amigo da Johanna – gritou lá de cima.

Só então papai pareceu notar Zac. Tirou os óculos e franziu o cenho ao lhe lançar um olhar analítico.

–Pai, este é meu amigo Zachary – eu o apresentei, e Zac desajeitado sorriu e foi o cumprimentar.

–Muito prazer senhor Dubrowsky – ele disse, em um aperto de mãos.

–Gostei dos cabelos – disse meu pai irônico, o que nos fez rir.

–Obrigado? – Zac respondeu sem graça.

Subimos as escadas, enquanto eu bagunçava seu cabelo dizendo “gostei dos cabelos”. Recebi um “Vai se ferrar” risonho de resposta.

Já em meu quarto, despejei os doces sobre o tapete central, e nos sentamos um de frente para o outro em torno deles.

–Você conseguiu algum doce? – eu perguntei a ele.

–Na verdade eu prefiro as travessuras – riu ele, apoiando o spray ao seu lado.

–Cara, pichar dá cadeia – eu disse, soando mais careta do que pretendia.

–Não se nunca te pegarem.

Eu comia uma trufa enquanto Zac já em pé remexia meus vinis. Ele estava usando seu usual all star preto de cano médio. Dessa vez ele escolheu In Utero do Nirvana, e começou a bater as mãos nas pernas no ritmo da bateria quando Serve the Servants começou a tocar.

–Meu favorito. Sempre preferi esse álbum ao Nevermind – dizia fitando o disco girar. – Não é tão comercial, tem mais personalidade, as músicas têm mais a dizer.

–Eu o acho bem mais obscuro – comentei quando o solo de guitarra começou.

–Exatamente! – disse com um olhar excitado.

Sorri com sua súbita alegria. Ele se deitou ao meu lado no tapete e cantarolou a música de olhos fechados.

–Sua família é legal – ele comentou tempo depois.

–Até Johnny? – levantei uma sobrancelha.

–Ah, ele faz aquele tipo popular legalzão, mas me pareceu ok.

Ri com o estereótipo. De fato, Johnny sempre fizera sucesso com garotas e festas, e era muito bonito além de divertido. Acho que as qualidades da família acabaram indo todas para ele, pensei. Quando pequena eu insistia que queria ter os cabelos claros como os dele, e certo dia ele me disse que havia pintado com mel. Terminei aquele dia com o longo cabelo ainda castanho e todo melado, além de uma enorme bronca de mamãe que ficou horas e horas para limpar tudo. Com o tempo o cabelo dele escureceu, mas ainda havia o reflexo “cor de mel” em seus fios lisos.

–E sua família, quando irei conhecer? – brinquei.

–Espero que nunca – disse sarcástico.

–Você mora com eles? – questionei, lembrando-me da conversa com Oliver e todas aquelas especulações.

–Não mais... – ia dizendo, como quem estudava as palavras certas para continuar. – Meus pais agora moram em Bloomfield, cidade em que eu nasci e passei a infância inclusive.

Era a primeira vez que ele me falava sobre seu passado. Aproveitei a deixa.

–Bloomfield, para onde iremos sábado?

–Essa mesmo, gosto de matar a saudade de lá às vezes. Eu tinha muitos amigos lá, aprontávamos tanta coisa – dizia com os olhos iluminados, vislumbrando lembranças.

“Olha só” ele disse de repente como se lembrasse de algo, e começou a desabotoar as calças rasgadas.

–Zac, o que você vai... - comecei a dizer.

–Calma J - interrompeu-me ele.

Quando ele desceu as calças até os joelhos, revelaram-se algumas tatuagens old school caseiras desbotadas que tinha pela pálida coxa. Respirei aliviada, rindo ao perceber que era isso que ele queria me mostrar. E era uma das poucas vezes que ele revelava tanto de si mesmo.

–Eu mesmo fazia com meus amigos, olha que tragédia – dizia ele rindo. – Éramos bem idiotas na verdade.

–Uau – falei, admirada.

Havia pequenos símbolos e algumas escritas que pareciam ter sido feitas com caneta, sem o cuidado de serem esteticamente bonitas. Mas até que eram. Algumas eram bem feitas, outras pareciam obras de um bêbado – o que provavelmente foram.

–As piores foram resultados de noites um pouco embaçadas – disse como se lesse meus pensamentos.

Ele usava uma samba canção preta que contrastava com sua pele.

–Gostei dessa – disse apontando para a escrita ”live fast die young” no centro de sua coxa, no mesmo estilo “escrevi minha tatuagem como se estivesse escrevendo em um caderno” das outras. Porém tinha a caligrafia mais bonita.

–Essa eu mesmo quem fiz. Hoje eu odeio ela.

Quando ele finalmente subiu as calças, retomei o diálogo.

–Como você veio parar aqui então?

Ele se levantou e encostado em minha estante, cruzou os braços.

–Meu pai foi transferido para o hospital daqui, ele era um médico psiquiatra. Bem, e eles achavam que meu comportamento era problemático devido às “más influências” que eu tinha em minha antiga cidade. Mal sabiam eles que eu quem era a má influencia dali – riu ele, amargamente. – Diziam que eu não tinha autocontrole e coisas do tipo. Então viemos parar aqui alguns anos atrás. Aparentemente não funcionou.

Concordei com a cabeça, enquanto analisava o que ele dizia. Suas histórias pareciam ter furos de acontecimentos, como se ele deixasse a parte mais importante de fora. Ele tirou um isqueiro do bolso e começou a acender e apagar repetidas vezes, mirando a chama.

–Bem, eu sempre gostei muito de chamas. Mas um dia aconteceu um incidente – começou ele a dizer. – Acidentalmente eu coloquei fogo no meu quarto.

Então ele riu ainda fitando a chama do isqueiro, como quem ri de algo que uma vez fora ruim, mas se tornou engraçado com o tempo. Com a chama ainda acesa, ele observou minha parede com meus desenhos e seu retrato colado. Seu rosto parecia macabro sob a luz trêmula do fogo.

–Obvio que meus pais não acreditaram né. Então fui expulso de casa.

Estreitei os olhos.

– Sério? E eles se mudaram e você ficou, simplesmente?

–Praticamente isso – decretou, sentando-se ao meu lado.

Percebi que não arrancaria mais nenhuma informação dele.

O disco chegou ao fim e ficamos em silêncio. Ele se deitou em meu colo e fitou o teto como se revivesse memórias, enquanto eu ponderava as histórias vagas que ouvi.

x x x x

O dia seguinte amanheceu com nuvens escuras, ameaçando chuva a qualquer momento. Indo para a escola, ao passar pela praça central, vi que um palco era montado e caixas de som distribuídas, além de luzes e decorações fantasmagóricas por toda a parte. Uma série de estandes e barraquinhas também se instalavam ali, e uma mulher de meia idade com uma longa saia dava ordens para o pessoal que montava tudo. Seus cabelos eram curtinhos, haviam flores e símbolos tatuados em seu braço e ela usava enormes anéis de pedra. Percebi que Laurie estava ao seu lado, e me aproximei.

–Laurie! – Chamei. Ela se virou para mim e seu rosto se iluminou.

–J! – disse ao me abraçar.

Havíamos nos tornado amigas e eu nem tinha percebido.

–Estamos organizando o festival de Samhain pra amanhã, eu e minha mãe fazemos parte da comissão.

A mulher então se virou para nós com um sorriso pacífico e me cumprimentou. Aquela era a mãe de Laurie! Era tão previsível, mas eu ainda estava surpresa. Seus olhos eram negros como os da filha.

–Então você é a famosa Johanna? – ela sorriu quando concordei – Laurie falou de você! Parece ser uma boa garota. – suas pulseiras tilintavam em seu braço conforme ela gesticulava.

Ri ao lembrar-me de quando Stan contou que a mãe dela também era meio bruxa.

–Laurie, prepare a playlist pra tocar enquanto as bandas não se apresentarem. E por favor, menos The Cure esse ano – ela disse rapidamente se dirigindo a filha.

Ao ver minha expressão confusa, ela explicou:

–Essa é a banda favorita da Laurie, e se eu deixar ela só coloca isso.

Laurie revirou os olhos.

Segui para o colégio, onde só se falava do feriado. Combinei encontrar Stan, Izzy e Nathan amanhã no festival depois de ir à Bloomfield. A manhã de sexta passara correndo.

Voltando para casa, um temporal começou a cair. Abri meu guarda chuva e prendi meus cabelos em um coque, apressando o passo em direção a minha casa. No percurso vi uma silhueta familiar, atravessando a pequena ponte sob o riacho que dividia meu bairro do centro, caminhando em minha direção. O enorme guarda chuva negro cobria metade do rosto, mas o maxilar largo e o elegante casaco preto eram suspeitos.

–Oliver? – chamei. Ele levantou o guarda-chuva e pude ver seus olhos cinzentos.

Ele acenou enquanto se aproximava, mas não parecia exatamente feliz em me ver.

–Hey, Johanna – disse quando chegou mais perto.

Notei que ele havia cortado os cabelos, onde a mecha da frente um pouco mais longa formava um charmoso topete.

–Uau – falei, colocando para trás a mecha que caia em sua testa. – Gostei do cabelo.

Ele sorriu agradecendo, mas parecia um pouco deslocado.

–O que você tava fazendo em meu bairro? – perguntei me dando conta de que ele voltava de lá a pé.

–É que eu gosto de fazer caminhadas.

–Na chuva? – levantei uma sobrancelha.

–Quando eu saí não chovia – disse parecendo irritado. – Costumo fazê-las diariamente, mas pela floresta, talvez por isso nunca tenha me visto. Conhecendo os caminhos da floresta você pode ir a qualquer lugar da cidade sabia?

Levantei as sobrancelhas e concordei com a cabeça, mas ainda achava duvidoso ele ter saído apenas para caminhar. Vi que ele trazia em baixo do braço seu livro misterioso de feitiços, o qual ele desconhecia meu conhecimento. De certa forma Oliver me subestimava.

–E por que você tá voltando pela estrada, caro desbravador de florestas? – perguntei irônica.

–Na verdade eu não queria sujar meus sapatos – falou ele com um sorriso de lado, o que me fez rir. Ele usava elegantes botas escuras, aparentemente de couro.

–Tenho que ir agora J, me desculpe a pressa – ele disse imediatamente. Então ele me deu um beijo na bochecha e sussurrou em meu ouvido, me fazendo arrepiar com seu hálito gélido:

–Te vejo amanhã no Samhain.


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