Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 24
Doces ou Travessuras




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Algumas semanas se passaram enquanto eu via a cidade se transformar no clima de Halloween. O outono havia se manifestado definitivamente com sua brisa que corava minhas bochechas, e poucas folhas restavam nas árvores. Isso deixou a paisagem um pouco mórbida, porém não menos majestosa. Eu havia presenciado o momento único de ver papai e Johnny tentando desastradamente pendurar enfeites em nossa casa, enquanto eu espalhava as lanternas de abobora que havíamos confeccionado por todo jardim.

–Mais pra direita! – gritava papai segurando a escada em que Johnny estava, e lá de cima pendurava luzinhas vermelhas.

–A minha direita ou sua direita? – ele gritava de volta.

–A sua... Não, a minha, a minha!

Eles haviam pendurado luzinhas pisca-pisca vermelhas nos arredores do telhado baixo e teias fictícias, junto a outras lanternas macabras. Um lustre negro gótico foi colocado na entrada sobre a porta principal, entre outros adornos que papai havia encontrado em antiquários dali.

–Isso é realmente necessário? – perguntei pessimista, me aproximando de papai.

–Claro que é! É Halloween, espera que eu tenha uma casa vitoriana e não a decore como se deve? – ele retrucou.

Não era o tipo de discussão que você gostaria de ter com um arquiteto. Dei os ombros e um leve chute na escada, que fez Johnny gritar e todos nós rirmos. Tive seu dedo do meio como resposta. Foi uma tarde divertida aquela.

Meus episódios de sonambulismo haviam cessado desde o dia da conversa com Laurie. Passei a meditar, ou tentar, enquanto enchia a casa de incensos e pedras que eu mesma coletava na floresta. Naquele mesmo dia, durante minha primeira meditação no jardim de trás, Zac apareceu.

–Desde quando você faz isso? – sua voz me fez abrir os olhos imediatamente, e vi um Zac com seu típico ar displicente encostado em uma das árvores do jardim, fitando-me.

–Desde quando você está aqui?

–Cheguei há poucos minutos – disse, aproximando-se de mim. – Mas quis contemplar um pouco antes de interromper. Tudo bem com você J?

–Comigo sim... Mas e você? – eu não o via desde o incidente na floresta.

Ele se sentou com pernas cruzadas de índio na minha frente e colocou a touca de seu enorme casaco azul escuro, deixando apenas algumas mechas douradas do cabelo para fora.

–Eu to ok. Senti sua falta pra falar a verdade – ele sorriu e olhou para baixo. Dei um meio sorriso, um pouco sem graça. – Está tudo bem mesmo? Parece preocupada...

–Devo parecer mesmo, é difícil se acostumar com suas visitas relâmpagos não é Zac? – ri para descontrair, mas a fala foi séria.

Ele parecia ter acesso à minha casa como e quando quisesse. Dessa vez foi Zac quem se limitou a sorrir, contido.

–Você não ficou brava de verdade com nossa peça na floresta não é? – perguntou ele depois, com olhar triste.

Parecia ter muito medo de me magoar.

–Não, não tem nada a ver, é outra coisa. – respirei fundo. Seus olhos pareciam sugar a verdade de mim. Eu teria de contar.

Expliquei para ele toda a sequencia de acontecimentos de meu sonambulismo, incluindo os detalhes e excluindo o fato de eu o ter visto em um deles. Ele assentia atentamente ao que eu dizia, mas não pareceu surpreso como Laurie. Era como se... Como se ele já soubesse.

–Sei como são essas piras, já passei por muitas delas quando... bem, um tempo atrás. Mas quero que saiba que pode contar comigo, Johanna. Eu posso te proteger se você quiser... – disse lentamente, enquanto pegava minhas duas mãos com as suas, frias. Então olhou fundo em meus olhos, e completou firmemente:

– Eu não vou deixar nada, nem ninguém, machucar você.

Tive um calafrio. Aquela súbita proteção eu não esperava.

–Zac, não precisa se preocupar... – comecei a dizer baixinho, mas fui interrompida.

–Não preciso, mas eu quero. E eu vou – seu olhar foi desafiante.

Continuei o encarando séria, quando desisti e sorri. Ele deu aquele seu sorriso vivo de enrugar os cantos dos olhos e me abraçou, e por alguns segundos eu pude esquecer tudo e aproveitar apenas o calor do seu abraço.

Naquela noite e nas que a seguiram, Zac dormiu em meu quarto para o caso de eu sair andando por aí na madrugada. Eu ficava em seus braços até adormecer, mas sempre que me despertava pela manhã ele já não estava mais lá. Ele era muito ágil e rápido, então nunca o haviam flagrado ali. Aproximamos-nos bastante durante esse tempo, mas ele sempre parecia ter um pé atrás para não se entregar totalmente. Parecia continuar sempre escondendo algo, soturno, correndo de volta para as sombras quando chegava perto de revelar alguma coisa. Eu iria descobrir o que era.

Sentada na minha janela observando a vista noturna e as abóboras acesas no jardim, relembrei todos esses momentos com um sorrisinho bobo querendo se manifestar. O Halloween seria em poucos dias, e Abby não parava de falar sobre. Estava muito animada. Nos víamos sempre, e ela narrava milhares de planos e roupas que pretendia usar. Ela soube sobre meu sonambulismo e sobre Zac ter me vigiando durante algumas noites, mas estranhamente pareceu não se importar com isso.

De repente, a porta atrás de mim se abriu. Johnny entrou e se jogou na minha cama.

–O que vai fazer no sábado, J? –ele se referia à noite de Halloween.

–Vou sair com meus amigos. Querem ir para Bloomfield ou algo do tipo, mas passaremos no festival da cidade antes.

–Ah, que entediantes vocês são – disse indiferente, ainda deitado. – Ei J, que tal irmos pedir doces ou travessuras? – seu rosto se iluminou.

–Não pode estar falando sério...

Pedir doces ou travessuras sempre fora nosso passatempo favorito do feriado na infância. Em todos os dias da semana que antecediam o sábado, saíamos pedindo pelas ruas.

–É seríssimo irmãzinha. E me refiro a agora.

O fitei incrédula, esperando que a qualquer momento ele risse da minha cara por ter acreditado. Mas esse momento não chegou.

–Agora? – perguntei desafiadora.

–Agora – afirmou ele, levantando-se subitamente.

x x x x

Descemos as escadas correndo, pegando nossos casacos pendurados na entrada e seguindo rumo à rua.

–Aonde vocês vão juntos essa hora? – ouvi papai perguntar da sala.

–Pedir doces, pai – Johnny respondeu antes de fechar a porta.

–Aham, e vocês acham que eu vou acreditar numa dessas – riu ele com desdém em resposta, mas já estávamos longe para responder.

A rua iluminada pelas luzes dos postes parecia mágica e nostálgica. Eu olhava para Johnny e ele me olhava de volta com excitação. Sentia encenando a mim mesma de anos atrás, mas em um cenário diferente. Atravessamos nossa quadra na qual a rua cercada pelas árvores formava seu corredor verde, e chegamos até a outra, repleta de casarões antigos.

–Você aperta – falei na varanda de entrada do enorme chalé rodeado por arbustos.

–Medrosa – disse ele debochado, apertando a campainha repetidas vezes de propósito.

Uma mulher muito magra meia idade veio nos atender. Ela tinha os cabelos curtos e não ruivos, mas sim vermelhos, e usava óculos peculiares.

–Doces ou travessuras? – Johnny quem disse, animado, erguendo sua mochila surrada como se fosse uma cesta.

A mulher nos analisou por cima dos óculos e soltou um risinho.

–Hm... Não estão meio crescidos pra isso não?

–Que isso senhora, a crescer é um estado de espírito – ele respondeu animadamente, como fazia sempre que conversava com mais velhos.

Ela entrou desconfiada e voltou alguns minutos depois com uma barra de chocolate.

–Dividam entre vocês – disse colocando metade na mochila de meu irmão, e a outra na minha bolsa. Observei como suas mãos eram finas. – Isso é tudo produto industrializado sabe, nem deveriam comer. Trazem essas porcarias pra mim, mas eu nem como. Prefiro o que planto na minha horta. Vocês deveriam fazer uma também, sabiam?

Ela apontou para um canto de seu jardim, onde havia uma pequena horta repleta de vegetais. Sorrimos e concordamos.

–Odeio verduras – Johnny declarou comendo seu chocolate quando já estávamos longe.

Andamos mais um pouco e paramos em frente à casa seguinte, uma pequena vitoriana com duas torres que a faziam parecer um pequeno castelo. Dessa vez eu quem fiz as honras.

–Doces ou travessuras? – perguntei quando um homem alto muito branco abriu a porta. Seus cabelos pretos oleosos ficavam grudados na cara, e ele vestia um casaco que parecia uma capa preta. Se algum vizinho fosse um vampiro, aquele cara seria o suspeito número um.

–Quem está aí? – uma voz feminina falou de dentro da casa.

–São jovens, querida – o homem respondeu sem expressão, ainda nos olhando. Sua voz era constante e rouca. – Arranje doces, ou teremos encrenqueiros.

A mulher apareceu à porta, com um vestido também preto e os cabelos loiros soltos. Atrás dela, um menino gordinho e uma pequena menina de tranças nos observavam.

–Ah eu adoro o Halloween! – disse ao colocar balas em nossas mochilas. Ao contrário do marido, ela era expressiva e alegre. – Onde estão suas fantasias, garotos?

–Ahn, estamos guardando pro sábado – enrolei.

–Não incomodem mais – o homem disse subitamente, fechando a porta. Eu e Johnny nos entreolhamos, dando os ombros.

–Ok, não somos mais a família Adams oficial da rua - ele disse, me fazendo rir.

Continuamos passando de casa em casa, campainha por campainha, enquanto nossas bolsas se enchiam de porcarias. De repente um som de algo sendo arremessado no fim da quadra nos chamou atenção. Na casa da esquina, um velho saía porta a fora gritando:

–Maldição! Achei que já tinha me livrado desses delinquentes!

No portão de sua garagem, uma enorme pichação secava. Por entre os arbustos, um Zac escondido com um sorriso travesso nos fazia sinal para ficarmos em silêncio, ainda segurando uma lata de spray.

–Quem é aquele carinha, J? – Johnny me perguntou baixinho, ainda olhando a cena com o sorriso no rosto que fazia quando via caos.

–Melhor você nem saber... – Respondi no mesmo tom, divertindo-me com a vista.

Quando o velho finalmente desistiu e entrou praguejando, fui em direção a Zac que rindo também veio ao meu encontro.

–Mas que diabos foi isso? –perguntei, franzindo o cenho.

–Travessuras pré Halloween, ele não me quis dar doces, então... – disse, olhando para cima com um ar ironicamente inocente.

–Também estamos pedindo doces – Johnny disse atrás de mim. – Que tal se juntar a gente?

Zac assentiu, balançando a tinta spray em suas mãos com um olhar desafiante. Meu irmão e ele pedindo doces comigo. Aquilo ia ser engraçado.

–Vamos tentar nessa casa – disse Johnny animadamente indo em direção à entrada da casa em que nos encontrávamos a frente.

–Nessa? – Zac pareceu preocupado

–Por que, algum problema? – Johnny perguntou.

–Não, nenhum. – respondeu rapidamente.

A grande casa rosada tinha dois potes de luz de velas, e várias abóboras iluminadas na entrada. Johnny apertou a campainha.

–Doces ou travessuras?

O homem que atendeu tinha os cabelos grisalhos, e um ar amigável.

–Ah, jovens! Como é bom ver as tradições se perpetuando em gerações!

Sorrimos em resposta, aguardando os doces. Zac olhava para baixo e parecia nervoso, apertando os dedos compulsivamente.

–Lembro-me do tempo que estas ruas tinham mais espírito jovem, bom ver que está se renovando.

De repente, o homem olhou Zac estreitando os olhos, como quem puxava alguma memória antiga.

–Rapaz, você me lembra tanto um garoto...

Ouvindo essas palavras, Zac levantou os olhos azuis para ele, e percebi o homem abrir a boca em uma expressão de pânico. Ele ameaçou cair, se segurando na batente da porta. Eu e Johnny nos entreolhamos, confusos.

–Meu deus! Você é o filho dos Walker! – ele exclamou, tremendo.

Zac o fitou sério, enquanto o homem cobria a boca com as mãos trêmulas.


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