Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 22
Porta dos fundos




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Guardei o papel de volta em meu bolso e fechei o livro discretamente de maneira rápida, afastando-o para trás junto aos outros. Tirei meu celular do bolso, para fingir que estava me ocupando nele. Alguns segundos depois, Oliver estava atrás de mim.

–Tudo bem aí? – disse ele, analisando a mesa com os olhos.

–Tudo sim – retruquei, calmamente – Por que parou a música?

–Meus dedos precisam de descanso às vezes.

Ele ainda me olhava meio desconfiado quando sutilmente pegou a pilha de livros à minha frente, que incluía o misterioso livro de feitiços. Eu fingia não notar, ainda mexendo em meu celular. Ele os pegou e dirigiu-se até a estante, que ficava a frente do degrau que dividia o loft em dois níveis.

Organizadamente, ele recolocou um por um.

–Oli, acho que devo ir pra casa – comentei.

Já estava próximo do horário em que eu costumava chegar da escola.

Ele fez um ruído afirmativo, ainda de costas enquanto terminava de arrumar os livros. Depois, voltando-se para mim novamente, continuou:

–Quer que eu te acompanhe em casa? – ofereceu, em um tom educado.

As mangas de sua blusa estavam arregaçadas, deixando a mostra o cervo tatuado no braço. Aceitei a carona.

Descemos do prédio pelas escadas externas de incêndio, nos fundos, onde a videira aos poucos começava a invadir com seus ramos. Oli olhou para mim e pegou minha mão, sorrindo. E em seguida, desceu as escadas correndo me levando junto. Comecei a gritar e rir, a escada era alta e sinuosa, parecia um zigue-zague em descida. Chegamos em segundos ao chão, eu quase caindo e ele me segurando em seus braços, dando risadas sonoras e divertidas que eu nunca tinha havia ouvido dele. Quando recuperamos o fôlego e o equilíbrio, me dei conta de que ele me abraçava. Ainda rindo, olhei para cima, e nossas testas se encostaram. Ele estava com o rosto inclinado sobre o meu, seus olhos acinzentados estavam tão perto que pareciam me prender em seu campo gravitacional.

–Vamos logo, ou iremos nos atrasar – disse suavemente, quase sussurrando.

Senti seu hálito gelado sob minha pele, como se ele estivesse com uma bala de menta na boca ou algo do tipo. Continuei sem reação, sem dizer uma palavra. Por algum motivo eu não conseguia parar de olhar seus olhos, enquanto o nervosismo percorria meu corpo temendo seu próximo ato. Mas, de maneira gentil, ele beijou minha testa e se afastou, tirando-me de meu transe subitamente. Em seguida ele atravessou a rua em direção ao carro. Segui um pouco desastrada, tentando acompanhar seus longos passos, ainda trêmula lembrando o que tinha acabado de acontecer.

No trajeto até minha casa, contamos histórias e rimos até chegar à minha rua, o que acabou sendo mais demorado devido ao movimento de meio dia: embora a cidade tivesse muitos adeptos ao andar a pé e de bicicleta, isso não eliminava totalmente o fato de que dirigir em horários de pico fosse um pouco mais trabalhoso. Saindo do carro, dei uma ultima olhada em Oli antes de me despedir, lembrando-me do nosso abraço e de seu olhar hipnotizante. Seu rosto e corpo eram dignos de admiração, de fato. Eu realmente gostava de Oliver, mas havia algo nele que não me deixava confiar totalmente... Talvez o ar esnobe que ele transmitia - embora fosse parte de seu charme - ou a quantidade de coisas que ele parecia saber e eu desconhecia.

Subi a rua enquanto ouvia o silencioso motor do carro se afastar. Observei como as casas da primeira quadra já estavam enfeitadas para o Halloween. Dali já se via minha, mais alta que as demais por estar no topo da subida e no fim da rua sem saída, imponente. Imaginei-a com enfeites e luzes macabras, rindo ao imaginar Johnny nos chamando de família Adams, coisa que sempre falava quando tinha oportunidade.

Entrando em casa, dei um olá para papai que estava na sala e almocei no balcão da cozinha, como fazia sempre que chegava da escola. Com Johnny na universidade praticamente o dia todo, meus almoços sempre eram monótonos e solitários, pois só nos reuníamos à mesa no almoço quando estávamos todos juntos aos finais de semana. Sei que papai provavelmente reclamaria em breve de eu estar muito distante, de novo. Mas no momento eu realmente não estava com muito ânimo para puxar conversa. Nossos assuntos raramente saíam das trivialidades ultimamente, então eu havia desistido de tentar. Isso me chateava.

Meu pai era um homem tão inteligente, eu podia ter conversas incríveis com ele tempos atrás, mas hoje ele prefere observar e ouvir ao invés de participar. Quando pequena, eu gostava de brincar de jogo dos porquês com ele. Eu perguntava o porquê de algo, e a partir de sua resposta eu o interrogava novamente, num ciclo sem fim. Papai conta com orgulho que eu nunca desistia, e ele nunca chegava à exaustão de dizer um “porque sim” encerrando a brincadeira. Nós dois éramos idênticos quanto à insistência. Minha mãe quem normalmente não aguentava mais e nos mandava parar.

Já de tarde em meu quarto, sentei-me à cama e abri cuidadosamente o papel, ou página arrancada, que Laurie havia me dado. Tratava-se do passo a passo detalhado de um denominado “feitiço de banimento”, escrito de forma narrativa dando a entender que fora relato de uma experiência própria. A caligrafia antiga e rebuscada tornou a leitura um pouco complicada, mas fui capaz de entender. O trecho que explicava o procedimento dizia:

Misture suas ervas favoritas junto às ervas essenciais de proteção (Na minha, coloquei verbena, sálvia, acácia, alfazema e ginseng). Em uma noite de lua negra, recite o feitiço de banimento ao ar livre, pingando seu sangue entre as ervas e proclamando as palavras em um círculo mágico. Feche as ervas em um pano e amarre-o, formando uma bolsa. Deixe-o na natureza durante toda a noite. Pendure por um fio em algum lugar que queira afastar energias e espíritos indesejados, e neste, apenas sua energia e seu espírito reinará”.

Logo abaixo, o encantamento que deveria ser recitado no feitiço estava escrito em uma língua arcaica que eu não entendia. Acho que Laurie esperava que eu tivesse o feito no dia em que ela me deu, por ter sido uma noite de lua negra. Será que ela realmente esperava que eu o fizesse? Ri com a possibilidade. No dia seguinte eu iria encontrá-la no colégio e perguntaria que diabos era aquilo. Guardei o papel na mochila e peguei nela o primeiro caderno que encontrei, onde comecei a desenhar quase que compulsivamente enquanto milhões de questionamentos afloravam em minha cabeça. Por que ela havia arrancado à página do livro de Oliver? Tinha também a hipótese de que Oliver havia roubado o livro dela. Ou melhor, será que o livro não pertencia a nenhum dos dois? Ele realmente absorveu meu sangue aquele dia ou eu estava ficando louca? Muitas perguntas e poucas respostas. Talvez eu nem devesse saber da existência do tal livro.

Parei de desenhar e me deitei olhando para o teto, meus cabelos caindo em cascata pela lateral da cama. Estralei os dedos e tentei não pensar em mais nada, ou eu ficaria louca. Fechei os olhos.

Johanna

Me sentei à cama, quase que de imediato. A voz ecoava no ambiente (ou seria em minha cabeça?), enquanto meus pés descalços tocavam o tapete.

Você me chamou...

A voz ecoava distante, minha cabeça latejava com minha pulsação acelerada e forte.

... Agora eu quem chamo você”.

Levantei-me, leve. Parecia que eu estava ligada no automático, sem real controle de meus movimentos e ações. Meus olhos embora abertos, não focalizavam nada em específico, como se minha visão fosse apenas um geral do que estava ali.

Venha comigo” a voz dizia, aquela mesma voz masculina de pronuncia cortês, com um sotaque antigo e elegante, não menos ameaçador.

A porta em minha frente se abriu, e eu desci a escada, degrau após degrau, sem piscar.

Isso, venha...” a voz continuava me guiando, incentivando-me a continuar a descida.

Estava tudo escuro. Chegando à sala principal um vento jogou as mechas menores do meu cabelo para trás. O vento vinha da porta dos fundos, que se abria lentamente, convidativa. Segui em sua direção, morbidamente, passos silenciosos e mecânicos.

De repente, uma figura apareceu sob a soleira da porta dos fundos.

–Johanna, volte!

Era difícil dar sentido as imagens, mas reconheci a voz de imediato: Zac. Vi um clarão vindo da porta, e a voz ecoava palavras furiosas que não consegui distinguir. Em uma fração de segundo, Zac estava em minha frente.

–Johanna, volte para seu quarto! – disse me segurando pelos ombros, enquanto me sacudia desesperadamente.

Eu tentava responder, mas não conseguia. Minha visão começou a ficar turva, meus ouvidos silenciaram o ambiente. A última coisa que vi foi Zac me olhando em pânico.

Acordei lutando para respirar. Dessa vez, olhei minhas mãos e me belisquei para ter certeza de que era real.

O sonho me pareceu tão vívido que minha cabeça ainda doía. Levantei-me e, para minha surpresa, estava tudo escuro. A porta de meu quarto se encontrava aberta, o que me fez estremecer instantaneamente. Olhei para meu relógio de cabeceira e passava-se pouco das três horas da manhã: eu não fazia ideia de como o tempo havia passado. O barulho de algo caindo veio da sala me situando naquela realidade confusa, de noite qualquer ruído parecia ensurdecedor.

Desci correndo as escadas, percebendo que papai e Johnny já dormiam. Chegando à sala, vi que um vaso havia caído de uma mesinha de canto, responsável pelo barulho que ouvi. Cuidadosamente o recoloquei no lugar, quando senti que ventava muito:

para minha surpresa, a porta dos fundos encontrava-se aberta.


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