Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 23
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Notas iniciais do capítulo

Estou planejando uma enxurrada de revelações muito em breve. Aproveitem a calmaria desse capítulo, pois coisas interessantes virão.



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O dia amanheceu e eu não havia fechado os olhos um minuto sequer. Li alguns livros, olhei para o teto, rabisquei papeis, olhei para o teto novamente. Tudo menos tentar dormir de novo. Eu havia passado as ultimas horas no telhado em frente a minha janela, esvaziando minha carteira de cigarros e enchendo meus pulmões de fumaça. Estava mais calma. O sonambulismo iminente e os constantes horários – sempre próximos das três da manhã – não podiam ser mera coincidência; estava acontecendo alguma coisa ali. Mas seria aquela casa? Era só comigo? Eu buscava um culpado, quando na verdade este só poderia ser eu mesma.

A última madrugada estava um pouco nebulosa em minha mente, mas eu tinha quase certeza de que fora real; afinal quem mais teria aberto aquelas portas? E aquela voz... O sotaque antigo e o modo cortês remetiam ambos a outras épocas. Então de repente uma ideia me surgiu e imediatamente gelei com a possibilidade: Leonard. Só poderia ser ele. Havíamos o provocado no ouija por algum motivo e agora ele viria atrás de mim eternamente. Era tudo o que eu precisava. E Zac, o que teria ele a ver com isso tudo? Por que ele estava sempre envolvido nos sonhos que me atormentavam? Com todas essas questões sem respostas em mente, o dia amanheceu e meu despertador tocou, trazendo-me de volta a realidade. Me vesti mecanicamente, colocando meus velhos jeans rasgados de novo e fui para o colégio ainda tomando um copo de café.

A caminhada pareceu demorar mais que o normal, consequência de minha mente cansada pelas horas a fio despertas e a ilusória cafeína em meu organismo. Chegando ao Masefield, enquanto percorria o longo corredor principal, encontrei Stan e seguimos juntos até a 212. Ele estava com sua barba ruiva feita, mas havia deixado apenas as costeletas, o que ficava ao mesmo tempo estranho e engraçado nele.

–Sentimos sua falta ontem J, o que aconteceu? – comentou ele, aí que me lembrei do fato de que havia faltado no dia anterior.

–Ah, é mesmo, eu acabei perdendo o horário e... – antes mesmo que eu precisasse inventar mais desventuras, ele concordou imediatamente e pôs se a tagarelar sobre como aquilo acontecia sempre com ele, e narrar ocasiões e histórias que já o haviam acontecido. Ah, Stan.

Na primeira aula, um monitor apareceu em nossa sala anunciando para irmos até o auditório. Percorremos todo o longo corredor de volta, chegando ao saguão principal e subindo as largas escadas de mármore que ficavam no lado oposto. No caminho, estátuas, semblantes e bandeiras cobriam os cantos e paredes. Depois de dois pavimentos, chegamos até uma porta dupla onde a placa metálica em cima indicava “Auditório”. Lá dentro, que mais parecia um grande teatro real, um mar de alunos parecia ter se formado, acomodando-se nas cadeiras estofadas e conversando no que formava um murmúrio geral.

Izzy, ali próxima do fundo, acenou para nós animada, e Stan correu até onde ela estava passando pelas pessoas agilmente. O segui apressando o passo, ainda contemplando o esplendor daquele local. Pinturas preenchiam o teto, como de costume nas salas importantes, o majestoso palco repleto de adornos e havia uma espécie de camarote nos arredores acima onde outros alunos se acomodavam. Quando alcancei Stan, ele já estava sentado junto a Izzy, Nathan e Laurie, e ao lado deles havia uma cadeira vaga, onde me acomodei.

–O que está acontecendo? – perguntei aos sussurros.

Stan me olhou como se fosse óbvio antes de responder:

–Hoje é aniversário do Masefield, J.

O aniversário do Masefield! Eu havia esquecido completamente. Pudera, com tantas coisas acontecendo, eu iria me preocupar com comemorações de meu colégio? Uma série de engravatados ocupavam as primeiras fileiras, e um deles se levantou dirigindo-se ao púlpito do palco elevado. Quando testou o microfone e anunciou algumas palavras, os murmúrios cessaram e o silêncio tornou-se quase que absoluto. A disciplina ali me impressionava. Longos minutos se passaram enquanto foram trocando-se os engravatados com o microfone, mas o discurso era igualmente entediante. Eu havia encostado a cabeça em Stan e bocejado ironicamente o fazendo rir, enquanto uma senhora grisalha de ar sábio falava lá na frente:

“Vocês sabem que nossa cidade tem tradição. E o Masefield está intimamente ligado a ela. Saiam nas ruas, vocês podem ver a arquitetura gótica convivendo com a renascentista em meio às nossas florestas e cachoeiras. E toda a nossa tradição sobrevive. Nossos irmãos celtas podem não estar mais aqui, mas ainda vivem entre nós, diariamente. Vejam, as florestas era seu território sagrado. Depois, com a idade média, estruturas góticas foram erguidas sob suas terras com intuito de serem templos sagrados. Mais adiante, com a renascença e o culto às ciências, o gótico se tornou obsoleto e edifícios clássicos surgiram. E em meio a isso tudo, nossa cultura continua. Quem sabe mais o que iremos erguer sobre essas terras? Seja lá o que for, a cultura sobreviverá.”

Quando ela concluiu, uma salva de palmas preencheu o local. Percebi que ela, anunciada como historiadora, era a senhora que cuidava da biblioteca dali e parecia muito querida por todos. Alguns rapazes nos camarotes assobiavam e gritavam, e por alguns minutos nem parecia que eu estava junto os disciplinados de instantes atrás.

Finalizada a cerimônia formal, fomos dispensados e seguimos como de costume para nosso terraço secreto. Lá, enquanto Izzie e Stan tagarelavam, puxei Laurie em um canto para que pudéssemos conversar.

–Coisas estranhas estão acontecendo - declarei.

–Bem, isto não é novidade... – ela retrucou irônica.

–Dessa vez é sério Laurie. Eu acordei no meu jardim ontem, e ouvi vozes! – embora falasse baixo, soei um pouco mais desesperada do que pretendia.

Ela levantou as sobrancelhas e pareceu também preocupada.

–Peraí, peraí. Me conta isso direito. Foi ontem?

–Na madrugada após o ouija

–Você fez o encantamento que te passei? – questionou, levantando dessa vez uma só sobrancelha.

–Que diabos era aquilo? Esperou mesmo que eu fizesse? – estava começando a me irritar. Ela fechou os olhos devagar e respirou fundo. Com sua aura calma, falou tranquila:

–Calma J, tudo bem. Mas agora não há muito a ser feito. O feitiço era importante, mas eu estava com pressa, deveria ter te explicado antes sobre ele. Ele provavelmente evitaria isso tudo aí que você tá passando.

–Como assim? Laurie, por favor, pode ser direta e objetiva pelo menos uma vez? – meu tom era ríspido, mas ela não se ofendia nem perdia a calma.

–Johanna, aquele era um feitiço para afastar energias não propícias, ou vulgos “fantasmas” de sua propriedade. Mas é um ritual exclusivo da lua negra, você terá de esperar a próxima para realizá-lo.

–E até lá..?

–Episódios como esse poderão acontecer, pois é. – completou ela.

Revirei os olhos. Aquilo não podia ser aceitável. Era ilógico.

–E acha que irei conviver com isso assim, normalmente? Acha que eu to acreditando nisso tudo, aliás? Fantasmas! Era só o que me faltava!

–Johanna, acho que sua fixa não caiu ainda não é? O ouija não te fez refletir sobre nada? Infelizmente não sou eu quem deverá fazer você entender a proporção disso tudo, só você mesma. Desculpe-me por isso, eu queria tanto poder te ajudar! – ela pegou minhas mãos, com um olhar trágico. Sua mudança de atitude me assustou.

–Quer dizer então que você considera as vozes e o sonambulismo culpa de “energias não propícias”? – falei fazendo aspas nos dedos.

–É um caso clássico. Mas não se assuste, sério. Pode parecer muito louco, mas você não deve temer o outro lado, e sim o que está aqui, nesse plano, conosco – seu ar se tornou sombrio, juntamente com suas palavras ambíguas.

– Claro que esforço mental será necessário, mesmo no plano astral os desencarnados podem ser bem inconvenientes – riu ela sozinha ao dizer, como se aquilo fizesse sentido em alguma piada interna dela.

–Que tipo de esforço mental? – questionei.

–Deve ficar espiritualmente forte para combater isso. Escorpianos já têm naturalmente habilidades psíquicas, basta você se sintonizar a elas. Meditação, passar mais tempo próximo a natureza, incenso e pedras podem ajudar. E sempre acredite no que faz: está mais do que na hora de largar esse ceticismo todo.

Quando Laurie começava com suas técnicas pagãs não havia muito que fazer. Limitei-me a concordar com a cabeça, então ela pegou minha mão e colocou seu punho fechado sobre ela, deixando o colar de pentagrama que havíamos usado no ritual.

–Fique com isto, e use-o. Não é sua antiga ônix preta, mas também irá ajudar.

–Você acha que a voz que escuto pode ser Leonard? – coloquei para fora o que me afligia, ocultando a parte em que Zac apareceu.

–Bem provável J. Mas não se preocupe. Ele não pode te ferir, só no máximo te manipular. Isso a menos que você deixe.

Coloquei o colar no pescoço, deixando o por dentro da blusa. Quis acreditar que aquilo funcionaria.

Por fim, nos juntamos aos outros ali sentados, que conversavam animadamente. Stan devorava uma mini pizza vorazmente, enquanto Izzy narrava acontecimentos. Nathan, ao meu lado, observava tudo e às vezes fazia algum comentário. Ele pouco falava, mas quando se manifestava parecia ser ouvido por todos, como se tivesse certa autoridade. Seus cabelos cacheados estavam mais volumosos que o comum, e ele usava um par de vans surrados.

–Tudo bem com você? – ele perguntou, discretamente.

Havíamos tido poucas interações desde o dia em que ele me contou a lenda de Edward Mordrake.

–Tudo sim – respondi, tentando fazer a expressão mais impassível que consegui. – e com você?

–Tudo tranquilo – respondeu ele, com um sorriso.

Continuamos ambos apenas observando a conversa dos demais, enquanto eu absorvia todas as informações que me foram dadas colocando a mente em ordem. Acho que consegui compreender a companhia de Nathan. Finalmente entendi o valor do silêncio.


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