Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 19
Sintonia




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–Saia daqui Zachary, agora. – Laurie ordenou, ainda virada para mim.

–Ah Laurie, poxa, me deixa ficar de plateia... – seu tom era suplicante, de maneira irônica.

Ele ria e ainda olhava para mim enquanto falava com ela, o que deixava o diálogo entre os dois meio estranho.

–A sessão está encerrada – ela decretou baixinho, movendo o ponteiro de madeira até a palavra “Adeus” do tabuleiro.

Tiramos nossas mãos, e dessa vez ele permaneceu onde estava.

–Poxa, não precisava parar agora – disse Zac enquanto se sentava no banco de pedra, em baixo da árvore curva.

–Bem, já tínhamos feito o que precisávamos – respondeu Laurie ao se levantar, agora olhando para ele.

Ela fechou o tabuleiro e apagou as velas em um movimento rápido com as mãos.

–Agora invade meu jardim também? – perguntei enquanto me aproximava dele.

–Eu queria vir te ver de surpresa, não sabia que estaria ocupada – dizia enquanto esfarelava uma folha seca em suas mãos.

Como se todas as suas visitas não fossem de surpresa. Ainda parada em sua frente, o contemplei. Era estranho, mas eu não conseguia ficar com raiva dele. Às vezes ele parecia apenas uma criança perdida. Já em outras, quando eu olhava no fundo daqueles olhos azuis, nem tanto. Eles pareciam já ter visto muito. Pensei em como Zac nunca falava muito sobre si mesmo. Ele poderia ser qualquer coisa. Indecifrável.

–Já estou indo, me acompanha até o portão? – Laurie disse atrás de mim, interrompendo meus devaneios.

Ela já havia guardado tudo em sua bolsa e parecia pronta para ir embora. Atravessamos juntas todo o jardim de trás, que era ligado ao da frente. Minha casa ficava bem no centro do grande terreno. Chegando ao portão, ela parou em minha frente, ainda séria.

–O que aconteceu afinal? Você ficou toda estranha... – comecei a dizer.

Ela acendeu um cigarro enquanto fiz a pergunta.

–Bem, é perigoso termos a sessão interrompida desse jeito. E Zac não tem boas energias, já te falei sobre isso. Não era a pessoa ideal para se ter ali.

–Mas por que ele não tem? – insisti.

–Todo mundo reflete o que é em sua aura J, o que chamamos em síntese de “energia”. Você sabe como ele é, todo psicótico e instável... – ela começou a dizer, mas se conteve à isso.

–Como assim psicótico?

Instável eu sabia, lembro de um dia em que ele teve um surto com Abby e tudo mais, mas não era pra tanto, eu acho.

– Bem, estou falando demais, você quem tem de tomar suas próprias conclusões. A questão é que não se deve interromper sessões.

Me limitei a apenas concordar com a cabeça. Ela logo acrescentou:

–E ah, eu sei que vocês dois estão próximos. Sem querer ser intrometida, mas vi vocês dando as mãos no show noites atrás, e bem, para ele vir te fazer uma visita, vocês são mais do que meros conhecidos não é? – ela deixou a pergunta no ar enquanto dava uma tragada.

–O que você está insinuando Laurie? – perguntei, começando a mudar meu tom de voz.

–Não estou insinuando nada, acalme-se J. Apenas observei que você está próxima dele. E eu já havia te alertado sobre isso. Estou só reforçando o alerta, e te relembrar da responsabilidade dos seus atos. Se aproximar muito de Zac pode ser catastrófico de certa forma.

Eu já não estava entendendo mais nada. Quando Laurie começava com seus enigmas era melhor desistir. Ela adorava lançar questões e não explicá-las, me deixando cheia de dúvidas. Optei pelo silêncio novamente.

Abri o pesado portão preto e ela já estava do outro lado se despedindo de mim quando se lembrou de algo.

–Ah! Antes que eu me esqueça, aqui tem uma coisinha para você fazer – disse ela, me entregando por entre a grade preta um pequeno papel amarelado. – Chame de simpatia, feitiço, o que quiser. Mas o faça.

Antes que eu perguntasse qualquer coisa, ela se despediu apressada e seguiu rua abaixo, desaparecendo na escuridão da noite conforme se afastava.

Voltando para o jardim de trás, guardei o pequeno papel no bolso, seja lá o que aquilo fosse. Zac me esperava no mesmo lugar. Ele sempre se sentava com pernas cruzadas de índio, e dessa vez não estava diferente. Seus jeans eram rasgados nos joelhos, e sob seus olhos encontravam-se escuras olheiras.

Sentei-me ao seu lado e esperei que ele começasse.

–Pelo visto atrapalhei os planos de Laurie – disse sem tirar os olhos de suas mãos.

–Já tínhamos concluído o que queríamos fazer.

–Isso foi ideia dela né? – disse, agora olhando para mim. – Ela sempre inventa algum tipo de coisa dessas pra fazer.

–Foi sim, mas sinceramente, até achei divertido – respondi, me atendo a respostas curtas.

Ainda estava um pouco chateada com ele.

–Você acredita em fantasmas, J?

Pensei um pouco antes de responder. A essa altura eu já nem sabia mais no que acreditava.

–Bem, eu não costumava acreditar.

–Nossa, então essa sua perspectiva foi colocada em teste com um ouija? – ele riu.

Suas respostas vinham com novas perguntas.

–E você? Acredita? – rebati no mesmo estilo.

–Já fui como você. Costumava não acreditar também. Mas depois de me mudar para cá e ver tanta coisa esquisita... – dizia com um olhar distante. – Hoje já me parece absurdo dizer que só o que vemos é real ou existe.

Refleti suas palavras.

–Mas e se algo que eu não vejo de fato existir, que culpa eu teria de não acreditar? Somos humanos, precisamos de provas e fatos. A fé é um privilégio de poucos.

Ele levantou as sobrancelhas e consentiu com a cabeça antes de continuar:

–Eu sei, mas sei lá, deve existir algum lugar melhor além disso aqui não é? Seria injusto se não houvesse, para as pessoas boas... pessoas como você ao menos - sua voz foi ficando mais baixa conforme ele terminava a frase.

–E não você? - questionei.

A pergunta ficou no ar por alguns instantes. Por fim, ele respirou fundo e sorriu ao dizer:

–Mas eu ainda acho o ouija uma idiotice.

Um vento frio percorreu o jardim, jogando mechas do cabelo de Zac em seu rosto e bagunçando o meu. Ele parecia não sentir muito frio, enquanto eu me encolhia no casaco que usava sobre o vestido.

–Por que você veio hoje? – perguntei depois de um tempo em silêncio.

–Fiquei preocupado com o jeito que você sumiu aquela noite. Está tudo bem J? Você tá tão distante comigo, eu fiz alguma coisa? – sua preocupação era comovente.

–Quer saber o que você fez? Bem, você me visita através da minha janela quase que frequentemente enquanto sua namorada por algum motivo não pode saber, e ainda finge pros outros que mal nos conhecemos. É um pouco estranho não? – coloquei tudo o que me angustiava, ou parte, para fora. Precisava de respostas.

–Abby não é minha namorada.

–Isso é o que você diz pra si mesmo. Mas esse nem é o foco.

–Não, mas ela não é. Já expliquei isso pra você. Ela bem que quer que sejamos, mas eu não nos rotularia desse jeito.

–Se não quer que seja assim, deveria falar com ela, existe apenas amizade sabia? É uma alternativa. Mas por que estamos discutindo isso? – comecei a ficar nervosa.

Zac não alterava seu tom em nenhum momento, sabia ser muito calmo quando queria.

–Ah J, quer saber, me desculpe – disse subitamente. - É que Abby morre de ciúmes, mas eu gosto tanto da sua companhia! Parece que temos uma sintonia entende? – suas mãos acompanhavam sua fala, gesticulando. - Me sinto tão a vontade conversando com você sobre qualquer coisa, não dá pra ficar longe muito tempo. Pensei que podia ir levando isso desse jeito, mas foi injusto não ter te dado explicações.

Provavelmente corei.

–Ah... – estava sem resposta.

Não imaginei que fosse um motivo tão bobo. Ao mesmo tempo as palavras dele sobre minha companhia se repetiam em minha mente, me deixando lisonjeada e constrangida. Contive-me e dei a resposta mais lógica possível.

– Então que tal dizer à Abby que somos amigos e ela não tem o que se preocupar? Alguma hora ela terá que aceitar não é? Assim não precisa fingir que não me conhece direito quando ela está por perto.

–Tudo bem, eu vou falar com ela sobre isso. Sabe, faz dois anos que estamos juntos. Mas nos últimos tempos eu voltei a me sentir sufocado, e ela passou aos poucos a ser negligente em muitas coisas. Tive medo de surtar ou sei lá, acabar machucando ela. Não quero isso. Eu sempre machuco as pessoas – sua expressão era triste. – Ainda temos momentos bons, só que não é sempre. Mas enfim, desde que você chegou isso aqui se tornou um lugar melhor Johanna. Obrigado por ouvir minhas besteiras e abrir sua janela para mim.

Sorri em resposta às suas palavras, sem graça demais para formular uma frase. Permanecemos ali sentados no banco por certo tempo, um ao lado do outro, observando a escuridão.

Quando o frio já não me permitiu mais continuar ali, despedi-me de Zac com um abraço, que me prometeu uma saída com ele e Abby talvez amanhã.

Ele colocou as mãos nos bolsos de seu casaco e seguiu rua abaixo.

x x x x

Entrando em casa, meu pai que havia chegado há pouco estava sentado no sofá cercado de pranchetas e papéis como de habitual. Embora ele tivesse seu escritório ali em casa para isso, sempre foi um amante do sofá da sala. Desisti, antes mesmo de tentar, de ter uma conversa com ele. Meu dia tinha sido mentalmente cansativo, eu ainda nem havia digerido direito o fato de ter participado de um ritual em minha própria casa, muito menos a conversa com Zac e suas concepções sobre minha companhia. Subi as escadas rapidamente e no primeiro andar me deparei com Johnny parado em frente a uma das janelas que davam para o jardim dos fundos.

–Seus amigos são realmente bem estranhos.

Perguntei-me quanto tempo ele tinha ficado ali observando. Eu nem sabia que ele já estava em casa, não havia me dado conta do tempo passando aquela noite.

–Devemos ser bem interessantes então, pra você ficar aí de plateia... – eu já ia subindo para meu quarto quando ele me segurou pelo braço.

–Johanna, eu não sei o que vocês andaram fazendo com aquelas velas e esses vestidos pretos... – disse olhando em meus olhos muito sério. Comecei a me preocupar. – Mas só quero que saiba uma coisa: ainda tá cedo pra virar feiticeira garota! Primeiro você tem que continuar sendo complexada e esquisita, depois se frustrar mais um pouco, abrir uma lojinha meia boca de produtos místicos pra aí sim depois, quando estiver velha e amargurada, poder começar a investir pesado na feitiçaria.

Não sei por que eu ainda fazia questão de ouvi-lo.

–Johnny! – disse dando tapas em seu braço, enquanto ambos riamos.

Querendo ou não, ele era uma das poucas coisas ali que me ajudavam a manter a sanidade.

Já em meu quarto, troquei de roupa e me deitei. Em poucos segundos, meus olhos pesavam e em minha mente flashbacks do dia se repetiam incansavelmente, o que vinha se tornando comum. Não me dei conta exatamente do momento em que peguei no sono, mas em meu sonho via letras em um tabuleiro formando palavras as quais eu não conseguia acompanhar. As letras passavam cada vez mais rápido até que não vi mais nada. No completo breu, uma voz masculina elegante, com um sotaque cortês, ressoou fazendo eu me arrepiar.

“Johanna”

Todos os meus músculos se apavoraram. A voz me chamava. Tentei correr, mas senti que não saia do lugar. A voz disse de novo, ainda mais sinistra.

“Não deveria ter feito isso”

Dessa vez, em meio ao pânico, acordei.

A voz cessou e a realidade foi voltando aos poucos. Conforme saia do meu transe, senti meu corpo úmido e tenso. Quando me dei conta, meus olhos focalizaram uma paisagem diferente do meu quarto, que o vento frio confirmou: eu me encontrava deitada no gramado do jardim de trás. Instintivamente olhei o celular, que por algum motivo estava em minhas mãos.

Ele marcava três horas da manhã em ponto.


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