Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 20
Vultos, Túnicas e Punhais


Notas iniciais do capítulo

Chegamos ao vigésimo capítulo! Obrigada a todos que estão acompanhando, pelo apoio e inspiração.



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O vento havia parado e o gramado estava úmido de sereno. Uma coruja piava ao longe e grilos cantavam serenamente. Levantei-me um pouco tonta, ainda assustada e confusa. Era uma noite de lua negra, nome dado aos últimos três dias de lua minguante em que não é possível vê-la no céu. Noites assim são completamente sombrias, a paisagem noturna fica sem seu brilho perolado habitual. As únicas luzes que eu via vinham das antigas luminárias do jardim, pelas quais me guiei até a entrada de casa.A porta dos fundos estava entreaberta.

Como fui parar ali?

Eu não fazia ideia. Subi as escadas cambaleando um pouco olhando constantemente pelas janelas, a fim de analisar o jardim em uma tentativa nula de conferir se via algo que ajudasse a esclarecer o que aconteceu. Eu estava muito perdida. Não pude deixar de relacionar isso ao ouija, que deve ter me deixado perturbada. Sim, só podia ser isso. Eu nunca havia tido episódios de sonambulismo antes, não fazia sentido isso começar agora.

Já em meu quarto, não consegui mais pegar do sono. O relógio marcava cinco horas quando desisti de ficar deitada e decidi desenhar. Sempre funcionava. O mesmo estilo de desenho, com paisagens e fragmentos de memórias, preenchia as folhas de meu sketchbook. Costumava desenhar com caneta nanquim, deixando meus desenhos sempre no preto e branco, um pouco rabiscados. Eu gostava desse efeito e do jogo de sombras que o nanquim proporcionava.

Conforme o céu amanhecia nublado, meus olhos começaram a pesar. Aquele definitivamente não seria um bom dia para ir para o colégio. Vesti meus velhos jeans rasgados com um longo suéter preto e desci para a cozinha, onde tomei um rápido café. Com minha mochila nas costas, saí sem muita certeza de para onde iria. Andando pelas ruas de meu bairro, ainda vazias nesse horário, observei as montanhas no horizonte da paisagem. As nuvens se encontravam opressoramente baixas, ocultando o amanhecer. As luzes dos postes se apagavam aos poucos enquanto as casas pareciam ainda dormentes. Algumas delas já estavam com decorações de halloween, assim como as vitrines do centro, sempre antecipadas. Eu estava passando por uma ponte que passava sobre um riacho, quando senti meu celular vibrar. Havia uma mensagem:

“Está passando pela ponte não é?
Se não tiver planos, venha pela esquerda, seguindo o riacho.
Abby.”

Como ela havia conseguido meu número, ou sabia onde eu estava eu não fazia ideia. Mas de fato eu não tinha nenhum plano, e ela parecia saber disso também. Eu já estava começando a ficar bem familiarizada com trilhas, então não teria dificuldade em sair da estrada e seguir a margem do riacho adentro. Decidi ir, sem pensar muito nas consequências. Aquilo era bem a cara de Abby, imprevisível.

O riacho era relativamente largo, e em sua volta crescia uma baixa vegetação com flores silvestres. Mais à frente ele entrava no bosque de meu bairro, o mesmo que em algum ponto dava em minha rua. Segui o percurso entre as flores até adentrar entre as árvores. Ao contrário da área atrás da minha casa, íngreme e seca, aquela parte do bosque era plana e muito escorregadia, com o chão coberto de musgo em algumas partes. Ocasionalmente enquanto andava, eu ouvia algum barulho e parava por precaução, ficando imóvel para ver de onde vinha, e só depois de constatar que não era nada, prosseguia a caminhada.

Cerca de dez minutos sem encontrar ninguém eu já estava começando a cogitar a possibilidade voltar. Havia adentrado bastante o bosque e embora ainda seguisse a trilha, eu não sabia onde estava nem onde aquilo iria dar. Olhei em volta, os pássaros cantavam e cogumelos cresciam em um tronco atravessado no caminho. Tirei minha mochila das costas, com sorte haveria algum caderno e caneta perdidos nela prontos para algum rabisco de improviso.

Quando comecei a vasculhá-la, um som me fez instintivamente olhar para minha esquerda. Foi como se algo tivesse passado por ali muito rápido, deixando para trás apenas o deslocamento do ar. Permaneci imóvel, observando e escutando tudo ao meu redor atentamente. Após alguns minutos sem nenhum movimento, relevei. Cautelosa, tornei minha atenção para a mochila. Onde estaria aquela maldita caneta? Voltei a vasculhá-la. Foi então que um enorme vulto passou por minha visão periférica, dessa vez à minha direita.

Um choque de tensão percorreu meu corpo, e novamente olhei tarde demais: já não havia mais nada ali para ser visto. Não consegui mais ignorar, precisava dar um fora dali o mais rápido possível.

Só que quando me virei novamente para pegar minha mochila, eu já não estava mais sozinha.

Alguns passos à minha frente, alguém vestindo uma longa túnica preta com um enorme capuz, de modo com que seu rosto ficasse oculto, estava de pé diante de mim, inerte. Sua mão, a única parte exposta, segurava um punhal prateado repleto de adornos. Instintivamente me levantei e dei um passo para trás, passando por cima do tronco. Foi quando o pior aconteceu: senti que esbarrei minhas costas contra algo da minha altura. Arfando, me virei lentamente, mantendo o encapuzado da minha frente em meu campo de visão.

E para meu infortúnio, o que ali estava deixava tudo ainda pior: em pé atrás de mim, havia outra pessoa usando aquela mesma túnica. Só que esta não esperou muito. Em um movimento rápido, ela me segurou, prendendo-me com seus braços por trás. Nisso, o encapuzado da frente veio em minha direção, segurando o punhal apontado para o meu peito. Em uma fração de segundo, eu estava imobilizada no chão.

Comecei a gritar e espernear tentando desesperadamente me libertar dali, mas sem sucesso. Ambos estavam ajoelhados em torno de meu corpo trêmulo, um de cada lado. Meu coração já estava à beira de um ataque e o sangue fervia nas veias, quando um deles apoiou o punhal no meu peito, segurando-o com as duas mãos. Senti a ponta fria da lâmina sem corte atravessar meu suéter e tocar minha pele. E então ouvi risadas abafadas.

–Vamos parar com isso – a voz me pareceu familiar, mas não reconheci de imediato em meio ao meu pânico.

Os risos viraram gargalhadas, quando ambos saíram de cima de mim abaixando os capuzes.

Abby e Zac riam sem parar.

–Travessura de Halloween J! – Abby disse sem fôlego enquanto ria.

Zac largou o punhal de prata no chão e continuou rindo, mas parou quando viu minha expressão furiosa.

Permaneci séria antes de reagir, não achando realmente nenhuma graça.

Filhos da puta, eu vou matar vocês! – disse me levantando rapidamente e dando um soco no peito de Zac, que me abraçou enquanto eu me esperneava para que me soltasse.

Força não era uma das minhas qualidades. Ainda sentia meu corpo trêmulo pelo choque de adrenalina.

–Eu mato você também J, agora se acalme, foi ideia da Abby – disse ele, tentando conter o riso.

–Eu não agi sozinha – ela ainda ria muito.

De repente ouvi palmas crescentes vindas de trás de mim. Quando me livrei dos braços de Zac ainda zangada, virei e vi Oliver surgindo, batendo palmas ironicamente.

–Ótima performance caras. – seu tom era sarcástico.

Ele estava muito elegante usando seu casaco sobretudo preto.

–Oli é um chato, não quis nos ajudar – Abby forçou um tom triste.

–O fato de eu ter ficado em silêncio já foi de grande ajuda viu? – disse, levantando as sobrancelhas e sorrindo.

Zac o olhava seriamente, enquanto Abby ria sem parecer notar a tensão no ar. Havia algo de estranho entre eles hoje.

–Vocês são muito idiotas – falei chutando as folhas aos meus pés, trazendo a atenção deles de volta a mim. - E se eu fosse cardíaca, já pensaram nisso?

–Foi um risco que tivemos de correr – Abby rebateu, levantando uma sobrancelha.

Vendo que eu não estava brincando, ela sorriu e me deu um abraço ao qual não correspondi. Sentei-me de volta no tronco.

–Tá tudo bem? – Oliver disse baixinho, sentando ao meu lado.

Não respondi. Ele continuou:

– Abby propôs essa brincadeira idiota quando achou as túnicas e esse punhal aqui na floresta. Devem ser sobras de algum ritual, ou talvez das bruxas que vivem secretamente em nossos bosques como te falei – riu ele, piscando pra mim.

Peguei o punhal das mãos de Oliver, e o analisei enquanto respirava profundamente. O cabo era todo trabalhado em prata, que estava escurecida e suja provavelmente pelo tempo. Levei o punhal na altura dos olhos. Na lâmina de dois gumes, vi meu rosto refletido, e em segundo plano, Zac parado atrás de mim.

Virei-me rapidamente, mas ele não estava ali. Oliver me lançou um olhar interrogativo. Acho que eu estava começando a ficar louca. Zac estava conversando com Abby mais atrás, enquanto tiravam suas túnicas. Em seguida, vieram até nós e se sentaram a nossa frente, no chão.

–Você vai passar o Halloween com a gente não é? – perguntou-me Zac.

Ele vestia um suéter listrado muito surrado.

–Vou pensar no caso de vocês... – aos poucos minha raiva estava passando.

–Ah, venha! – Abby pediu, animada – Aí podemos assustar outras pessoas juntos, arrumo uma túnica pra você – seu tom agora era provocante.

Os outros riram.

–Vem J, a gente vai com Laurie pra Bloomfield, a “maior” cidade aqui por perto – insistiu Zac, fazendo aspas com os dedos.

–Por que vocês vão pra lá? – perguntei.

–Eu sou de lá - revelou empolgado, sorrindo sem mostrar os dentes. - Bloomfield é incrível, conheço locais ótimos por lá. E é pertinho, não se preocupe. Mas voltaremos cedo, vamos dar uma passadinha aqui no festival de Samhain, Laurie nos mataria se não fossemos.

Abby assentia com a cabeça.

–Tudo bem, eu vou então... Você vai Oli?

–Na verdade não – ele respondeu, olhando para baixo. – terei uns compromissos nessa noite. Mas aproveite J – disse sério.

Tive a leve impressão de que ele não havia sido convidado.

Eu ainda segurava o punhal em minhas mãos, e manuseando-o distraída, sem querer cortei o dedo anelar. Os outros conversavam e pareceram nao perceber, então imediatamente levei minhas mãos ao bolso, onde meus dedos encontraram um pequeno papel dobrado. Reconheci aquele pequeno papel amarelado como o que Laurie havia me dado no dia anterior. Desdobrei com cuidado, revelando um manuscrito com uma caligrafia floreada.

Curiosamente, este parecia absorver o sangue de meu dedo, sem deixar nenhum sinal ou rastro vermelho em sua superfície.


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