Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 17
Relatos




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/600893/chapter/17

Acordei perturbada após uma longa noite de sonhos desconexos. O que mais me deixou assustada foi o último, o qual eu me lembrava com mais detalhes: eu estava jogando cartas com Zac em meu quarto, e chovia muito lá fora. Quando por algum motivo tentei sair da casa, não consegui. Ao atravessar a porta de entrada, eu estava novamente na porta dos fundos, e de novo, e de novo, num ciclo infinito. Enquanto gritava por ajuda, Zac me fitava em silêncio junto à menininha loira, que segurava um castiçal de velas. Ambos me dirigiam um olhar triste.

Tomei um café e segui para a aula, o vento fresco em meu rosto renovando minhas energias. Eu precisava falar com Laurie, que por algum motivo achei que pudesse me ajudar com tudo isso que estava acontecendo. Eu havia levado as fotos, os nomes, todas as informações que vinha reunindo. Ao chegar a 212, Stan estava sentado com Nathan tendo uma conversa animada.

Os dois me cumprimentaram quando entrei.

–E aí, J, tudo bem? – Nathan sorriu pra mim, estava mais descabelado do que de costume. Digamos que ele não fosse em geral um exemplar de garoto limpo e arrumado.

–Tudo sim, e com vocês? – respondi com naturalidade.

–Estamos organizando as fotos do nosso trabalho – disse Stan, aí que reparei que ele estava colando as fotos que tiramos do Masefield semana passada em uma cartolina preta. O aniversário do colégio estava se aproximando.

–Falando em fotos, tenho algumas para mostrar pra vocês. No intervalo, lá no terraço.

Despertei a curiosidade em seus olhares. Stan ficou me incomodando as três primeiras aulas antes do intervalo querendo que eu o mostrasse o que era primeiro. Permaneci invicta.

x x x x

Finalmente, no intervalo, seguimos até nosso terraço. Subimos as escadas rapidamente, mas tomando muito cuidado para não fazer muito barulho. Chegando lá, Izzy e Laurie nos esperavam, junto à Nathan. Sentei-me embaixo de uma estátua de anjo coberta por hera, e todos sentaram a minha volta. Os olhos da estátua pareciam nos observar.

–Primeiramente, quero que vejam essas fotos – mostrei as fotos para Laurie, que repassou algumas para os outros enquanto as analisava minuciosamente. – Encontrei-as em um armário lá em casa, estavam em uma caixinha muito antiga. Acredito que sejam os primeiros moradores de lá.

–Caramba – ouvi alguém dizer.

Estavam todos fascinados. Acredito que todo mundo ali morava em algum lugar antigo ou com história, como tudo ali na cidade, mas minha casa era realmente um caso a parte. Ela despertava uma curiosidade geral que estava além da minha compreensão.

–A questão é que eu achei as escrituras antigas da minha casa, e o primeiro nome data fim do século XIX, um tal de Leonard Mordrake.

Todos se viraram para mim, e se entreolharam. Percebi que iria conseguir algumas informações ali.

–Você disse Mordrake? – Laurie repetiu.

–Isso mesmo. Inclusive nos registros dos anos sessenta, a casa voltou ao nome de um descendente deles. Mas que vocês sabem sobre isso?

–Será que é ele mesmo? –murmurou Nathan olhando as fotos em que o homem de cartola aparecia. Izzy e Stan observavam curiosos.

–Gente, de quem vocês estão falando? – perguntei, interrompendo os cochichos.

–Você não conhece aquela lenda de Edward Mordrake, J? – Stan me disse, percebendo como eu estava perdida.

–Edward? Mas o nome dele era Leonard...

–Deixa que eu explico. – começou Nathan, para minha surpresa:

“Edward Mordrake foi um herdeiro de um importante título de nobreza da corte, mas ele nunca o reclamou. Ele era considerado um homem muito bonito, músico talentosíssimo, culto e tudo mais, porém ele carregava um fardo terrível junto a si: ele possuía outra face em sua nuca, uma face que todos, inclusive ele próprio, diziam ser desfigurada e maligna. Era absurdamente anormal e não comia ou falava, mas podia grotescamente rir e chorar.”

Todos ouviam atentamente. Ele prosseguiu.

“Aí que começa a parte cabulosa, que faz tudo soar como uma lenda: era quase impossível observá-la por muito tempo. Sabe, as pessoas diziam que os olhos daquela face expressavam inteligência e raiva, e seguiam as pessoas lentamente como se estivesse estudando aqueles que a olhavam. Claro, Edward sofria muito com isso... Em seu confinamento e solidão afirmava ser impossível conviver com aquele demônio, como ele mesmo chamava. Ele dizia que ouvia a voz da face em sua cabeça, o mandando constantemente fazer atos violentos ou apenas despejando lamúrias infernais. Edward fez inúmeras solicitações de cirurgias, mas na época seriam impossíveis, todas fracassariam.”

–Meu. Deus. – Consegui falar. – O que aconteceu com ele?

– Edward se matou aos 23 anos de idade, J - Laurie me respondeu. - Alguns afirmam que ele se enforcou, já outros contam que ele disparou um tiro bem entre os olhos da outra face. Fato é que em sua carta de suicídio ele pedia para que o enterrassem sem aquele “demônio”. Acho que a retiraram, só sei que ele foi enterrado em uma lápide sem identificação. Nunca saberemos aonde.

Ponderei. Era uma história macabra em tanto.

–Será que ele tem ligação ao primeiro dono da minha casa? – perguntei.

–Muito provável, não é um sobrenome tão comum. – ela disse, ainda analisando a foto. - Você disse que a data da escritura é do fim do século XIX, bem, é essa a época em que Edward viveu. Pode ser que esse Leonard seja algum parente... E é praticamente certo de que ele é esse cara da foto.

–Da onde vem essa certeza? – Nathan questionou.

Izzy e Stan continuavam observando atentamente a tudo.

–Olha só – ela disse, apontando com a sua longa unha os anéis da mão do homem da foto, que apareciam com clareza naquela em que ele estava em frente à casa. – Vejam, há um L aqui.

Realmente, no grande anel em seu dedo indicador havia um vistoso L gravado na prata. Como eu não havia notado aquilo antes? Aquele era de fato Leonard Mordrake. As roupas elegantes indicavam que era um aristocraa, então era bem provável que fosse realmente parente de Edward. Comecei a ficar assustada.

Quando o intervalo chegou ao fim, chamei Laurie discretamente para uma conversa em particular. Esperamos que todos fossem para suas salas e voltamos ao terraço. Chegando lá, paramos embaixo da mesma estátua.

–Laurie, preciso mostrar uma coisa. Veja a menininha loira dessa foto – disse, entregando-lhe a foto em que havia aquela família posando em frente à minha casa. - Agora observe embaixo da mesa dessa aqui – falei ao entregar-lhe a foto de Leonard à mesa.

Ela imediatamente arregalou os olhos.

–É a mesma menina? – perguntou atônita.

–Isso que eu desconfio. E o pior, eu já vi essa menina, em meu jardim.

Laurie pareceu ficar nervosa.

–Mas você tem certeza J? Bem, na primeira foto, a menina parece ser mais nova...

–Acredito que seja mesmo, mas é a mesma da segunda foto, isso eu tenho certeza.

–E ela apareceu no seu jardim..? - Laurie parecia confusa, ou queria parecer estar. Ela sempre sabia mais do que demonstrava.

–Sim, com esse mesmo vestido branco. – falei, ficando um pouco incomodada com a lembrança perturbadora.

Laurie continuou em silêncio, com os olhos pensativos mirando algum ponto no nada.

–Estamos em outubro, os ares do Samhain trazem essas coisas – ela finalmente falou. – Mas tá, essa tarde irei até sua casa ok? Então conversamos melhor sobre isso.

Dei meu endereço, mesmo que ela já conhecesse a casa, e ela saiu rapidamente ali, com o andar descompassado. Voltei à minha sala.

Cada minuto pareceu horas até o fim da aula. E já em casa, as horas pareceram séculos até a chegada de Laurie. Por algum motivo eu estava ansiosa. Era a primeira vez que eu receberia alguém naquela casa, sem ser pela janela ou pulando meu portão. Aproximando-se das cinco horas da tarde, quando começava a escurecer, a campainha soou. Olhei pela janela e avistei Laurie, que usava um vestido preto esvoaçante e chapéu também preto combinando, parada em frente ao portão da entrada. E eu achando que teria uma visita normal.

Ao descer para atendê-la, semicerrei os olhos a fim de ver se o que eu estava vendo era aquilo mesmo. Nas mãos, ela trazia um enorme tabuleiro e castiçais. Nas costas, uma bolsa de lona surrada com estampas místicas. No pescoço, pareciam ter alguns colares, ou amuletos, a mais.

–Você tem velas aí não é? – disse ela, amistosa.

Eu não tinha entendido o seu “coversamos melhor sobre isso” dessa maneira, mas sorri ao abrir ao portão. Pelo visto um ritual digno de Laurie me aguardava.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Blue Falls" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.