Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 16
Registros




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Aproximava-se das três da tarde quando fui para casa, com a partitura de Oliver secretamente em minha bolsa. No caminho de volta, passei pelos mesmos prédios e praças da noite anterior, que agora de dia pareciam inofensivos. A vida noturna não deixava nenhum rastro por ali. Ao passar na frente da biblioteca, lembrei-me de que ainda estava com o livro sobre a história da mitologia da cidade na bolsa, então entrei para devolvê-lo. Enquanto a velha senhora atendente guardava meu livro, um garoto moreno parou do meu lado deixando uma pilha de livros com capa muito amassadas.

– Vim devolver os registros – disse animadamente para ela, pareciam já se conhecer.

– Muito trabalho analisar um por um? – ela o respondeu enquanto etiquetava os exemplares.

–Nem me fale... Mas pelo menos encontrei os primeiros moradores da minha casa, como o trabalho pedia – dizia ele enquanto assinava um comprovante.

Registros? Então era possível ter acesso a eles? Seria essa uma boa oportunidade para eu descobrir quem foram os antigos moradores da minha casa. Se constassem dados suficientes eu poderia até saber se eram as mesmas pessoas das fotos que eu e Johnny encontramos naquela velha caixinha.

De maneira intrometida, quando o rapaz foi embora, perguntei para a senhora do outro lado do balcão:

–Oi, tem como eu pegar algum registro da cidade também? – utilizei o tom mais doce que pude.

A senhora me lançou um olhar desconfiado trás dos óculos

–Você busca algo específico?

–Bem... – pensei rápido. – Eu também tenho que fazer um trabalho da escola sobre isso.

Ela me analisou mais um pouco.

–Venha comigo. – disse por fim, e seguiu em direção a um corredor no final da sala.

O corredor terminava em uma escada circular, que por sua vez levava a um piso acima. A biblioteca era bem tradicional e organizada na parte principal, mas aquele andar parecia mais um sótão de tão desorganizado. Antigos quadros mofados e tapetes enchiam o espaço, repleto de vestígios esquecidos de outras épocas. A senhora pegou uma chave que estava presa no colar que usava e abriu uma grande porta de madeira, revelando uma sala repleta de arquivos.

–Onde você mora mocinha? – ela questionou.

Eu respondi lhe dizendo meu endereço. Quando ela pareceu entender de qual casa se tratava, sua expressão ficou surpresa.

–Hmm, é uma das antigas – murmurou enquanto se dirigia aos arquivos do outro lado da sala, que supus serem mais antigos.

Não havia nenhuma placa ali, nenhuma etiqueta ou identificação. Parecia impossível achar alguma coisa sem ajuda, provavelmente uma medida proposital contra bisbilhoteiros.

–Sua casa é muito interessante, menina - ela disse medindo as palavras. - Patrimônio antigo, deve guardar muitos segredos... Cuidado com as informações que busca.

Estremeci com suas palavras.

Ela voltou-se aos arquivos e passou o dedo gaveta por gaveta até que em uma específica abriu, retirando uma série de livros de capa amassada.

– O prazo é de cinco dias para devolução. – falou entregando-me a pilha de livros. – São registros dos moradores do seu bairro, ordenados em uma série crescente de anos. Porém os mais recentes não constam aqui, pois estão arquivados em computadores – ela disse colocando ênfase na ultima palavra, em tom de deboche. Parecia gostar mais do formato antigo. - Cuide bem deles, embora não sejam os exemplares originais são cópias autenticadas.

Ao sairmos da sala, ela trancou a porta ruidosamente. Seu olhar ainda era desconfiado.

x x x x

Chegando em casa fui imediatamente para meu quarto. Ao largar os livros em cima da cama troquei finalmente de roupa, ainda estava usando o vestido da noite anterior.

–Longa noite? – A voz grave me assustou. Ao me virar vi meu pai, encostado em minha porta.

–Acabei dormindo na casa de uma amiga – menti, para não gerar muitas explicações. - E Johnny, que me deixou lá sozinha?

–Ah, você nem estava sozinha J. – de repente a voz de Johnny ecoou no corredor.

Ele apareceu no fim da minha escada com o cabelo bagunçado e cara inchada, usando a camiseta da noite anterior, meias e samba canção.

–Olha só quem acordou – retrucou meu pai para ele, sarcasticamente.

–Bom dia pra você também pai – disse Johnny esfregando os olhos. – Fiquei feliz por você irmãzinha, arrumou gente pra andar junto, pelo menos vai poder dividir a fama de esquisita com eles - dizia sonolento.

Revirei os olhos. Meu pai observava tudo de braços cruzados.

–Ah, o que eu faço com vocês? – disse ele em tom de reprovação enquanto descia as escadas. – Na próxima se deem ao trabalho de me avisar quando não forem voltar para casa.

Ele parecia bravo, mas como sempre não enfrentava as coisas de frente como se deveria. Mas se eu conheço meu pai, ele ainda daria um troco. Odiava falta de responsabilidade. Eu e Johnny o observamos desaparecer na escada e nos entreolhamos.

–Que horas você chegou? – cochichei para ele.

–Há menos de duas horas atrás – ele respondeu no mesmo tom.

Nós dois rimos.

–Vem cá, quero te mostrar uma coisa - falei.

Ele subiu a escadinha curva que trazia ao meu quarto e sentou no meu tapete.

–Veja só, achei isso na biblioteca – falei enquanto mostrava os livros para ele. – São os registros dos moradores antigos do nosso bairro... E acho que podemos encontrar os primeiros donos de nossa casa.

–Será que tem aquelas pessoas das fotos que eu achei? – seus olhos se iluminaram com a possibilidade.

–É o que eu quero descobrir.

Folheei livro por livro e os repassava a Johnny, que sonolento dava uma olhada por cima e os largava ao seu lado. Ele já estava deitado no tapete prestes a dormir quando exclamei:

–Achei!

Em um capítulo entre os últimos livros estava endereçada nossa casa. A lista de moradores começava em 1885, sendo um tal de Leonard Mordrake o primeiro proprietário até o fim do século XIX. Anotei seu nome, será que era ele aquele homem das fotos mais antigas? Seu estado civil era solteiro, e sua ocupação estava como indefinida na escritura. Estranho.

O segundo nome da lista datava meados dos anos 40, incitando que a casa ficou vazia até então. Nessa década onde havia um nome de um homem, e alguns anos depois a transferência da posse por morte, sendo a casa herdada por sua esposa Emily Bryne. Finalmente, nos anos sessenta, a casa voltava à posse de um Mordrake novamente, encerrando a lista.

–Como iremos saber quem foram essas pessoas? – Johnny perguntou, lendo a lista comigo.

–Bem, vamos pesquisar quem foram esses Mordrake, talvez tenham sido eles que construíram nossa casa.

Pegando novamente aquelas fotos antigas encontradas por Johnny, observei bem o homem da foto cor sépia em frente à casa. Seu olhar era enigmático, ele usava uma cartola e tinha cabelos escuros na altura dos ombros. Embora parecesse relativamente novo, utilizava uma bengala muito adornada onde repousava a mão, cheia de anéis. Na segunda foto, onde ele estava sentado em uma mesa, reparei melhor no ambiente. Em cima da mesa, entre as tintas e pincéis que eu já tinha visto antes, algo diferente me chamou a atenção: uma série de enormes agulhas de injeção, frascos e máscaras de respiração estavam próximo à suas mãos. A foto era escura, mas em baixo da mesa um ponto estranho de luz parecia estar ali camuflado na penumbra do sépia. Olhando com mais atenção, vi que o ponto na verdade era a luz de uma vela, sendo segurada por uma pequena menina com olhar fixo para mim.


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