Your Selection - Fanfic Interativa escrita por Soo Na Rae


Capítulo 30
Yazirat Al Arab


Notas iniciais do capítulo

Olá, Jujubas! Gostaria de primeiramente agradecer a Elisandra por ter recomendado a fanfic! *-* Nossa primeira recomendação! :3 A primeira de muitas, eu espero. Boa leitura.



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Capítulo 29

Zafirah

“Somente amamos a justiça quando sofremos injustiça” – Adão Myszak

Abney Park – Airplane Pirate

As cartas do banco espalhadas pela mesa de tampão de mogno e as pernas douradas. O lustre resplandecia com sua cor fria e fosforescente. As paredes brancas eram manchadas coma s sombras que as pilhas de livros formavam. Estavam todas acumuladas, vencidas ou recém-chegadas para atormentar seu pobre pai. Seu pobre e corrupto pai.

Zafirah o observava, sozinho, batendo o lápis nos lábios e arquitetando como pagaria suas dívidas. Ele havia agüentado tudo por algum tempo, porém chegara ao seu limite. O tratamento de mamãe já levava oito meses e o câncer ainda estava lá, além disso moravam na melhor casa de todo o bairro, no melhor bairro de toda a cidade. Eram uma família que esbanjava, sua irmã gêmea tinha um quarto somente para seus sapatos, bolsas e colares. Zafirah espiou um pouco mais o pai e suas dívidas, enquanto imaginava se ele finalmente iria recobrar o senso de honestidade. Ao contrário, ele enfiou a mão dentro do paletó e mandou uma mensagem para seu secretário. “Vai pedir mais dinheiro”, suspirou, abandonando-o. Isso não importava, ela não tinha nada a ver com isso. Guiou-se pelo tato, em meio a escuridão da noite, até seu quarto. A porta ostentava madeira negra, com engrenagens douradas brilhando. Fria. Segurou na alavanca direita e depois digitou o código para destravar a porta. Tudo feito por ela mesma. Sorria sempre que via aquilo, orgulhosa. Em seu arsenal, Zafirah exigia ordem e perfeição. Os martelos de variados tamanhos estavam todos em seus lugares na parede esquerda, e os parafusos em suas caixas, separados por tamanho e qualidade. A cama jazia, como um objeto em desalinho com o resto do quarto, algo encaixado lá. As bancadas onde trabalhava todos os dias repletas de óleo e seus trabalhos ainda não terminados. Papeis fincados em um quadro, desenhos feitos por ela mesma com anotações sobre como deveria fazer as peças para seu navio de aço, que estava construindo já fazia algumas semanas. Ainda estava apenas na parte do casco do navio, e demoraria mais alguns meses até concluir. Mas era algo que Zafirah realmente queria fazer.

As lamparinas deixavam a luminosidade em um nível baixo, e assim os olhos não ardiam tanto quanto com as lâmpadas convencionais. Jogou-se na cama e encarou o teto branco. Jogou longe os sapatos. Ela já tinha idade suficiente para saber que papai era mentiroso, desonesto e que logo iria cair em sua própria desgraça. Mas de que adiantaria pensar sobre ele? Zahirah, sua irmã gêmea, gostava da vida de luxo, assim com mamãe também gostava de receber o tratamento do melhor hospital especialista em câncer da União Eurásia.

E ela permanecia calada. Mas por quanto tempo mais?

º º º

Despertou com a descarga de água gelada sobre sua cabeça. Os cabelos se grudaram ao rosto, enquanto levantava-se, ofegante. Abriu os olhos, vendo borrões, enquanto as mãos se moviam para tentar agarrar quem a acordara. A risada logo foi reconhecida como Vincent, ele colocou de lado a bacia em mãos e sentou-se sobre algumas caixas que estavam ao seu lado. Zafirah olhou ao redor. Paredes de madeira, dormia em uma rede, e sentia o movimento constante. Algumas janelas laterais redondas permitiam-lhe uma visão do céu azul e sem nuvens, de repente uma onda se quebrou contra o vidro e ela recuou, perdendo o equilíbrio e caindo da rede. A cabeça bateu contra o chão, dando-lhe uma dor terrível. Vincent exclamou em gargalhada, sem se preocupar em ajudá-la. Ele deu uma mordida em uma maçã que surgira magicamente em sua mão, ou Zafirah apenas não a havia percebido até então. Essa era uma das coisas que odiava em ser míope.

– Gilbert me enviou para te dizer as regras. – ele falou, enquanto balançava as pernas e jogava os restos da maçã para o lado. – As regras da família. Agora que você está conosco, tem de saber andar como nós, respirar como nós, comer como...

– Agora que estou com vocês? – ergueu uma sobrancelha, apoiando-se em um pilar de madeira, onde a rede estava amarrada. – Ah, claro, havia me esquecido que fiz a inscrição para trabalhar em uma família de circo enquanto fugia de um tornado.

Vincent estalou a língua. Odiava o modo como ele fazia aquilo, despreocupado, relaxado. Simplesmente seguindo o fluxo da vida. Seus cabelos ensebados estavam lambidos por sobre as sobrancelhas e um dos olhos desaparecia atrás da franja. A barba crescia nas laterais do maxilar, no queixo e sobre o lábio superior.

– Nós te salvamos, poderia demonstrar um pouco de gratidão.

– Oh, certo. Obrigada por me tirar da sua varanda, após eu correr cinco quilômetros, de vestido e com raios cozinhando meus cabelos. Aliás, muito obrigada por me acordar com um banho em velocidade 2.0, eu nunca tinha tomado um banho tão rápido. É ótimo, aliás, para quando estamos com pressa, para sabe, fugir de um tornado.

– Disponha, senhorita – Vincent se curvou, o sorriso sarcástico nos lábios. – Agora que já agradeceu devidamente, deixe-me cumprir o que meu irmão ordenou e acabaremos com isso, certo?

Zafirah cruzou os braços, mas não disse mais. Vincent assentiu, satisfeito, e moveu o maxilar, enquanto estalava a língua.

– As regras da família são feitas para serem seguidas, ao contrário dos reinos, nós realmente não quebramos nossas leis. É por isso que a fazemos, para não serem quebradas. Elas são como... Nossa Bíblia. Nos baseamos nela, como se infringir uma significasse pecar. E nós somos muito religiosos. – ele piscou – Primeira regra, todos obedecem o código de conduta. Do capitão até a tripulação da ralé, os cozinheiros, chefes de armas, navegadores, artesões, contramestre e os homens das cordas. Alguma pergunta.

– Bem, capitães, contramestres, corsários... Estou em um navio pirata ou algo do tipo? Pensei que a ordem de hierarquia em uma família fosse papai, mamãe, filhinho, tios, primos... – ergueu uma sobrancelha.

– Somos uma família atípica. – Vincent sorriu. – Segunda regra, todos têm direito a voto em todos os assuntos de debate, assim como também têm direito a provisões, para utilizá-la a seu modo, como bem entender, no momento em que quiser. A não ser que seja preciso uma votação para racionamento, em tempos de escassez, o que é muito raro para nós.

– Certo, então vocês são uma família rica que perambula pelo mapa chamando os mais velhos de capitães e andando sobre pranchas em plantações alheias?

– Seu discurso de sarcasmo já acabou? – Vincent moveu as sobrancelhas, ligeiramente irritado. Zafirah abriu um sorriso calmo e pequeno, era fácil irritá-lo.

– Claro, senhor comandante.

– Me chame de navegador. – Vincent sorriu, como se gostasse de seu título. – Continuando. Terceira regra, todos têm o direito de descansar e só podem ser chamados em seus turnos de trabalho, conforme nossa lista. Porém, caso arrume briga ou defraude em seu tempo de descanso, será castigado de acordo com as tradições.

– E quais seriam as tradições?

– Ser abandonado na primeira praia onde ancorarmos ou entregue a algum navio inimigo. Quarta regra: é proibido jogos de azar ou apostar, jogos de cartas valendo dinheiro ou qualquer outra atividade do gênero. As velas serão apagadas às oito horas da noite e quem quiser permanecer acordado após este horário, bebendo ou jogando, tem de fazê-lo no convés.

– Convés? – Zafirah encarou a janela redonda e a rede, as caixas espalhadas e o chão de madeira em sob seus pés, o balançar calmo e ritmado. – Estamos em um navio!

– Só percebeu agora? – Vincent riu.

– M-Mas você não pode me raptar deste modo e me trazer para este navio, isto é... Contra as leis. Contra os direitos humanos. Eu disse que você tinha de me levar para o castelo. O príncipe Syaoran está esperando por mim. Aposto que guardas me procuram neste exato momento. Se não me entregar para as autoridades, você estará...

– Encrencado? – Vincent mordeu os lábios e se aproximou. Lentamente deslizou os dedos por seu pulso e agarrou-o. – Eu já estou bem encrencado sem você, gracinha. Poderia ficar muito bem com um problema a mais.

– Normalmente as pessoas diriam que poderiam suportar tudo com um problema a menos.

– Eu não faço o tipo de pessoas fracas – ele cheirou sua garganta – Você tem um bom sangue.

– Sangue?

– Cheira bem... – ele sorriu, se hálito lhe arrancando arrepios. “Ótimo, estou presa em um navio, com um grupo de criminosos, um maníaco que explodiria meus miolos a qualquer momento e um vampiro. Muito bom. – Sexta regra, - ele continuou, ainda segurando-a. – As pistolas, espadas e todas as outras armas devem estar limpas e prontas para a batalha.

– Batalha?

– Sétima regra, crianças e mulheres não são permitido a bordo, a não ser que demonstrem habilidades qualificatórias. Como correr cinco quilômetros no meio de um tornado, com raios caindo sobre sua cabeça. – ele sorriu para ela. – Oitava regra, desertores em batalha serão abandonados em uma ilha deserta, com uma garrafa d’água, uma pistola e apenas uma bala. A escolha é de quem quiser morrer com um tiro ou faminto. Nona regra, as disputas envolvidas em terra serão feitas com pistolas e espadas. No combate de pistolas perde quem for atingido primeiro, e no combate de espadas perde quem primeiro sangrar. Décima regra, ninguém pode desistir da família, enquanto não juntar mil cobres. Se você for incapacitado, será indenizado com oitocentos cobres, proporcionalmente com seu ferimento. O capitão e o contramestre recebem dois quinhões do saque e do tesouro. O imediato, o mestre e o oficial armeiro recebem um quinhão e meio, os demais oficiais um quinhão e um quarto. E a nossa última regra: a música não pode parar! – Vincent soltou seus pulsos e abriu os braços – Enquanto houver música, há inspiração para continuar trabalhando! E assim, vivemos. Bem vinda a bordo do Barbatana.

– Nome criativo para um navio. – sorriu, sarcástica, enquanto se afastava, inspecionando todo o local. Não havia falha entre as vigas de madeira, afinal se houvesse toda a embarcação afundaria. As caixas estavam cheias de suprimentos, sacos de pólvora e as janelas tinham manchas esverdeadas nos vidros. Na parte esquerda do casco, canhões dispostos um ao lado do outro estavam prontos para disparar, com bolas empilhadas. – Vocês cuidam bem deste lugar.

– Ah, não foi nosso trabalho isso – Vincent caminhou por entre algumas caixas, tocando as cordas penduradas no teto e as redes de pesca – É do antigo dono. Roubamos há três horas.

– Vocês roubaram?

– Sim, senhorita. É isso o que piratas fazem, não? Perdemos nosso navio para as autoridades da Península, enquanto roubamos um aqui, na China. – ele sorriu – Você quer que eu diga que estou brincando?

– Digamos que meu histórico com roubos não seja dos melhores. – Zafirah lembrou-se de seu pai e de todo o dinheiro que ele roubara do governo da União Eurásia. Mordeu os lábios.

– Você era uma delinqüente, Yazirat? – Vincent perguntou, aproximando-se mais, o que ela já recebeu como uma ameaça, e por isso voltou a perambular pelo navio. Por um segundo Zafirah pensou em perguntar quem era Yazirat, mas logo se lembrou quem era.

– Um pouco, sim. A ovelha negra da família. – mentiu – Eu roubava os anões de jardim do vizinho.

– Oh, não me diga? – Vincent arregalou os olhos e ela notou as olheiras profundas que ele ostentava na face pálida. – Você também roubava anões de jardim? – e então soltou uma gargalhada. – Me diga a verdade. Com o que você é boa? Além de correr cinco quilômetros de um tornado em meio a uma tempestade de raios?

– Eu sei um pouco sobre peças. Máquinas.

– Filha de um mecânico?

– Exatamente, sou filha de um mecânico – mentiu pela terceira vez. “Eu já tenho um nome, um título de delinqüente, e meu pai se tornou um mecânico. Quanto mais irei me afundar?”, pensou, mas era tudo por proteção. Não podia dizer aos seus seqüestradores que papai era um político super influente na União Eurásia e que, na medida em que era amado, também era corrupto. E isso era muito amado. – Minha mãe morreu quando eu era um bebê. Câncer. Fui criada na oficina dele.

– Então você sabe mexer em um motor de navio? – Vincent ergueu as sobrancelhas, observando alguns enlatados.

– Eu diria que sei mexer em um motor de carro. Mas é tão diferente assim? Acho que poderia fazer algumas coisas, sim. – suspirou – Claro, que não irei trabalhar de graça para a sua família...

– Nossa. Nossa família – Vincent ergueu o olhar para ela. Olhos castanhos escuros. – Você faz parte dela agora.

– Mesmo que eu não queira?

– Está no código. Você só poderá nos abandonar quando tiver mil cobres para pagar pela deserção. Nós não estamos te raptando, nós não a roubamos de sua antiga vida. Nós te demos uma dádiva. Salvamos-vos. Você será muito feliz conosco, eu aposto.

“Salvamos-vos”. Zafirah se perguntou se aquela palavra realmente existia. Ele falava russo com muita fluência, embora fosse notável o sotaque. Vincent também não era um nome que pais russos dariam a seus filhos. Tentou pensar de que lugar ele teria vindo. Disse que fora pego na Península, então provavelmente era inglês. Pescadores ingleses eram comuns, e a Península não gostava quando adentravam seu território. Porém Inglaterra e Península tinham uma aliança de comércio e eram aliados também de guerra. Não havia motivos para que perdessem o navio por estarem pescando em local ilegal.

– Vocês são mesmo piratas? – perguntou, enquanto explorava as escadas que levavam para portinhas no teto, portinhas que poderiam ser abertas e que provavelmente levariam ao convés. Vincent a alcançou e colocou uma mão em seu ombro.

– Nós somos uma família nômade. Vagamos pelo mar e por terra. Às vezes por ar, também. Cuidamos uns dos outros. O líder, ou capitão, é meu irmão, então não ouse usar todo o seu sarcasmo com ele. O contramestre é Abernath. Embora velho, ele tem uma grande sabedoria. O oficial armeiro é Sanders. Sou o imediato, ou navegador, como quiser chamar. Essa é a ordem que usamos na hierarquia. Mama é a oficial da cozinha, Viria cuida da música na maior parte do tempo, ou então da navegação, quando eu não posso fazê-lo. Albert e você cuidam da limpeza no navio. O convés, o mastro, as armas e a cozinha. Ajudam Mama quando ela precisar, me ajudam quando eu precisar... E podem apreciar a voz de Viria de todos os lados.

– Sério?

– Notei que ambas não nutrem muito afeto uma pela outra. – Vincent estalou a língua. Não estava rindo, mas sim sério, como se o assunto fosse algo que deveria ser resolvido logo. – Nós não gostamos de desafeto em meio a família. Então é melhor não provocá-la. Viria não aceita muito bem engolir desaforo...

– E o que eu faço se ela me provocar?

– Então eu diria para ignorar. – Vincent deu de ombros – É o que eu sempre faço com Gilbert. Viria é a namorada dele, e desde que eu terminei com ela há alguns meses, ela está louca e irritadiça. Mandou Mama calar a boca. Ninguém manda a Mama calar a boca – Vincent disse, irritado, como se o fato ainda fosse vívido. Zafirah notou o modo como ele amarrava o lenço no pescoço, o sobretudo negro e o colete abotoado. Uma corrente fina e prateada surgia de um dos bolsos do sobretudo. Provavelmente um relógio de bolso. – Mas acho que você não faria isso.

– Ignorar? Eu até faria, se todas as moléculas do meu corpo não gritassem para acertar um soco no nariz dela. – soltou, sem pensar, e quando notou Vincent erguia as sobrancelhas. Talvez estivesse exagerando, mas ele apenas começou a rir e a subir as escadas – Você tem talento para fazer as pessoas te amarem.

“Assim como meu pai”, pensou. Mas não queria ser como ele. Queria ser honesta. “Mentindo o meu nome, minha família e até mesmo quem eu sou”. Não sou essa menina totalmente armada de sarcasmo e inatingível. Estou me fazendo forte demais. Seguiu Vincent, subindo as escadas. A luz a cegou por algum tempo, antes de se adaptar. Todos falavam, gritos por todos os lados. Vincent estendeu-lhe a mão. Agarrou-a e terminou de subir, até estar no centro do navio. As velas balançavam ao vento, enquanto cordas pendiam de todos os postes. O parapeito entalhado a mão era bem desenhado, entretanto não era isso que tornava o navio mais chamativo, e sim o fato de ser a única coisa a milhões de quilômetros. O mar calmo e o Sol observavam-nos. Vincent a conduziu por entre algumas caixas, tinha sempre de olhar por onde pisava, ou então afundaria em cordas, algas e peixes mortos. O fedor era incrível e ao mesmo tempo nauseante. Por um momento enroscou seus pés e Vincent a sustentou com a mão, enquanto saiam do caminho de Sanders, caminhando apressado em direção à cabine dos oficiais, como Vincent chamou. Abernath estava sobre uma plataforma mais elevada do navio, atrás, gritando ordens enquanto dirigia o navio.

– Capar traquete e bujarrona! – a voz do velho parecia dez anos mais jovem a quando ouviu pela primeira vez na casa da fazenda – Vinte graus a bombordo! Vigia da gávia e todos os homens a postos!

– Ele está anunciando um novo dia para a tripulação – Vincent sorriu. – Capar significa diminuir a abertura das velas em relação ao vento. Traquete é mais baixa vela do navio, aqui no centro. – ele apontou, onde Viria e Albert puxavam cordas, obedecendo as ordens de Abernath. – Bujarronas dão a direção do navio, são aquelas estacas de madeira que se movem de acordo com os comandos do leme. Você logo se acostuma com o vocabulário.

– Acho que não. – disse, enquanto desviava de uma das estacas que Viria girava com suas cordas. – Eu ainda vou acabar caindo ao mar.

Vincent soltou uma risada, passando por Albert e alcançando o convés, onde, estranhamente, estava calmo. Ninguém que ali passava ficava para apreciar a boa vista do azul infinito, tanto no céu quanto no oceano. Zafirah ainda não podia acreditar que estava sendo seqüestrada desde modo. Vincent pousou as mãos sobre o parapeito do navio e respirou profundamente o vento salgado de maresia. Os olhos fechados, cabelos ao vento. Parecia estranhamente à vontade com tudo isso. O balanço por baixo de seus pés ainda era estranho e Zafirah tinha a impressão de que poderia cair a qualquer momento, entretanto a brisa suave, o respingo das ondas no oceano e a simples calmaria já deixavam tudo melhor. Poderia viver ali, viajar pelo mundo. Conhecer tudo o que tinham deixado para trás quando fecharam as portas da Europa e da Ásia, por precaução. A Praga ainda estava a solta no mundo, e a América ainda definhava.

– Pode parecer um pouco duro e entediante, mas não é. – Vincent falou, tirando-a de seus devaneios. – Nós visitamos todos os locais no mundo. Conhecemos os mares, conseguimos prever tempestades. Eu me sinto muito melhor no mar a andar pela terra. É como se a constante firmeza sobre os meus pés me entediasse. Eu sempre saberei que o chão será firme, mas você não pode confiar assim em um navio. – ele sorriu, saltando – E isso é divertido. – Agora que já mostrei o navio e as regras, você tem de começar o trabalho. Ninguém fica tirando cochilo sem o merecimento. Albert!

O menino terminou de amarrar algumas cordas e correu até onde Vincent e ela estavam. Albert tinha os mesmos cabelos castanhos e escorridos de Vincent, porém seus olhos eram mais claros e óculos pousavam sobre o nariz. Havia uma cicatriz pequena em seu lábio inferior e ele não tinha um nariz torto, nem olhos roxos. Parecia não se dar bem com brigas. Albert ostentava um colete costurado a mão, com botões dourados, uma camisa de botão suada e quase transparente, o que deveria ser branco. As mangas estavam dobradas até os cotovelos e as calças também dobradas até as canelas. Ele usava uma boina xadrez.

– Sim, Vince? – ele estava tão ereto que só restava bater continência e gritar “Sim, senhor”, para que Zafirah tivesse certeza de que era um soldado. Albert estava vermelho pelo esforço anterior, e o Sol castigava seus braços expostos, deixando a pele ainda mais vermelha.

– Por favor, faça as honras de mostrar a senhorita Yazirat seus deveres na família. – Vincent abriu um sorriso, enquanto puxava para fora do bolso seu relógio redondo. Zafirah observou-o, tinha uma tampa dourada, com desenhos de uma rosa dos ventos, incrustada de espinhos e com folhas que realmente faziam parecer uma rosa. Quando ele a abriu, Zafirah não pôde ver o que havia por dentro, mas sabia que seria ainda mais bonito. – Vou voltar para o meu posto. Até.

Albert assentiu com a cabeça, e Vincent deixou-os, subindo as escadas até onde Abernath estava, ainda gritando ordens. Zafirah não sabia se sentia abandonada ou contente por ter Vincent longe. Ele não era exatamente a melhor das companhias, mas mesmo assim era quem mais conhecia naquele navio. Albert balançou os ombros e trocou o peso dos pés, enquanto enfiava as mãos nos bolsos. Parecia quase envergonhado por ter o trabalho de mostrar-lhe o que fazer. Quando, finalmente o silêncio já se misturava com os sons das ondas, Zafirah resolver dizer.

– Por onde começamos? – Albert ergueu a cabeça, resplandecendo em vermelho carmesim.

– A-ah, claro. Por favor, siga-me. – ele deu-lhe as costas, talvez satisfeito por não ter de vê-la. Albert movia-se rapidamente pelo navio, o que ainda era um mistério para Zafirah, que tinha de tomar cuidado por onde pisava. Suas roupas ainda eram as da noite passada, com exceção de que agora vestia uma camiseta por sobre o sutiã. De repente parou. Vincent disse que a havia salvado da chuva, que a havia trazido para dentro da casa. E eu estava só de sutiã e saia. A garganta fechou-se, enquanto sentia as mãos suando frio. Respirou fundo. Não era nada. Ele provavelmente não notou, e aliás, ele morava com mais duas outras mulheres, Mama e Viria, não era tão estranho assim, certo? Continuou seguindo Albert, que agora adentrava um compartimento abaixo da plataforma onde Abernath e Vincent estavam. As portas eram pequenas e Zafirah teve de se abaixar para conseguir entrar. Lá o cheiro de sal era intenso, enquanto prateleiras e mais caixas anunciavam suprimentos. Frutas, enlatados e o que conseguissem. – Nós conservamos as carnes com sal, é aqui que as colocamos. Cozinhamos tudo neste forno. – ele deu dois tapinhas sobre um objeto de metal negro – Na verdade a única que usa é Mama, ela não deixa outra pessoa tocar, ela acha que poderíamos colocar fogo no navio. A cerveja e o vinho são mantidos com gelo, e nós mantemos o gelo com serragem.

Zafirah observou. Havia alho pendurado no teto, e pequenas janelas redondas nas laterais da cabine, exatamente como no porão. Albert a deixou observar antes de finalmente voltar para a porta por onde entraram.

– Vou levá-la até o seu quarto. – ele disse. – Ah, aliás, nós não temos espaço para todos ficarem em quartos particulares, por isso nos dividimos. Os únicos com cabines especiais são Gilbert e Abernath, eles são o capitão e o contramestre, por isso podem escolher seus quartos. Você dormirá com Viria e Mama. Venha, Yazi. – ele de repente ruborizou, como se tivesse feito algo realmente errado. – Posso chamá-la de Yazi?

– Como quiser.

Albert sorriu, tímido, e a chamou novamente para segui-lo. Percorreram o convés e contornaram os mastros, enquanto Viria sentava-se sobre uma das caixas e começava a dedilhar o violão. Ela era a cantora oficial, por isso tinha de manter o ritmo no navio pelo dia todo. “Parece ser um trabalho simples, mas quem consegue cantar por horas seguidas, tocando, sem nunca se cansar?”. Albert abriu uma segunda porta pequena, e entrou por ela. Seguiram um corredor estreito e passaram por mais duas portas, antes dele abrir a terceira. A cabine onde dormiria era, no mínimo, pequena. Dois beliches enfeitavam as paredes de ambos os lados, as camas feitas, malas e roupas penduradas próximas a janela. Identificou a cama de Mama, onde o travesseiro era maior e as roupas eram mais largas. A cama de Viria ficava em cima, com uma partitura cheia de letras de música, que ela provavelmente estudava, para variar seu repertório. “Eles não estão brincando”. De repente ouviu um guincho suave no fundo da cabine, e enquanto virava o rosto, as garras surgiram diante de seu rosto.

– Não! Soturna, não! – Albert gritou, enquanto Zafirah caia sobre uma das camas, provavelmente a de Mama, e tentava se livrar do que quer que fosse que estivesse atacando seu rosto. Sentiu o gosto de sangue e o filete quente escorrendo pelo lado direito do rosto. As garras eram vorazes, embora pequenas, e os guinchos mostravam a fúria do animal. – Soturna! Mama! Mama, por favor! – Albert gritou, já com as mãos sobre a criatura.

Mama adentrou a cabine pingando ódio, e sua raiva era palpável de longe. A criatura que atacava Zafirah também notou isso e logo a soltou, enquanto voava para longe, choramingando. Mama a alcançou em pleno vôo e a trouxe até perto de seu rosto. Zafirah levantou-se, apalpando o nariz, a tempo suficiente de ver Mama e seus seios enormes, abraçando a criatura e acariciando-lhe a cabeça. Era uma coruja.

– Assustaram você, bebê? – Mama suspirou – Tudo bem, tudo bem... Mamãe está aqui. Mama vai cuidar de você. – a mulher gorda rolou os olhos para Zafirah – Oh, querida, seu rosto... – ela mordeu os lábios carnudos – Soturna, peça desculpas a Yazirat. Ela não teve culpa se você estava dormindo.

A coruja caminhou lentamente pelo braço de Mama, até alcançar sua mão. Seus grandes olhos encararam Zafirah por alguns segundos, antes dela voltar rapidamente para o ombro de Mama. A ruiva sorriu, acariciando sua coruja de estimação. Albert suspirava, abanando-se. Ele parecia prestes a ter um ataque de pânico, e seu rosto antes vermelho estava roxo. Quando, por fim, todos se acalmaram, Zafirah finalmente sentiu a dor e o sangue secando na pele. Passou os dedos sobre o ferimento no nariz e gemeu. Albert encarou-a e então seus olhos se abriram de tal forma que pareciam saltar das órbitas.

– Irei buscar curativos – disse, já saindo da cabine. Mama a observou e colocou sua coruja sobre o beliche, antes de agarrar o rosto de Zafirah e inspecionar o machucado. Ela observou com atenção e então sorriu, as covinhas nas bochechas redondas lembraram Zafirah de como sua professora do primário sorria. Sempre gostara dela. E parecia que gostava de Mama também.

– Soturna não está acostumada com visitantes durante o dia. Ela é um animal noturno. – sorriu novamente, enquanto passava os dedos por suas maçãs. Zafirah ruborizou levemente. As luvas de couro de Mama eram macias e quentes, como se ela estivesse aquecendo-as no forno antes de vir até ali. – Estou fazendo o almoço, e precisarei de ajuda para cortar alguns legumes e peixes, temos de manter todos muito bem acordados. – ela abaixou suas mãos e segurou as de Zafirah – Lamentou começar nosso relacionamento com... O ataque de minha coruja assustada.

O modo como Mama falava era suave e melodioso, como uma mãe de verdade. Sua cintura roliça e as pernas grandes e pesadas estavam escondidas pelo vestido marrom escuro que usava. O corselete de couro deixava os seios em relevância dentro da camisa branca e de tecido fino. Um pingente era sustentado na garganta, uma espécie de ampulheta pequena. Mama tocou-o quando notou que Zafirah o admirava.

– Um presente de família – ela sorriu, respondendo a pergunta silenciosa da garota. – Minha antiga família. Agora esta é minha família. E a sua também, Yazirat.

– Me chame de Yazi. – pediu, abaixando os olhos. Nem mesmo conseguia dizer a Mama que seu nome não era Yazirat, que havia mentido. Mas porquê mentiu? Aquelas pessoas não pareciam realmente estarem seqüestrando-a, não a maltratavam, e embora uma coruja a tivesse atacado alguns minutos antes, fora um acidente, e Mama pediu desculpas por isso. Soturna não era tão voraz, enquanto se animava no travesseiro de Mama e fechava os olhos, adormecendo. Albert retornou com uma caixa branca, onde a cruz vermelha mostrava que se tratava de uma caixa de primeiros socorros. Ele a abriu e se ajoelhou diante da cama. Mama segurou seu rosto com delicadeza, enquanto Albert limpava o ferimento. Ardeu, mas suportou a dor. Ele passou algumas pomadas cicatrizantes e fez um curativo com algodão e gaze. Quando terminou, Vincent estava a porta da cabine, observando. O lugar tão pequeno parecia diminuir mais ao passo que as pessoas se acumulavam.

– Tirando algumas horas de folga? Isso não é comum para vocês, Albert e Mama.

– Estamos apenas cuidando de Yazi – Mama sorriu, doce e gentil, como sempre. – Soturna se assustou quando a acordaram.

Vincent observou Zafirah por algum tempo, antes de suspirar.

– Tinha de estragar o rostinho bonito? Albert, livre-se desses panos cheios de sangue. Mama, temos fome, por favor, faça um de seus deliciosos ensopados de peixe e... Yazirat, ajude-a.

– Claro – Albert respondeu, e Mama apenas sorriu, levantando-se e dando a mão para Zafirah. Segurou os dedos grossos de Mama e a deixou conduzir pelo navio, até voltar para a cozinha. Lá, Mama parecia ter tudo na ponta da língua, dizendo onde procurar legumes, onde encontrar as facas e como cortar tudo. Ela mesma estava diante do forno, com uma panela grande o suficiente para alimentar todos no navio e mais um pouco. Ela encheu tudo com água fervida e despejou um pouco de cerveja.

– É para dar ânimo – ela piscou, enquanto rodopiava até o saleiro e distribuía sal. Depois alcançou algumas ervas e também despejou no caldo. – Acho que está bom – ela disse, quando Zafirah cortou a última cenoura. Despejou os legumes e vegetais na panela e fechou-a. Depois pegou um dos peixes dentro das caixas de sal e com o facão, tirou suas escadas com rapidez surpreendente. – O peixe é muito bom para mantê-los acordados durante o dia. É fácil sentir enjôo no mar ou simplesmente enlouquecer. – ela sorriu, mas aquilo não pareceu uma piada para Zafirah, enquanto mexia a panela no forno com uma colher grande de madeira. Ao terminar de picar o peixe e tirar os espinhos, Mama despejou a carne dentro da panela e fechou-a novamente. – Agora é só esperar. – o calor na cozinha era intenso, e isso sufocava Zafirah, o suor escorria de sua nuca, até as costas, e entre os seios, enquanto desejava desesperadamente tomar um banho.

“Mas estamos em um navio. Não há como tomar banho”, pensou, tristemente. Quando será que aportariam? Sorriu para si mesma, limpando a bancada onde havia cortado os legumes. Um dia antes estava no castelo, acordando com três criadas prontas para ajudá-la no que precisasse, banhá-la e trocar suas roupas. Agora estava em alto-mar, cozinhando para piratas de verdade, fugitivos, que haviam roubado um navio naquela mesma manhã. De repente Mama sentou-se sobre uma cadeira de madeira e suspirou, abanando-se.

– Isso é cansativo. – ela sorriu, o suor escorrendo por sua testa. Os cabelos ruivos molhados. Seus olhos castanhos brilhavam, e pareciam quase dourados quando os raios de Sol tocavam sua face. – Mas é maravilhoso.

– Sim – concordou, sem pensar, e então encolheu os ombros. Porém Mama abriu um sorriso largo e limpou as mãos no avental sujo que usava sobre o vestido.

– Gostaria de me fazer perguntas, Yazi?

– Perguntas? Como quais?

– Qualquer uma. Quando cheguei, fiquei cheia de dúvidas. Você gostaria de me perguntar algo?

– Bem... Para onde estamos indo?

Mama a observou e então sorriu, as covinhas surgindo, as sobrancelhas ruivas se arqueando e as mãos se unindo no colo. Zafirah se perguntou quantos anos ela teria. Trinta? Trinta e cinco? Não parecia muito velha, mas também não tão nova. As linhas de expressão surgiam levemente em sua pele branca.

– Estamos indo atrás de aventura, Yazi. Na verdade, estamos em uma missão. Em busca de um tesouro.

– Como as histórias de piratas?

– Ah, não. Esse é um tesouro de verdade. – ela se arrumou na cadeira – Se chama o Holandês Voador, um navio que existe há mais de 500 anos, antes de se descobrir a América, alguns dizem. Ele foi amaldiçoado e seu capitão e toda a tripulação são vivos-mortos, navegando pelo mar, sem nunca poder atracar em algum lugar. Quando alguém vê seu navio, significa que uma forte tempestade está vindo, ou então que algum navio irá afundar. Ninguém pode ajudar o Holandês Voador, e normalmente sua tripulação tenta mandar mensagens a pessoas já mortas através de garrafas flutuantes, com bilhetes dentro. – Mama ergueu as sobrancelhas, movendo as mãos enquanto falava, como se contasse uma história de terror. – O capitão do Holandês Voador desafiou as divindades católicas e sua maldição será eterna, até que alguém a quebre. Mas é preciso ser um outro capitão, forte e esperto, com um navio rápido e uma tripulação disposta a lutar. Quem afundar o Holandês Voador, acabará com a maldição do capitão e de seus homens, e ganhará o tesouro que eles acumularam durante anos.

– Pare de assustá-la – Vincent entrou na cozinha, cheirando o ar. – Este cozido não está pronto, já?

– Só mais alguns minutos – Mama suspirou – Você estragou a história. – ela se levantou e caminhou até a panela, abriu-a e o vapor subiu, revelando um cheiro maravilhoso, que fez o estômago de Zafirah roncar. Ela não havia comido nada desde a tempestade. Vincent lambeu os lábios. – Volte daqui quinze minutos. Preciso dourar a carne. – Mama mandou-o embora de sua cozinha. – Eu detesto quando entram aqui sem permissão... – então ela voltou a se sentar e sorriu. – Você parece uma boa garota, Yazi. Se quiser, pode dormir na cama ao meu lado. Viria não é muito... calorosa com novatos.

– Tudo bem. Eu acho que nunca nos daremos exatamente bem – deu de ombros, enquanto seu estômago roncava novamente. Desta vez Mama percebeu e soltou uma risadinha.

– Você logo vai provar o melhor ensopado de toda a sua vida! Quem não comer um ensopado de Mama, não sabe o que é comer!

Zafirah sorriu, enquanto Mama voltava para conferir seu ensopado. Mama realmente era gentil, bondosa e confiável. Zafirah gostava de estar com ela, como se já fossem amigas. Os braços roliços, os seios grandes e o rosto rechonchudo, movimentando-se de um lado para o outro com graça e leveza que ela mesma não conseguia entender de onde vinham. Mama exalava positividade e esperança, como se o mundo não pudesse acabar enquanto ela estivesse por lá. E era exatamente assim que Zafirah se sentia. Enquanto ficasse com Mama, nada poderia ser terrível demais ou perigoso demais.

– Então o capitão que irá enfrentar o capitão do Holandês Voador é Gilbert?

– Ah, sim. Gilbert é um bom capitão. Ele salvou todos nós. – Mama não a olhava enquanto falava, mexendo a panela com seu cosido. – Ele é o mais velho dos filhos de Sebastian Stormsea, o maior capitão de todos os sete mares. – Mama sorriu. – Sebastian ensinou tudo a Gilbert, e ele segue perfeitamente os passos do pai.

– Ele me parece um pouco... Assustador.

Mama soltou uma risada fraca.

– Ele é diferente, sim. Intimidador. Mas não se preocupe, tem um coração bom. Embora eu ache que todos têm um coração bom – Mama sorriu – Gilbert jamais faria mal a alguém da família. Ao contrário, defenderia a todo custo. – ela se virou – Você pode ir até o convés anunciar que o almoço está pronto, Yazi?

– Claro. – levantou-se e caminhou até a porta. Hesitou, mas Mama já havia se virado novamente para a panela, então apenas avançou e saiu da cabine, caminhando até o convés. Colocou ambas as mãos ao lado dos lábios e gritou – O almoço está pronto! – notou como o vento soprava rapidamente de norte. Virou-se, observando as ondas calmas. O oceano parecia descansar. Alguém passou por ela, indo em direção a cozinha. Era Abernath, andando rapidamente como um jovem. Depois Sanders, e então Vincent. Albert e Viria. Mas não viu Gilbert. Por fim, ela mesma voltou para a cozinha, onde todos já tinham um prato em mãos e devoravam tudo com os dedos. Encarou-os, enquanto Mama lhe entregava seu ensopado. Conseguiu ver as cenouras flutuando no caldo e a carne também. O cheiro era ótimo, mas não tinha certeza de que queria comer aquilo com as mãos.

– O que foi? – Vincent perguntou. – Sua Majestade quer alguns talheres? Deus nos deu cinco ótimos talheres bem aqui – ele abriu a mão e então caçou um pedaço de carne em seu prato, devorando-o. – Faça as honras, senhorita.

Viria soltou uma risadinha sarcástica, bebericando seu caldo. Um filete escorreu por seu queixo, enquanto ela lambia os lábios. Mama pegou um prato para si mesma e também passou a comer com os dedos. Todos o faziam, então Zafirah não teve escapatória além de enfiar a mão no ensopado e tirar de lá uma rodela de cenoura. Mordeu-a, não muito à vontade. Neste instante, Gilbert adentrou a cozinha e observou a todos enquanto comiam. O silêncio era mortal, e logo ele caminhou até a panela e colocou um pouco de cozido em seu prato, abandonando a cabine.

– Ele não come conosco? – perguntou a Mama, e ela apenas sorriu e deu de ombros, enquanto mordia seu peixe. Zafirah suspirou, alcançando outro pedaço de cenoura e tentando ignorar o fato de que milhões de bactérias em seus dedos e unhas estavam entrando em sua boca naquele momento, e que poderia ocorrer uma séria infecção. Ao menos a comida era boa, disso Mama tinha razão: quem nunca comeu um ensopado de Mama, ainda não comeu. Quando terminou, colocou seu prato junto dos outros em uma caixa, onde Mama iria lavar tudo com água do mar e uma esponja de aço.

Albert a convidou para ajudá-lo com a limpeza do gabinete de rota, e ela aceitou, embora não soubesse o que era um gabinete de rota. Quando entraram na cabine mencionada, ela logo entendeu o quê mantinha Gilbert tão entretido. Uma mesa de madeira rústica crescia no centro da sala, com uma janela grande circundando o final do navio, onde era possível ver as ondulações que ele deixava no oceano enquanto passava. A luz adentrava fortemente, iluminando o mapa esticado sobre a mesa. Era de papel branco, embora estivesse rasgado nas laterais. Algumas marcas e traços apontaram rotas. Lugares circulados e nomes que ela nunca tinha visto. O mapa do mundo após a Terceira Guerra Mundial. Ilhas esquecidas no Sul e no Norte, até mesmo territórios nas Américas e Oceania. Tudo marcado, como se Gilbert já tivesse passado por todos os locais antes. Nas paredes, armários inteiros estavam recheados de livros e pergaminhos, talvez do antigo do dono. Havia uma ancora enfeitando a parede e sofás serviam de cama para Gilbert, que, após terminar de comer, adormeceu. Albert fez o mínimo de silêncio que conseguia, enquanto retirava duas vassouras detrás da porta, entretanto o irmão mais velho abriu os olhos, os cabelos longos escorrendo pelos ombros e o rosto anguloso resplandecendo, pálido. Zafirah ainda não entendia como ele conseguia ser tão branco, mesmo vivendo debaixo do Sol.

– Limpe as latrinas também. – ele mandou, antes de fechar os olhos e voltar ao sonho. Zafirah suspirou, ajudando Albert a buscar os produtos de limpeza. Ele agradeceu, sem olhar para seus olhos e logo estavam varrendo o chão, jogando a poeira e o sal para longe.

– Não é um pouco irônico? Poeira em alto-mar. – perguntou, tentando criar um ambiente menos desconfortável. Albert ergueu as sobrancelhas.

– Sim, é um pouco irônico – ele ergueu os óculos. – Embora a poeira que estejamos varrendo seja feita pela própria madeira do navio.

Zafirah deu de ombros, voltando a varrer. Abaixou-se e passou a vassoura por baixo do sofá de Gilbert, e logo em seguida ao lado das prateleiras cheias de livros. Mordeu os lábios, tentando ler algumas das lombardas. Albert a observou de longe, tentando descobrir o que aquela menina seria. Com certeza não era como Mama. E também não chegava a ser como Viria. Um meio-termo? Talvez. Sua convivência com mulheres não tinha sido muito ampla em todos os seus dezesseis anos.

– Então você era o novato antes de mim, Albert? – ela perguntou.

– Novato? Ah, não. Na verdade eu fui um dos primeiros. Quando meu irmão assumiu o primeiro navio, éramos eu, ele e Vincent.

– Então porquê você trabalha como um ajudante, ao invés de... Ser um contramestre ou imediato?

– Ah – ele ruborizou – Os trabalhos são dados de acordo com as habilidades. Eu não demonstrei aptidão suficiente para os mapas, e também não sou bom em dar ordens. Sou um pouco atrapalhado demais para cuidar da cozinha e até hoje não sei como tocar violão e minha voz é horrível.

Sorriu. Albert parecia uma pessoa insegura, mas agradável. Assim como Mama, tinha aquele ar de que, sempre que estivesse por perto, tentaria tornar tudo o melhor possível. Ele empurrou os óculos novamente por cima do nariz, varrendo debaixo da mesa do mapa.

– Então você é classificado de acordo com o trabalho que desempenha melhor? – perguntou.

– Sim. Você começou como uma ajudante, como eu, mas logo irá se destacar em algum outro lugar. É sempre assim. Viria não era ninguém, até Gilbert a ouvir cantar. Mama não era ninguém até cozinhar pela primeira vez. Todos conquistaram um lugar no navio.

– Menos você?

– Eu... – ele parou, erguendo-se e encarando-a. De repente Zafirah se sentiu mal por ter dito aquilo. Não deveria ter feito, o ego de Albert já parecia pequeno demais, ele provavelmente ficaria triste. – Alguém precisa limpar a bagunça dos outros, certo? – ele abriu um sorriso tímido. – Se não for eu, quem será?

E assim, continuou a varrer, calado. Zafirah também continuou a varrer, envergonhada.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Agora temos mais de uma visão! Além de sabermos o que acontece nos castelos, também saberemos o que acontece com o povo e a América! *-* Beijos da Meell Gomes.



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