Your Selection - Fanfic Interativa escrita por Soo Na Rae


Capítulo 3
Marina Sintra Alcoi


Notas iniciais do capítulo

Eu simplesmente adorei a Marina, toda a personalidade dela, mudando o tempo todo... Uma garota que ainda vai revelar muito. Boa leitura.



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Capítulo 2

Marina

“O mar é o eterno movimento: palpita nas vagas, esfuzia na brisa, corisca e ulula, espanada e acaricia, braceja e espuma” – Buarque de Lima

Chlöe Howl – Rumour

Chutou alto, enquanto o instrutor mantinha a mão perto do ouvido. Atingiu o chute na luva de boxe dele e o homem mudou a posição. Chutou agora acima da cabeça dele, saindo por alguns segundos do chão. Isso a fez perder o equilíbrio, mas não caiu. Bateu a parte de cima do pé três vezes no joelho dele, antes de passar a perna sobre sua cabeça novamente. Os braços estavam bem junto ao corpo, as mãos cerradas em punhos, enquanto trincava os dentes. Os pés doíam. Doíam muito. Mordeu os lábios, enquanto chutava-o novamente nas costelas. O homem segurou sua perna no ar e encarou-a, o cigarro em sua boca era apenas um toco agora, quando a tarde inteira já havia se passado.

– O que foi? – ele perguntou, naturalmente paternal. Desvencilhou-se dele, colocando-se novamente em posição de ataque. Não era da conta de um velho o que estava acontecendo. Mas o domingo passava, e a academia de boxe para meninos estava fechada. Mesmo assim, aquele velho lhe dava aulas. Devia algo a ele. – Eu perguntei o que foi, Mar?

– Não foi. – grunhiu, arremessando um chute para a orelha dele, e o velho recebeu com o pescoço, rapidamente, voltou a posição inicial e ele voltou a encarar. Seus olhos azuis e a cabeleira branca sempre a convenciam a fazer o que ele mandava. Suspirou, abaixando as mãos e sentindo o suor escorrer por dentre os dedos delas e dos pés. Os pés! Havia enfaixado duas vezes e usava sapatilhas especiais para boxe, mas ainda doía muito.

– Venha cá. – ele mandou, jogando os restos do cigarro em um balde no chão que servia para evitar que as goteiras se espalhassem no tablado da plataforma que usavam para as lutas. O tatami foi lavado e por isso ele não queria usá-lo. Respirou fundo, dando um passo de cada vez, enquanto as pontadas de dor subiam por seus tornozelos. Quando se sentou diante de um dos armários de roupas fedorentas dos rapazes, o velho se ajoelhou a sua frente e começou a desenrolar as faixas brancas.

– Não precisa disso – tentou impedi-lo, mas era impossível convencer Gary, assim como era ainda mais impossível convencer ela mesma. Tomou o pé das mãos dele, encarou-o. Seus olhos faiscando. Poderia chutá-lo na cara ali mesmo, seu chute era forte. Se atingisse o calcanhar bem no queixo, ele desmaiaria, e então ela iria embora. Mas tinha coragem para ferir seu avô?

– Precisa – ele tomou seu pé novamente e terminou de desenfaixar. Entre os dedos pequenos, as manchas de sangue se espalhavam. A carne viva, enquanto a pele se desintegrava de tanto esfregar-se. Malditas sapatilhas. O trabalho do governo “Criança Feliz” era uma porcaria. Levar meninas das ruas para um espelho, com uma barra, vestidas com maiôs cor-de-rosa era patético. O programa de educação para as crianças pobres foi iniciativa de alguma corporação de resgate aos animais perdidos, que logo se envolveu com a ajuda a crianças perdidas também. Mas isso era tudo o que sabia. Nunca fora para uma escola, tudo o que sabia aprendeu ali, nas ruas. Como montar uma arma, como disparar dois tiros seguidos sem levantar sons, como roubar seu patrão por quase cinco anos seguidos e ele nunca perceber, como comandar uma das gangues do pai que nunca teve um membro sequer preso pela polícia.

Sentia-se estúpida com aquelas sapatilhas, girando na ponta dos pés. Mas... Era... Diferente. Quando estava lá, no meio das outras, sentia-se bem. Não como quando estava lutando com Gary, ele era seu praticamente avô, um homem que a acolheu em um apagão durante a semana mais dura de ronda da polícia. Ele a ensinou a se defender.

O dedo branco e ossudo do velho entrou no vão de seus dedos e saiu lambuzado de sangue.

– Não sabia que balé era tão violento. – ele sorriu, e teve de se segurar para não lhe dar um tapa no rosto. Fazia alguns dias que não batia no velho. Da última vez, ele gritou, e ela não queria ouvir novamente. Ele puxou um dos baldes cheios de água da chuva e enfiou os pés dela lá dentro. A água provavelmente estava infestada de coisas ruins, mas quem se importava com isso num mundo como aquele? Morrer de uma infecção não era incomum ali, na favela. Enfiou as mãos dentro dos cabelos, coçando os piolhos.

– E eu não sabia que seria obrigada a fazer. Poderia me inscrever no curso de boxe.

– É só para homens – ele piscou seu olho azul, algo muito invejado naquele fim de mundo. – E sua família ganha um dinheiro a mais, com você nas aulas de dança, certo? Se fosse para a escola, talvez pudesse sair daquela lanchonete e...

– Eu não vou para a escola – saiu mais frio do que queria, mas serviu do mesmo jeito. O olhar de Gary era cansado. Ele havia estudado a vida inteira, se formado em medicina, e agora dava aulas de boxe para moleques melequentos e fedorentos, com pais traficantes, irmãos na cadeia e mãe grávidas de estupros coletivos. Por sorte, Marina nasceu filha de seu pai, e por isso ninguém ousada tocar a mão nela. – Escola é perda de tempo. Não vou aprender nada lá, que não possa aprender aqui. – reprimiu um gemido quando as mãos de Gary começaram a esfregar as feridas. A água se tornava cor-de-rosa e em seguida vermelho vivo. – Não preciso ler. Sei como contar o dinheiro e posso muito bem me localizar geograficamente: estamos, neste momento, debaixo da Ponte da Desgraça, no fim do mundo, bem ao lado do inferno.

– Querida, você não sabe o que é o inferno – ele parou, de repente, mas logo voltou a lavá-la. Gostava de como Gary a chamava de querida. Não era algo que costumava ouvir por aquele lugar. “Gata, gostosa” ou mesmo “vadia” eram muito mais comuns. Batia as mãos impacientemente nas pernas, talvez fosse seu jeito de se perder no tempo, costumava nunca ficar parada, como se pudesse ter de levantar a qualquer momento, correr até a mochila e tirar de lá um revólver. O que não era impossível.

– Terminou? – perguntou a ele.

– Terminei – Gary buscou uma toalha e, ainda ajoelhado, enxugou seus pés. Aquele velho era mesmo intrigante. Quando terminou, sorriu e trouxe uma caixa preta, onde faixas brancas higienizadas estavam enfileiradas. Envolveu seus pés com elas, jogou as faixas usadas no lixo e voltou, segurando sua mochila. – Acho que está bom por uma aula.

– Você quer dormir comigo? – a pergunta foi direta, e queria fazê-la já havia muito tempo. Gary coçou a cabeça e começou a rir baixinho.

– Por que eu iria querer?

– Porque me trata... Assim. – ela deu de ombros. – Nem o meu pai me trata assim.

Gary suspirou.

– Mas é assim que se trata uma mulher. Pelo menos para mim, é. Então, não, eu não quero dormir com você, rainha do balé.

– Um dia vou acertar o chute na sua boca grande – ela respondeu, mas estava ruborizada. “Assim que se trata uma mulher”. Não conhecia mais pessoas como Gary. A lei da zona era cada um por si, e as mulheres eram tão fracas que não conseguiam cuidar de si mesmas. Sua irmã dizia todos os dias que ela precisava se cuidar, seu irmão apenas dava de ombros e pedia para que fosse cautelosa com o chefe. “Aquele mexicano não me engana, vive olhando para as suas pernas”.

Mas o irmão era suspeito para falar qualquer coisa. Ele trabalhava em um... Um... Bordel, se é que podemos chamar assim. Vestido como uma mulher. E a irmã era uma jovem veterana da faculdade de medicina. Não conseguia se imaginar sentada numa cadeira, por quatro horas por dia, encarando um quadro negro e anotando mentalmente tudo o que o professor dissesse. Parecia entediante para ela. Preferia a adrenalina das ruas. Quando saiu da academia de boxe, Gary lhe deu um beijo suave na bochecha e pediu para tomar cuidado. Caminhou até a lanchonete, e quando entrou, os clientes a reconheceram de imediato. “Aqui todos nos conhecemos, mas ninguém chorará no enterro do amigo”. Passou pelas mesas, enquanto o gerente a recebia com uma boa olhadela.

– Desculpe o atraso, Hector. – sorriu e lhe beijou a bochecha. Um dos cozinheiros pigarreou. – É muito bom vê-lo também, Dom. E você também, Mario. Antonia já chegou? – perguntou, amarrando o avental amarelado e cheio de gordura. A comida da lanchonete não era a mais saudável, diziam que já haviam matado duas pessoas com seus burritos. Prendeu os cabelos crespos em uma touca que odiava e olhou-se no espelho.

– Não se preocupe, está bem. – disse Antonia, saindo de trás do banheiro. Sardenta, com a pele tão branca quanto Gary, e os olhos azuis. Marina forçou um sorriso para a colega de trabalho, enquanto passava com suas pernas magras e o decote exageradamente aberto. Hector espiou-o quando Antonia pegou um dos cardápios e foi atender os clientes.

– Ela é sempre tão... Gata? – Mario sorriu.

– Ela é russa, amigo, russa. – Dom deu de ombros.

– Para mim ela é somente uma magrela que não sabe seu lugar. Acha que aqui é como morar na casa dos papais. Não vai sobreviver dois meses. – estalou a língua – ela é mimada.

– Com certeza, notei pelas botas de marca que ela usa. Vai perder as botas rapidinho. – Mario riu, tirando o fogo salsichas inchadas.

– Não só as botas. – Dom resmungou – Ela não é como você, Mar. Ela é uma dessas garotinhas rebeldes, vai voltar correndo pra saia da mamãe quando o primeiro cara aparecer pra estrupá-la.

– É estuprá-la, imbecil. – ralhou, lembrando-se de como Suzie, sua irmã mais velha, havia brigado com ela, por dizer palavras de forma errada. Quando corrigia um dos colegas de trabalho, sentia-se melhor que eles, e isso era divertido.

– Desculpe, senhorita minha-irmã-é-uma-médica.

– Minha irmã está fazendo medicina, e eu nem preciso dizer quem é meu pai, preciso?

– Claro que não – Mario virou-se, voltando ao trabalho rapidamente. Dom fez o mesmo, e isso a animou. Intimidar os outros com base no pai era muito melhor. Rafaelo, chefe da máfia no lado Sul da cidade. A Espanha já tinha tido dias de glória na máfia, mas agora era complicado. A segurança estava maior e a polícia matava qualquer um que se parecesse com o grande Rafaelo. “E em um bairro afro, todos se parecessem com Rafaelo. Era por isso que odiava tanto Antonia. Ela era mimada, sabia ler e escrever, se gabava que o pai era advogado e além de tudo era branca. Branca como porcelana. Suzie sofria bullyng o tempo inteiro na faculdade, por ser negra e principalmente filha de Rafaelo.

Passou pelo balcão, indo em direção aos molhos de tomate, quando a mão de Hector pousou sobre a sua. Ele sorriu, galanteador.

– Hoje o movimento está pequeno, queridinha, que tal ir para casa. Aposto que seus irmãos iriam querer ver a irmãzinha.

– É muita gentileza, Hector. – acariciou a mão do patrão e ele ruborizou levemente. Era assim que ela roubava algumas notas da caixa registradora sem ninguém perceber.

– Se estiver entediada com eles, pode passar lá no meu apartamento.

“Apartamento”. Era uma palavra forte. Normalmente as pessoas moravam em barracos, mas um apartamento... Respirou fundo e soltou a mão do homem. Ele sempre passava dos limites. Diferentemente de Gary, Hector a tratava assim porque queria levá-la para cama. “Que leve Antonia”.

– Antonia disse que você a convidou para ir comer pizza, hoje a noite.

A expressão de Hector mudou completamente.

– É verdade, havia esquecido. Sabe como é... – ele apontou para a garota ruiva – Ela é um pouco... Animadinha demais. Quero mostrar pra ela a realidade do Sul dessa cidade.

– É ótimo saber disso. Bom, eu vou para casa então. Obrigada, Hector. – colocou o avental sobre o balcão.

– Mas o convite ainda está de pé, se quiser ir comer pizza com a gente. – ele piscou e a deixou ir embora.

Abandonou a lanchonete tão rápido quanto chegou, o cheiro era insuportável, mesmo depois de tantos anos trabalhando lá. Não sabia como as pessoas conseguiam comer aquilo, comida mexicana era tão nojenta... Se soubesse o modo como Mario e Dom preparavam tudo aquilo, não comeriam. Sua casa ficava quase na saída do Sul da cidade. “Casa” era uma palavra mais forte que “Apartamento”. Conseguia tanto dinheiro com seus pequenos furtos e vendas de ilegais que comprou uma casa para morar com os irmãos. Papai não era a pessoa mais presente do mundo, na verdade só vira o real Rafaelo duas vezes na vida, quando era uma criança e quando se tornou a mais importante líder de gangues da região. “Tenho orgulho de você”, ele disse, e virou as costas, esquecendo-a completamente.

Entrou pela porta, sem cerimônias, pegando Alejandro de surpresa no sofá, assistindo sua novela. O irmão deu um pulo de susto e a amaldiçoou, mas logo lhe deu um sorriso afetado. Alejandro era diferente dos outros, além do trabalho estranho, ele ainda era um irmão amável e tão bom quanto Gary. Deixou-a se sentar ao seu lado.

– Como forma as aulas de balé? Queria ter idade para fazer também. – ele encolheu os ombros.

– Foram ótimas, Alej, mas são só para meninas.

– Que preconceito – ele murmurou, enquanto observava os hematomas em seu joelho. – Você foi para a academia do Gary de novo?

– Ainda pergunta?

– Suzie vai te matar – ele sorriu. Josh surgiu segurando uma bacia de pipoca recém-estouradas. Ele parou, encarando-a, e então colocou a bacia no chão, correndo até ela e abraçando-a.

– Querida, fiquei tão preocupado. Ouvi no jornal que a violência aumentou 20% no nosso bairro. – ele suspirou, sentando-se ao lado do namorado, o irmão de Marina.

– Eu faço parte da violência, Josh. – revirou os olhos.

– Ah, é verdade. Você é tão forte, queria ser assim – o garoto sorriu, enquanto oferecia pipoca. Recusou. Queria falar com sua irmã, antes que ela pegasse as cartas do correio e visse o que havia chegado... O rosto de Suzie no quarto já dizia tudo. Quando entrou, a irmã mais velha que cursava medicina e vestia-se como uma rica da classe alta, envolveu seu pescoço.

– Você recebeu, recebeu, recebeu! – sua alegria era inexplicável, afinal a carta era de Marina, e não dela própria. Suzie sempre sonhara em ter a chance de morar em um castelo. Quando Marina abriu um pequeno sorriso, envolveu-a com as mãos e beijou sua bochecha. Suzie com certeza era uma irmã pegajosa. – Estou tão feliz.

– Ah, sério?

– Sim! Você vai se inscrever, diga que vai! – segurou os ombros de Marina com força, as unhas longas e pintadas de vermelho vivo cutucando sua pele. – Você tem de ir, Mar, é uma chance única.

– Claro, como se um príncipe fosse me querer. Uma menina da favela, filha de Rafaelo.

– Ninguém sabe que você é filha dele, e além disso, Rafaelo foi preso. Mês passado. Pablo passou aqui para deixar um pouco de dinheiro para nós. – Pablo, braço direito do pai de Marina. Ele cuidava da família de Rafaelo, sempre, enquanto o homem tratava de assuntos mais importantes. – Por favor, faça por mim.

– Eu não disse que não ia fazer.

– Então você vai? – o rosto de Suzie se iluminou.

– É claro. O castelo precisa de emoção e perigo, querida irmã. Nada melhor que um pouco do Sul da Espanha para animar o príncipe.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado dela tanto quanto eu. Beijos da Meell.