Your Selection - Fanfic Interativa escrita por Soo Na Rae


Capítulo 14
Abigail Valentine Bloodworth


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/593724/chapter/14

Capítulo 13

Abigail

“A glória dos sábios é feita à custa dos ignorantes: que valeriam médicos se não houvesse doentes para curar?” – D. Xiquote

Ёлка - Прованс

Era um bom vinho, vermelho intenso, com gotas de suavidade. Seu sabor no paladar era admirável, entretanto já havia provado vinhos melhores na Inglaterra. O pão também era diferente. Um pouco mais macio ao que estava acostumada. Notavelmente ele era feito com mais água e passava menos tempo no forno, sentia a massa crua entre os dentes. Talvez se colocassem um pouco de queijo ou manteiga o sabor melhorasse. Na mesa, frutas que ela nunca vira na vida. Uma tinha gosto ácido, outra era mais doce. Mas gostara realmente era do que chamavam de “cogumelos do czar”, comuns em toda a extensão da Rússia e a maior parte da União Eurásia. Comer cogumelos era realmente algo que Abigail não esperava fazer em sua vida, mas estavam lá, todos dentro de uma taça grande de cristal e os príncipes pareciam adorar a iguaria. Ela logo se deixou levar. E realmente, era algo que nunca provara na vida, um gosto autêntico. Um tempero bom com macarrão ou molho inglês.

Até agora, os príncipes se mostravam saudáveis de mente e de corpo. Ambos completavam as frases um do outro, esbanjando tudo o que podiam entre gêmeos. O pai comia calmamente, ora limpando o bigode, ora repreendendo Nikolai por seus modos displicentes. Por sinal, Nikolai ria alto e falava quase gritando, algo que a incomodou profundamente, sua imaturidade estava estampada no rosto, e Mikhail agüentava tudo com muita simplicidade e educação. Um cavalheiro, havia levado as garotas pela manhã por um passeio ao castelo e tentara contar algumas coisas para elas, a maioria das vezes falando em inglês fluente, algo que Abigail achou muito bom em um príncipe.

Mikhail bebericava o vinho de leve, como se estivesse escondendo o melhor do sabor para o final. Ele comia em silêncio e falava pouco. Colocava a mão diante dos lábios quando estava mastigando e seu irmão o fazia rir, limpava-se a cada minuto e não apoiava os cotovelos na mesa de carvalho. A mesa de quarenta lugares fora muito boa para elas e a família real, embora Mikhail tenha dito que há anos não recebiam tantos convidados. “O Czar não gosta de festas”, explicou ele, sem parecer decepcionado. Abigail pensou que talvez ele também não gostasse de festas.

Não queria admitir, porém seus olhos sempre voltavam para Mikhail. Escutara, por acidente, algumas inglesas comentando como Nikolai tinha belos olhos e um rosto anguloso, mas poucas falavam de Mikhail, afinal o príncipe era tão simples e maduro que pouco chamaria a atenção de garotas de dezessete ou dezoito anos. “E, no entanto, chama-me muito a atenção”, bebericou um pouco mais do vinho, lançando um olhar fraco para os gêmeos. Seus olhos cinzentos encontraram-se com os de Nikolai e ele acenou, sorridente, enquanto mastigava.

– Mais calma, vai ter uma indigestão caso continuar com esta gula. – reclamou Mikhail.

Nikolai deu de ombros, devorando mais alguns pobres cogumelos. Abigail abriu um sorriso pequeno, quase imperceptível, enquanto passava os dedos pelos cabelos lisos e louros. Os irmãos não tinham uma mãe, esta morreu durante a Guerra, e era um milagre que ambos estivessem vivos agora. Diziam que todos que viram o nascimento de Mikhail e Nikolai morreram, e assim ninguém sabe qual nasceu primeiro. O mais provável é que fosse Mikhail.

– Já arrumou as donzelas? – o Czar perguntou, empurrando para longe seu prato. – Partimos daqui três dias.

– Não anunciei as boas novas, Papa. – Mikhail respondeu. – Creio que ficarão prontas até a partida. Será apenas uma semana, não? É bom ver meu primo novamente.

– Irresponsável – o Czar comentou, abrindo um sorriso leve. – Mas criança. Um garoto saudável. Mas o pai é muito rígido.

– Nem todos os pais são como você, Papa. – Mikhail sorriu e o pai ruborizou levemente, enquanto se levantava.

– Deixarei a responsabilidade com vocês – e chamou dois criados, dando-lhes ordens para arrumar o Salão da Rainha Mariângela. Abigail ainda não conhecia este local no palácio, mas provavelmente era mais um dos cantos que Mikhail deixara obscuro em sua viagem pelo castelo. Alguns segredos devem ser mantidos debaixo do pano.

Os príncipes terminaram juntos as refeições e aguardaram suas donzelas terminarem também. Nikolai, com os pés sobre a mesa e fazendo piadas sobre os criados e Mikhail, algumas vezes rindo, outras vezes ignorando. Quando a última menina terminou a refeição, Mikhail se levantou e caminhou até o lugar onde o pai estava sentado, no topo da mesa, onde todas poderiam vê-lo.

– Donzelas, recebemos uma carta ontem, no dia da chegada ao castelo. Uma carta do Japão, de meu primo Isao Fukiwara.

– Fujiwara. – Nikolai corrigiu.

– Exatamente – Mikhail perdeu um pouco da compostura, mas logo a retomou. -, gostaria de saber se estão de acordo em ir a essa visita comigo e meu irmão. Creio que será muito saudável manter relações com nossos aliados no Japão. Certo?

Ele olhou para elas, diretamente. Esperando resposta. A maioria assentiu com a cabeça, o que fez Mikhail ficar feliz. Nikolai se levantou, soltando um longo bocejo e observando as garotas. De repente ele parou os olhos sobre Abigail. Ela não demonstrou ter percebido, enquanto mantinha o rosto imóvel, as sobrancelhas baixas naturalmente e os lábios sem expressão.

– Você. Seu nome. – o príncipe apontou.

– Abigail Valentine Bloodworth, senhor. – a voz monótona e ríspida era costume, mas lembrou-se de acrescentar a formalidade no final da frase. Nikolai arqueou as sobrancelhas e sorriu, um sorriso que teria feito metade das garotas suspirar e a outra metade soltar gritinhos agudos, mas Abigail apenas continuou a encará-lo, esperando.

– Você é bonita, Abigail.

– Todas somos bonitas. Fomos escolhidas por este motivo. – respondeu, quase com brutalidade, algo que pensou não ser apropriado para um diálogo com o príncipe e tentou consertar. – Senhor.

Nikolai deu de ombros, visivelmente perdendo o interesse sobre ela. Era sempre assim. Sua beleza delicada, seus olhos que exibiam a fragilidade apropriada e a feminilidade de seus movimentos atraia muito os olhares masculinos, mas eles logo perdiam o interesse nos primeiros diálogos. Sabia que era algo que deveria moderar, mas não podia recusar sua própria essência, podia? Não via porquê fingir delicadeza.

Todas ali lutariam para arrumar os cabelos do modo como Nikolai gostasse, ou descobrir sua cor favorita, para usar no vestido do próximo encontro. Mas se alguém tinha de se aproximar dos príncipes, que fosse por sua verdadeira face. Inventar pretextos para atraí-los era banalidade, uma farsa, em sua humilde opinião. Mikhail era um perfeito príncipe porquê era ele mesmo. Diferentemente de Nikolai, que parecia se esconder atrás de seu orgulho.

– Eu gostaria de sair com você, Abigail. – ele de repente voltou a olhar para ela. – Um encontro.

Ouviu as meninas ao seu lado suspirando. Havia feito uma fraca amizade com uma francesa chamada Marie, e ela a cutucou com o cotovelo, sorrindo. Abigail recuou. Contato físico exagerado. Levantou-se, enquanto arrumava o vestido que escolhera para uma manhã fria e contornou a mesa. Parou diante de Nikolai.

– O que foi? – ele perguntou, as sobrancelhas arqueadas, como sempre.

– Você disse que me levaria a um encontro.

– Não agora. – ele riu. – Você é mesmo realista demais. – e então a tocou na ponta do nariz – Ao pôr-do-Sol. Você gosta de cavalos?

– Preferia algo menos arriscado.

– Cavalgar não é arriscado – ele colocou as mãos dentro dos bolsos. – Que tal então ir à biblioteca.

Biblioteca. Eles tinham uma biblioteca? Mordeu o lábio inferior, tentando não parecer muito motivada a ir. Nikolai parecia ler sua mente, enquanto sorria. Abigail estava ciente de que as garotas e Mikhail os observavam, e queria acabar logo com toda a atenção que recebia.

– Se agradar ao senhor.

– Me agradará – ele respondeu, revirando os olhos. – Te vejo ao pôr-do-Sol. – e virou-se, sentando ao lado de Mikhail. Abigail não pôde evitar olhar para ele, sorrindo fracamente, enquanto comentava algo com seu irmão. Abaixou os olhos e voltou para o seu lugar na mesa. Queria que Mikhail a convidasse, não Nikolai. Mas o que poderia fazer contra isso? Teria um encontro com Nikolai e sabia que passaria metade dele tentando manter o príncipe dentro das linhas. Provavelmente ele iria falar o tempo inteiro e ela só poderia concordar com o quer que dissesse.

Por quase um instante, suspirou, mas então percebeu o que estava fazendo e se conteve. Suspiros de desapontamento não eram permitidos por seu código de conduta. Mikhail as liberou para explorarem o castelo até o horário do almoço. Marie se levantou e logo a puxou pela mão, afastando-se da maioria das meninas. Pararam perto de uma das cortinas de quase trinta metros de cumprimento e ela sorriu. Uma menina cheia de vida, Abigail notava. Pessoas cheias de vida eram adoráveis.

– Ele é lindo, Abby. – ela suspirou, segurando ainda suas mãos. Marie gostava de tocar as outras pessoas, assim como qualquer garota amigável gostava. – Aposto que farão um lindo casal. – seus olhos brilhavam.

– É apenas um encontro. – entretanto Marie não fazia parecer isso, era quase seu noivado, a menina sorria como se pedisse para ser sua madrinha de casamento. Não havia como odiá-la.

– Não é apenas um encontro! Você foi a primeira a ser escolhida! – ela a envolveu em um abraço – Estou feliz por você, Abby. Espero que você fique bem com o Nikolai. Agora eu tenho de me esforçar pelo Mikhail.

Não. Com certeza não. Ela não queria Nikolai, ele era... Desprezível demais, entediante demais, um garoto muito previsível. Sempre fazendo piadas ou achando-se o maioral. Ele não teria conteúdo nenhum. Mas Mikhail... Ah, ele parecia guardar tantos segredos... Abriu um sorriso sorrateiro, o máximo que conseguia fazer em mais de dez anos. Desvencilhou-se de Marie com delicadeza.

– Vamos jogar xadrez? Eu adoro xadrez. E você é tão inteligente, aposto que é ótima em xadrez.

– Não gosto de xadrez. – respondeu, observando as outras meninas caminhando, cada uma com seu grupo de amigas. Era notável como mulheres normalmente se dividiam em grupos de interesses, na escola, no castelo. Só não conseguia compreender porquê Marie queria tanto ser sua amiga. Não dera liberdade para ela pensar assim. Talvez a garota fosse uma dessas pessoas que decidem criar amizades ou inimizades a dedo. Mas Marie não era de todo uma companhia desagradável, ela era bem gentil, sim. E a manteria entretida até o almoço.

– Podemos tentar encontrar algum tesouro escondido. – sugeriu ela, então.

Tesouros escondidos eram interessantes, assim como chaves que não possuíam fechaduras certas. Ou segredos escondidos dentro de portas no coração de um homem. Quanto mais pensava nisso, mais o rosto de Mikhail surgia em seus pensamentos, e então o afastava rapidamente.

– Qual tesouro? – questionou, enquanto caminhavam aleatoriamente pelo castelo. Quadros pintados da antiga família real decoravam os corredores. Pessoas imponentes, pálidas. Normalmente com cabelos louros e olhos azuis gélidos. Às vezes Abigail pausava para ler a descrição das pinturas. Miguel I. Ivã, o Terrível. Catarina I. Catarina II, a Grande. Nomes que não faziam diferença agora, que o Velho Mundo se foi. Parou diante de uma pintura que dizia ser de Nicolau II “O Último Romanov”. – O que será que aconteceu com a Família Romanov? Eles seriam Reis até hoje, não? Mas Mikhail e Nikolai são Kostyavic.

– Aqui diz que Nicolau era também conhecido como Portador da Paixão. – Marie leu em outra pintura, parecida com a que Abigail observava. – Se ele era o portador da paixão, porquê renunciou ao reinado?

– Renunciou?

– Sim, está escrito aqui, na biografia. – ela mostrou, e Abigail sentiu a curiosidade tomando-a. De repente Nicolau Romanov era uma pessoa muito mais interessante que Mikhail. – Nicolau foi chamado de “O Sanguinário” por críticos por motivo da Tragédia de Khodynka, Domingo Sangrento. Ele aprovou a mobilização em agosto de 1914 que marcou o começo fatal em direção à Primeira Guerra Mundial.

– Ele começou uma guerra? – tentou observar o rosto do homem caracterizado como “Portador da Paixão”.

– Aqui diz que ele assinou a queda da família Romanov. – Marie congelou. – Ele destruiu uma família inteira?

– Ele não tinha herdeiros? – as perguntas se acumulavam dentro dela. Se Nicolau não possuía herdeiros, isso significaria que bastava morrer para tirar o nome da família Romanov da linha de ascensão, entretanto se ele os tivesse... Então teriam de morrer. – Leia tudo.

– Nicolau II foi morto na madrugada dos dias 16 para 17 de julho, em 1918, pelos bolcheviques, no porão de sua casa, junto com a esposa, o filho, suas quatro filhas, o médico da família imperial, um servo pessoal, a camareira da imperatriz e o cozinheiro da família real. – Marie engoliu em seco, afastando-se da pintura. – Mataram todos. A família dele inteira. Coitados...

– Os bolcheviques eram uma família? Talvez usurpadores... – começou a formular teorias.

– Aqui só diz que eles mataram o Czar e a família dele. – Marie suspirou – Pobre Rei...

– Mas se ele era conhecido como sanguinário, talvez merecesse.

– E as crianças? – Marie se virou, as lágrimas dos cantos dos olhos aqueceram o coração gelado de Abigail e quase pediu desculpas à amiga. – Um menino e quatro meninas, mortos por serem filhos do Czar e herdeiros de direito. Como pessoas podem fazer algo assim? Como a ambição pode destruir uma família inteira?

– Os seres humanos... São criaturas incompreensíveis. – respondeu, tocando os ombros de Marie com delicadeza. Ela soluçou e segurou as lágrimas.

– Tudo bem, tudo bem... Vamos continuar andando. – e limpou os cantos dos olhos. Abigail assentiu e continuaram o passei pelo castelo.

º º º

Os cabelos foram escovados pelo menos três vezes pela criada um. A criada dois mostrou-lhe quase cem vestidos antes de escolher um por si mesma que ela considerava mais “agradável ao príncipe”. Aparentemente, a criada três estava ocupada costurando um novo vestido para Abigail usar no Japão. As moças agitavam-se de um lado ao outro no quarto, mas a única que deveria estar realmente animada, caía em depressão, enquanto tentava formular alguma escapatória. “Ele irá me entediar por horas”, concluiu, enquanto via o Sol desaparecer por trás de algumas árvores, na floresta adiante. Estava esperando Nikolai já fazia seis minutos, e o Sol logo desapareceria. Se este era o encontro ao pôr-do-Sol, os russos tinham um modo muito peculiar de fazê-lo. Os dois toques na porta anunciaram sua chegada e as criadas se amontoaram para recebê-lo. Ao virar-se, Abigail se deparou com algo realmente não convencional.

Nikolai havia penteado os cabelos e parecia recém saído do banho. A calça jeans era folgada e escura, entretanto a camisa de botões dava-lhe um belo contraste, vermelho vinho, os sapatos sociais brilhavam e refletiam tudo ao redor, negros como carvão e cheirava a colônia de verdade. Diria que Nikolai havia caprichado, caso a camisa de botões não estivesse aberta. Totalmente aberta. Aberta.

Forçou-se a ignorar o detalhe, enquanto se levantava da cadeira e passava pelas criadas. Todas reverenciando Nikolai. O príncipe agradeceu o trabalho delas e lhe deu o braço para que subissem as escadas juntos. Um pouco formal demais, sim, mas Abigail não se convenceria facilmente. Ainda tinha a imagem forte dele com os pés sobre a mesa de jantar. Deplorável. Nikolai parou diante de uma porta estreita e sorriu para ela, abrindo-a com um gemido baixo. A poeira voou de encontro a Abigail e tossiu muito, os olhos ardendo com o esforço de ver, enquanto Nikolai acendia as luzes. No interior, algo tão antigo quanto a própria família Romanov abria-se. Respirou fundo, adentrando.

O ar cheirava a mofo e estava impregnado de poeira, o que fazia sua garganta coçar terrivelmente. Nikolai passou a sua frente, enquanto caminhava. As marcas de seus sapatos ficaram no tablado enquanto caminhava, uma pegada formava por poeira e a falta de poeira. Ele passou a mão pelas lombardas de grossos volumes, todos tão antigos que se abrisse-os de maneira errada poderia fazê-los se desintegrar em suas mãos. Olhou ao redor. Os livros desapareciam até o teto, alguns tão cheios de poeira e teias de aranha que era impossível ler seus títulos.

– Bem vinda à biblioteca da família. – ele abriu os braços, e isso fez a camisa abrir-se mais ainda. O peito nu demonstrava que Nikolai era forte. Bem forte. Respirou fundo, isso não era pensamento apropriado para uma moça como ela. – Pelo seu jeito, pensei que gostaria de vir aqui.

– Meu jeito?

– Sim. Você é igual ao meu irmão. – ele riu – Todo certinho e cheio de perfeição. É entediante em um homem, mas em uma mulher é muito misterioso.

“Exatamente o que eu penso sobre Mikhail”, deixou-se abrir um leve sorriso, mas nada mais que um subir no canto dos lábios. Nikolai pareceu satisfeito e sentou-se sobre uma cômoda baixa, observando-a ainda fascinada pelo tamanho e pelas condições de todos os livros. “Abandonados”, foram todos abandonados. Era triste, mas ao mesmo tempo instigante. Queria ler todos, tinha a sensação que poderia ser a última a fazer isso.

– Houve um incêndio no castelo. – começou Nikolai. – Todos os quartos arderam, as cozinhas chegaram às cinzas e só o que restou foram as estruturas do castelo. Entretanto A biblioteca permaneceu intacta. Ninguém sabe por quê os livros não queimaram, mas foi o único lugar salvo do fogo. Reconstruíram o castelo, para servir de museu, mas não tocaram na biblioteca. Dizem que ela é amaldiçoada. Era o lugar preferido do Czar que morreu no incêndio, e quem entrar aqui será atormentado eternamente pelo fantasma dele.

– Amaldiçoado? – virou-se para o príncipe, notando o modo peculiar como os olhos de Nikolai a observavam, como se estivesse assistindo um filme antigo.

– É só uma história. Eu e Mikhail vínhamos brincar aqui. Eu me escondia dentro de um baú lá no segundo andar.

– Há um segundo andar? – os olhos de Abigail brilharam.

– Sim. É onde os livros do Czar estão. – Nikolai deu um salto e caiu ao seu lado, deixando a cômoda de lado e segurando sua mão sem pedir permissão. – Eu te levo lá – disse, já a conduzindo. “Ele é energético”, ela notou, enquanto deixava-se ser guiada pelo príncipe. Subiram uma escada quase escondida, feita de madeira já devorada pelos cupins, subindo em espiral. No topo, o corrimão desapareceu e um precipício surgiu, separando a escada do segundo andar. Nikolai saltou com a mesma facilidade que havia usado para sair da cômoda, entretanto Abigail não estava tão certa de que poderia fazer aquilo. Usava um vestido e infelizmente ele era longo. Nikolai virou-se, esperando.

– Pode me ajudar? – perguntou, quando já estava impaciente. Ele sorriu e ofereceu a mão, ela a pegou com cautelosa, mas assim que seus dedos de fecharam, Nikolai a puxou com tanta força que tropeçou na barra do vestido e caiu de joelhos, os pés a um centímetro do precipício. Respirou fundo, sentindo a pressão subir. A adrenalina era algo que ela particularmente adorava, mas pular em direção a morte não era assim tão agradável.

– Muito bem, o segundo andar. – Nikolai a colocou de pé com facilidade, e seu peito roçou no cotovelo de Abigail. Ela se afastou rapidamente. – O que foi?

– Não pode fechar essa maldita camisa? – gritou, e então ruborizou. Ele a irritava tanto que seus sentimentos estavam transbordando. Não se permitiria demonstrar mais nenhuma emoção diante de Nikolai, nem de ninguém. Respirou fundo e fechou os olhos. Contou até dez e voltou a encará-lo. Ele não havia fechado a camisa. – Tudo bem, vamos continuar.

Ele riu, virando-se e caminhando até as prateleiras. Desta vez elas eram menores, e o teto era mais próximo. Abigail ergueu o braço e conseguiu tocá-lo com a ponta dos dedos. Deixou um traço entre a poeira enquanto deslizava. Formou um coração. Em seguida desenhou uma borboleta e então um gatinho correndo atrás da borboleta. Sorriu, apreciando-o. Ele a lembrava Orelha, o gato que “adotara” alguns meses antes de vir para a Seleção.

Parou de desenhar quando ouviu a risada contida de Nikolai.

– Você desenha muito mal. – ele riu, enquanto empilhava alguns livros sobre o divã mais próximo.

– Este é o lugar onde o Czar lia? – perguntou, parcialmente para passar aquele comentário para trás. Mas também por curiosidade. – Era Nicolau?

– Qual Nicolau? – Nikolai virou a cabeça para ela, e de repente a poeira ao seu redor voava lenta, enquanto seus ombros se erguiam, e os braços sustentavam uma pilha de livros grossos, todos datados de 1560 até 1590. A capa azul escura e os títulos diziam tudo “Árvore Genealógica da Família ...”, não conseguiu ler o resto, pois estava escondido por debaixo da camisa de Nikolai.

– O Czar Segundo, que morreu em 1918 – lembrou-se da conversa que tivera com Marie naquela manhã. Nikolai pensou um pouco e logo respondeu:

– O último Romanov?

– Este.

– Ah... Um homem que dava mais atenção ao controle do povo que para alguns velhos livros. E ele não morava neste castelo, aqui era a moradia de um antigo duque. A história do Czar é de 1400.

– Já existiam livros?

A pergunta o fez parar por um momento. E ela compreendeu perfeitamente o que ele estava fazendo. Nikolai colocou os livros sobre o divã e encarou-a.

– Você está mentindo.

– Certo, e daí?

– Por quê?

– Talvez pra impressionar alguma garota que até agora só sorriu pra um desenho tosco no teto.

Por algum motivo, isso a fez sorrir. Sorrir não tão aberto, mas provavelmente maior que os sorrisos que dera a Marie.

– Se eu soubesse que ser sincero te faria sorrir, teria começado assim. – ele revirou os olhos – Por que você é tão complicada?

– Deve ser porque sou uma pessoa muito realista.

Ambos riram e o príncipe a levou até uma sessão onde havia apenas livros de romancistas que acreditavam que a terra era quadrada (de acordo com Nikolai, o que não era uma fonte muito confiável). Quando, finalmente, chegaram ao final da biblioteca, ela viu um pano esticado sobre o chão, era amarelo desbotado e havia uma cesta de piquenique. Virou-se para Nikolai, entretanto ele estava de braços cruzados e visivelmente irritado.

– Eu havia planejado de fazer isso em um bosque, mas obviamente você não iria gostar de tomar tanto Sol.

Revirou os olhos.

– Eu só não queria sair para passear com um irresponsável como você, em algum lugar que alguém não pudesse me socorrer caso você quebrasse meu pescoço.

– Eu não sou tão irresponsável assim. Quando éramos crianças, eu só quebrei o braço de Mikhail três vezes. Na adolescência foram uma vez. E até hoje não fiz mais isso. Viu como estou me comportando bem?

– Realmente, que prodígio. – ironizou, sentando-se no chão, sobre o pano puído. – Isso é digno de uma biblioteca abandonada.

– Não se encontram panos para piquenique em qualquer lugar.

– Uma toalha de mesa serviria. – revirou os olhos.

– Sério? Vou pensar nisso na próxima vez.

“Próxima vez. Ele acha que iremos sair uma próxima vez?”. O silêncio foi desconfortável, enquanto ele arrumava os pratos de comida a sua frente. Havia pego vinho, duas taças e dois sanduíches saudáveis. Abigail achou que ele provavelmente pensava que ela era alguma maluca por saúde. Não o culpava.

– Então, conte-me, Abigail, sua vida.

– Por que me abriria com você?

– Porque eu sou um livro aberto. Todo mundo sabe que sou um príncipe, gêmeo de Mikhail e que sou muito gato.

– Realmente, isso todos já sabemos – ironizou, e ele sorriu, erguendo as sobrancelhas. De repente a ironia se aproximava mais facilmente. Isso significava que ela estava à vontade. Respirou fundo. Não tão à vontade, se obrigou a pensar. – Acontece, meu querido príncipe, que também sou um livro aberto. Pegue qualquer revista de fofoca inglesa e verá a mim ou meus irmãos em alguma página.

– Eu não leio revistas inglesas.

– Previsível. – se arrumou. – A história da órfã Abigail Valentine Bloodworth começa quando esta garota tem doze anos. Minha mãe morreu com câncer. – contou, embora não fosse a genuína verdade. – alguns anos depois, meu pai sofreu um acidente de carro. Os órfãos e ricos Bloodworth foram assediados pela imprensa, enquanto a herança passava toda para as mãos de crianças. Meu irmão fazia faculdade na época, então tornei-me responsável pelo dinheiro.

– Você tinha quantos anos?

– Cerca de quinze anos. – observou como ele escutava, atento. – Depois disso, crescemos todos juntos. Uma família praticamente normal, na verdade, ninguém nunca sentiu que faltava algo. Já sabíamos que teríamos de enterrar nossos pais algum dia, só não sabíamos que seria tão cedo.

– Então você é uma riquinha da alta sociedade inglesa, órfã e com uma herança enorme?

– Essa é a parte que todos vêem em mim. – respondeu.

– Eu não vejo isso. Não sabia quem era até chegar aqui. Então digamos que para mim você não é uma riquinha da alta sociedade inglesa, órfã e com uma herança enorme.

– Claro que não, imagine. Você me conhece tão bem.

– Imagino que isso seja ironia. – ele a cutucou no ombro, enquanto enchia sua taça com vinho. Abigail lembrou-se de beber pouco, queria terminar aquele encontro sóbria. Nikolai, por outro lado, tomou um longo gole, limpando a boca com a manga da camisa e enchendo novamente a taça. – Minha mãe morreu quando eu tinha quinze minutos de vida. Dizem que uma bomba atingiu o lugar onde ela estava, junto com todos os médicos e os criados. Fomos encontrados enrolados na mesma fronha, ambos imóveis. Pensaram que estávamos mortos, até que eu comecei a chorar.

– Eu diria que realmente foi você o primeiro a chorar.

– Obrigado – ele tomou outro gole e fez uma careta. – Argh, eu adoro esse vinho. É francês?

Abigail olhou para a marca.

– Alemão.

– Alemão? Do tempo da Alemanha? Que interessante. Estamos bebendo o vinho de um lugar que afundou há 100 anos. – ele riu, visivelmente bêbado. Céus, o que ela havia pedido mesmo? Um encontro rápido, curto... De preferência com alguém em plena sanidade.

– Acho melhor parar – aproximou-se, tomando a taça da mão dele. Nikolai recuou, puxando a mão e derrubando o vinho no chão. A garrafa derramou todo o seu líquido, enquanto a taça de cristal estilhaçava-se a alguns metros. – Olha o que você fez!

– Eu? – ele sorriu – Foi você que me atacou. – havia algo estranho nos olhos de Nikolai, algo... Voraz. Abigail recuou, sabendo naquele instante que tinha sido um erro escolher a biblioteca para o encontro. Se fosse uma floresta, talvez pudesse sair correndo e fugir de Nikolai. Ele deu de ombros. – E daí? É só um maldito vinho com algumas centenas de anos, resquícios da cultura e da nação alemã que agora não existem mais. Que mal pode fazer? – ele estava visivelmente irritado. – Meu melhor vinho.

Desculpe. – sussurrou, levantando-se. – Eu já vou.

– Ah, você vai? Para onde?

– Para o meu quarto. – virou-se. Não queria vê-lo ali. Não queria olhar para ele. Não enquanto estivesse com aquele ar e com aquela camisa aberta. Maldita camisa aberta!

– Seu quarto, é? – ele riu e então soluçou – Tem certeza que o quarto é seu? Abigail, este castelo é meu. E seu quarto está dentro dele.

O modo como falava parecia quase enlouquecido. Sentiu o hálito de vinho sobre seu ombro. A respiração acelerada, o coração batendo forte. Tinha que sair dali, sair o quanto antes. Sentiu os braços de Nikolai envolvendo-a, abraçando suas costas e deslizando o queixo até seu ombro.

– Você cheira bem. – ele confidenciou.

Mordeu os lábios. Estava pronta para gritar, gritar e chamar alguém para salvá-la, quando os braços de Nikolai se recolheram e ele a soltou. Escutou-o rir. Rir muito. Quando ele caiu de rir, virou-se, observando o garoto. Suas pernas balançavam enquanto ele colocava as mãos no rosto, rindo.

– Você... – ele riu – Você... – ele riu. – Você tinha que ver seu rosto!

Sentiu a raiva subindo pelas veias.

– Maldito! – gritou, partindo para cima dele e acertando dois tapas em seus braços. Nikolai se protegeu como pôde, enquanto ria. – Maldito, maldito, maldito! – ela gritava, mas agora não sentia raiva, e sim... Diversão. – Maldito – suas mãos não batiam mais no príncipe, mas faziam-lhe cócegas, assim como ela fazia em Nathan. Em seu irmãozinho maior. Sorriu. Nikolai era como Nathan. Sentiu os pulsos sendo envolvidos pelas mãos grandes de Nikolai, e a força dele surgindo através da máscara de diversão. Lágrimas escorriam pelos olhos de Abigail, parte por tanto rir, parte por Nathan. O que seria dele agora? Sozinho? Antes que pudesse notar que estava fora de si e antes de conseguir limpar os olhos, sentiu a pressão contra os lábios.

O cheiro de vinho era intenso, mas mais intenso era o gosto na boca de Nikolai. Só então percebeu que ele segurava seus pulsos, e que a beijava. Beijava! Fechou os olhos e desvencilhou-se das mãos dele, abraçando-o. Estava bêbada. E ele também.

Ele bêbado de vinho, e ela bêbada de emoções.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Abigail:http://vignette3.wikia.nocookie.net/snitchseekerrpg/images/0/0c/936full-saoirse-ronan_(2).jpg/revision/latest?cb=20120109122353
Não vou comentar nada. Mandem reviws!