O lugar a que pertenço escrita por beehive


Capítulo 4
Num dia nublado


Notas iniciais do capítulo

De vorta..



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Victor abriu a porta e entrou, calmamente. Ele e seu guarda-chuva molhado. Acabara de voltar de sua caminhada.

Rick olhou por cima do sofá, apenas para se certificar de que não era um elefante que havia entrado no seu apartamento. Depois voltou a observar a chuva lá fora, frustrado. Não era.

Ele havia colocado um disco dos Beatles para tocar a tarde inteira, e o sofá de frente para a janela. Era quinta-feira e chovia: as gotas de águas escorrendo no vidro gélido deixavam a moldura com uma tonalidade escura de umidade.

Victor passou os olhos sobre uma escrivaninha desarrumada, e uma estante com uma coleção de livros usados e discos dos anos 80. Na mesinha, um telefone pendia com um bloco de anotações mais uma lapiseira de 2mm ao lado. Ele achava cômodo o fato de que nessa época, em que tudo se fazia na tela do smartphone, Rick mantivesse hábitos clássicos, como um bom disco de vinil. Ou ainda papel e lápis.

Sentou no sofá da sala, abrindo espaço entre as almofadas:

“Então, qual foi o problema?”, falou.

Seu amigo, debruçado, bocejou, cobrindo o rosto entre as mãos.

“O amor na era moderna…”, fez o que julgava ser uma expressão de desgosto. “Sabe, Jhon Lennon ficaria horrorizado”.

Victor sentiu um comichão, e contorceu os lábios para segurar um riso. Mas acabou não conseguindo. Rick não havia percebido, mas ele achou isso formidável, porque caramba como ele conseguia rir no quarto de um homem sofrendo um ex-amor numa quinta feira chuvosa?

Rick e Rachel haviam se conhecido nas férias em Cape, na baixa-temporada, e ela apresentou-os um ao outro porque Rick precisava de um lugar na cidade para morar perto da universidade em Jump. Acabaram se tornando um trio: daí cantaram covers pops, acompanhando acordes simplistas no violão, lá mesmo, no bosque de pinheiros no largo da costa, depois das aulas. Foi assim que se tornaram amigos. Comiam no Infinity e viajavam de trem juntos, para visitar a sede central da biblioteca pública de Nova York, na quinta avenida; um ritual para estreitar laços afetivos.

(que acabou transformando o trio em um casal e um-sozinho. E depois, diga-se, em três-sozinhos. O que nunca vai ser melhor do que um trio).

Não incomodava para ele bancar o psicanalista, enquanto Richard revivia lovemoments largado no sofá. E nem ter vindo do outro lado da cidade para isso, o que já era um tanto suspeito, admitia. Só incomodava, talvez, a naturalidade que havia sido construída naquela situação; fazia parecer um beijo, querida! numa ligação da fila do supermercado. Coisa normal.

Incomodado, Victor se levantou e alisou a calça vincada de algodão que vestia. Queria dar uma olhada de perto nele, quem sabe pudesse decifrar a esfinge de seu olhar. Era uma boa chance.

Do que se lembrava, Rick sempre parecia seguro demais e dono da situação. Ele fazia de tudo para esconder seus temores, expectativas e também suas esperanças, mesmo que isso significasse emular uma personalidade que ele não era. Certa vez, contou para Victor como sua a palma da sua mão teimava em suar frio na primeira investida correspondida pela garota. Então tocou o dedo no coração dela, dizendo que ela quem estava nervosa. E isso o fez parecer tão badass e dono-da-situação que ele até simpatizou com o poster incrível de elefante que tinha na camiseta dela. Mesmo não sendo fan da banda.

Era assim que ele acreditava ser invulnerável, o homem atrás da máscara. Mas Victor insistia em bancar o “fiel escudeiro”, porque gostava de sua causa.

“Você não levantou desse sofá hoje?”, foi o que perguntou-lhe. Em seguida, abriu os vidros de correr da janela. “Ainda não superou ela?”.

Rick estava bem à vontade, com as pernas cruzadas. Vestia uma calça jeans perfeitamente descolorida, e um pulover que lhe chegava logo abaixo do queixo, porque o dia estava úmido.

E por que estava úmido, a sala cheirava a maresia, da brisa de chuva que a janela aberta trouxe.

“Ah, sim. Rachel”, respondeu Rick, enquanto se levantava do sofá, preguiçoso. Se mexia com movimentos lentos, sentindo o sangue circular da cabeça aos pés, e se acostumar a mudança de pressão; Então foi até à cozinha pegar uma garrafa de vinho.

As pessoas não querem ouvir nossos problemas, isso era o que o pai do Rick ensinava para ele, tentando passar suas filosofias próprias do que significava ser líder. Se você não é plenamente capaz de lidar com os dilemas da sua vida, pelo menos tente parecer que isso não te afeta, era mais ou menos isso que o Sr. Wayne queria dizer. Então, aos dezesseis anos, Rick nunca sabia se seu pai estava realmente interessado em falar com ele, quando tinha uma preocupação com a nova escola, porque eles vivam se mudando (e ele não queria nem pensar de não poder ver de novo a filha do comissário Gordon; de ela acabar esquecendo-o depois de conhecer outros amigos; de esses amigos...) ou se era só um gesto automático por ser ele o seu filho único. Rick sabia que o Sr. Wayne não compreendia que “ser um homem de negócios e dar continuidade à Wayne Enterprises”, segundo suas próprias palavras, não pudesse ser o sonho da vida de alguém. Mas para Richard, bem… não era.

Quando voltou trazendo uma garrafa de vidro e um caderno de jornais debaixo do braço, percebeu que o barulho de vento mais a chuva no telhado pareciam ter uma sinfonia nostálgica. Algo um tanto pungente que lhe trazia memórias da infância, tão vivas em seu cheiro e seus ruídos, que ele precisou de um momento para recuperar-se.

Victor permanecia em pé, olhando-o, como quem perguntasse se ele estava pronto para beber ou estava esperando se afogar. E, naquele momento, o balé do chuvisco que se cobria acima dos prédios, se estendia como uma névoa até o horizonte.


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