O lugar a que pertenço escrita por beehive


Capítulo 5
Zodíaco




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─ Posso pagar um drinque para a dama?

O bar era um local pequeno, com pouca luz. Teto de painéis metálicos e paredes de tijolo cheias de fotografia “vintage” em molduras cor de vinho completavam a decoração. Ela sentou-se sozinha atrás do balcão de madeira escura, onde havia uma estante com garrafas de bebidas coloridas. Tinha mais ou menos um metro e setenta, pele incrivelmente branca e um corpo preenchido de moça que havia acabado de deixar a adolescência. Wilson tinha observado-a discreto por quase meia-hora, hipnotizado por uma força nostálgica poderosa.

Chegou mais perto, e então pôde vê-la por inteiro. No meio da testa havia uma bijuteria ovalada em forma de rubi, do tamanho de um pingente grande, mas ela parecia não se incomodar em deixá-la à vista. Os cabelos, tingidos de preto, estavam divididos no meio e presos atrás, para não atrapalhar. Sob aquele, ou qualquer ângulo, ela parecia uma gótica moderninha, de alguma família abastada, que havia mimado-a demais, surfando em sexos e drogas numa boate decadente.

Quando Wilson perguntou-lhe se poderia oferecê-la uma bebida, seu primeiro impulso foi rejeitar-lhe incisiva, cortando qualquer esperança que ele tivesse em sua abordagem. Não era uma noite em que se sentisse receptiva. Havia enterrado o pai dois dias antes e, apesar de nunca terem se dado bem, ela ainda não sabia ao certo como lidar com aquilo. E não podia dizer o que a desgostava mais, se a ideia de que sempre odiara o traste que tivera por “pai”, ou o fato de que não só dava-o alguma importância, mesmo depois de morto, como também, por causa dele, estava ali na boate Zodiac. Arthur pediu-lhe que passasse algum tempo no mosteiro, até quem sabe, arrumar algo melhor, ou alguém com quem dividir a vida. Mas ela disse que pretendia deixar a cidade tão logo possa. E que só precisava “fazer uma coisa antes”. É possível que essas palavras tenham deixado Arthur preocupado, talvez, mas ele nunca demonstrava o que sentia. Nem interferia na escolha das pessoas, como é esperado de um monge.

“Fazer essa coisa”. Era isso o que ela mais desejava naquela noite, embora não soubesse ao certo o porquê. E nem quisesse saber. A única certeza de que tinha era a de que qualquer distração poderia esvaziar sua coragem, que já não era muita. Então, o sujeito.

Assim que Wilson ouviu o primeiro “Sim”, seguido de um sorriso amável e uma leve mexida no cabelo, teve a impressão de também ter visto uma expressão que poderia ser entendida como triste ou desafiadora. A moça tinha olhos grandes, e por isso as pupilas pareciam ainda mais escuras, gerando um simpático ar de desconfiança. Ele tomou nota de tentar fazê-la se sentir à vontade, como se fossem amigos de infância, enquanto chamava o barman para pedir as bebidas.

─ Então, qual é o seu nome? ─ quis saber, amável.

A frase pareceu tomá-la de surpresa, pois a dona do pingente rubi, afundada no banco, fixou o olhar com interesse no líquido colorido do copo à sua frente. Seu sorriso de dentes branquinhos foi sumindo aos poucos, dando lugar à mesma expressão tímida e apreensiva que Wilson pensou ter visto antes. Não, ele não havia se enganado. Sinto que ela esconde alguma coisa.

A luz azulada da boate se alternava ao ritmo da música pop que enchia a sala. Ter ido até ali sem uma plano de ação foi um erro, pensou ela. Mas a porta não estava tão longe. Poderia dar uma desculpa qualquer, e agradecer a bebida prometendo que na próxima seria mais interessante. Só que agora não dá. Poderia então chamar um táxi e dormir o resto da madrugada de sábado, sem ter nenhuma obrigação de acordar cedo pela manhã. Seria assim. Sem dúvida, uma ideia segura, mas o quê? Não soube dizer. Talvez pela pressão que sentia em participar de algum modo da conversa, ou porque desde que chegou ela se sentisse deslocada entre aquelas pessoas. Ou ainda pela necessidade de testar o quanto poderia soar convincente. O certo é que soltou:

─ Laila ─ falou por fim, alisando a ponta do cotovelo em um movimento involuntário, enquanto a outra mão cruzava o seio até o começo do ombro ─ Meu nome é Laila.

Wilson notou que ela tinha uma tatuagem no lado interno do braço. Uma haste, com quatro triângulos alternados, um preenchido, o seguinte não. Ele não fazia ideia o que o desenho poderia significar, mas achou que combinava perfeitamente com o restante do visual dela. Realçava sua beleza exótica.

─ Laila?

─ Isso, Laila ─ repetiu a moça. Mas Wilson sabia que ela estava mentindo. Podia afirmar só de ler sua linguagem corporal, uma de suas muitas habilidades exigidas no seu tipo de trabalho. Isso se já não soubesse quem ela era e o que estava fazendo naquele lugar. O bar estava abarrotado, passava da meia-noite. O fundo da sala consistia em um cenário banhado pelas luzes azuis e douradas, onde meia-dúzia de mulheres lindíssimas, vestidas em um tipo de vestido robótico em godê, azul e preto, dançavam pole dentro de tubos semifechados. Laila chegou a imaginar por um momento se fora confundida com as putas que tocaiavam clientes de um jeito dissimulado nas dependências da Zodiac, e que usavam nomes falsos, já meio altas, embaladas pelo ácido para aguentar os ruídos do mundo ao redor. Mas se era isso que pensava o sujeito, era sinal de que estava funcionando.

Wilson saiu da boate cerca de uma hora da manhã. Levou “Laila” com ele ─ em pensamento. Ideias confusas, queria revê-la uma outra vez, mas talvez isso não fosse mais possível. Como uma gota de água que cai do céu, trazendo outras infinitas logo em seguida, você sabe o que vai acontecer, mas não há nada que possa fazer para impedir. A não ser se cobrir e esperar não se molhar tanto. O orvalho matutino cobria de lágrimas os poucos carros estacionados na avenida.


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