Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 3
Corcovas e Perigos


Notas iniciais do capítulo

Olá, leitores!
Primeiro eu peço para que me perdoem por mais de uma semana sem atualizações... Fiquei afastada do computador por motivos médicos e falta de inspiração: uma combinação nada agradável, e eu espero que nenhum de vocês passe por isso.
Segundo, agradeço pelos elogios! Este capítulo é dedicado para Liv, Julia Rabelo e Gabi Lords, que foram muito atenciosas em seus comentários, e eu não posso esquecer da Menta *0* e do meu grande Túlio! Agradeço muuuuuuuito, e devo dizer que cada palavrinha que vocês me dão de feedback serve de combustível para eu escrever mais e melhor.
Convido os leitores fantasmas a se manifestarem nos comentários também. Não se acanhem, fantasminhas ;D Vocês serão tratados com todo carinho e atenção!
Acho que é isso.
Boa leitura!



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Saboreando um pouco da brisa e da adrenalina no peito, Raed cavalgava devagar.

Estava na direção completamente oposta das Dunas, indo por dentro da cidadela à entrada principal, a qual era voltada para as rotas de comércio mais comuns; onde a maioria esmagadora de mercadores passavam. O final da manhã se aproximava e ele ainda estava ali, distante de seu maior alvo no mapa. O máximo que conseguira fora um bicho trôpego, mal aguentando o peso da bagagem e do homem sobre seu torso. Gastara uma ninharia ridícula para obtê-lo: bastou tilintar oito moedas para que o vendedor se livrasse dele sem pensar duas vezes, sem a mais modesta barganha.

Quando o espaço tornou-se pouco para muitas pessoas, mercadorias e animais juntos, Raed pulou da sela e passou a puxá-lo pelas rédeas. Ele imaginava que um dia, há um bom tempo, o cavalo tinha sido um belo alazão, com músculos definidos, feitos para caminhas curtas e rápidas no deserto, pois havia ainda restos de dignidade e força em seus olhos castanhos. Hoje não passou de um artigo barato que seu dono desejava livrar-se logo e assim o fez.

Para Raed aquelas oito moedas de cobre foram a compra mais lucrativa do que o lojista sequer poderia imaginar.

Enquanto andavam devagar, o rapaz teve um pouco de pena. Sempre lidara melhor com animais do que com gente, e temeu pelo destino do pobre cavalo. “Negócios são negócios” ponderava para seu próprio conforto, embora tivesse a sensação de conduzir um ser inocente à morte. Era um ladrão arrogante e trapaceiro, mas não mentira para Aziz quando dissera que não era um assassino.
Chegaram então ao Portão Principal, onde uma área grande de comércio era dedicada aos viajantes, com uma variedade intensa de utensílios e provisões. As cores e cheiros de especiarias enchiam os olhos e os pulmões, ao mesmo tempo em que os ouvidos eram bombardeados de conversas altas e gritos de ofertas. Raed deu um meio sorriso, concluindo que todo lugar era igual: o mercado do Portão Principal era o mais movimentado e pitoresco, um retrato perfeito da vida nômade, onde caravanas entravam e saíam, um rosto era somente mais um, e o sol raiava quente sobre todos. Desviando de alguns feirantes mais ousados que lhe empurravam produtos, ele por fim aproximou-se de onde queria, onde o espaço era bom o suficiente para que seu cavalo andasse sem dificuldades.

Os mercadores de camelo lhe observavam, mesmo que o rapaz não procurasse por um grupo qualquer, mas sim pelo Corcova Azul: um bando antigo e criador dos camelos e dromedários mais resistentes e belos que se ouvia falar, tanto que serviram oficialmente o reino de Sundara por muitos anos, até que este veio à falência. Ainda lucravam bem e agora começavam a criar cavalos, pretendendo competir com outro clã tradicional que dominava o mercado. Para isso careciam de exemplares de qualidade igual ou superior, que fossem rápidos, fortes, obedientes e esplêndidos, pois menos do que isso não superaria o Crina Curta.

Felizmente, Raed possuía tudo o que eles precisavam.

Focou-se nas estreitas bandeiras azuis, as quais exibiam a silhueta das costas de um dromedário ou uma montanha arredondada em cobalto sobre um fundo branco, e seguiu até lá. Seu rosto transmitia calma, por mais que dentro de si tambores rufassem de nervosismo. Alethia dissera que ajudaria, mas será que ainda teria ódio por causa de sua garrafa? Ela procuraria vingança, como outros gênios fariam? O ladrão esperava que não, por mais que achasse justo.

Ao longe, ele franziu o cenho de espanto: uma figura conhecida vinha saudá-lo. “Kadar? Não, não é possível... faz tantos anos”. Poderia ser somente uma impressão boba, uma ilusão criada pela sua memória, porém todas as dúvidas vieram abaixo quando o outro rapaz veio atendê-lo, tirando o tecido azul da face para exibir um sorriso amistoso.

Foi aí que uma visão do passado lhe aterrorizou no presente.

Com o bom senso que tivera que desenvolver, o aprendiz de mercador pousou os olhos sobre aquele senhor como um falcão enfoca na presa e precisava agarrá-lo como tal ave o quanto antes. Estava em grande débito para com seu mestre, e caso não demonstrasse serviço, sofreria algo pior do que os castigos anteriores.
Diziam que como era o mais novo, tudo o que lhe acontecia era uma espécie de prova ou iniciação, e ele teria de aguentar o que fosse para ser considerado como igual por seus companheiros. Depois de andar ao meio-dia no deserto, ficar sem abrigo e sem comida na noite fria e ouvir diversas ofensas, Kadar já não tinha tanta certeza. Possuía o corpo de um homem, porém se sentia tão perdido quanto uma criança e não encontrava mais forças para se voltar contra os abusos de seu bando. Esperava que se vendesse bem, talvez lhe dessem um pouco de paz.

Nunca a folga de seus parceiros pareceu tão boa quanto naquele fim de manhã.

Ele avistara o nobre com sua montaria enquanto ainda atravessavam o mercado principal, e mesmo que aquele homem de barba branca vestisse uma roupa mais simples, teria percebido sua postura distinta. O cavalo era tão altivo quanto o dono, e parecia carregar todos os traços mais desejados por não só a Corcova Azul ou a Crina Curta, como também por sultões e distantes marajás. A sela bordada e colorida, junto da bagagem de aparência fina, só reforçava a impressão que o estranho indivíduo era importante, talvez um vizir desacompanhado ou um mercador absurdamente próspero. Kadar tinha a mais completa certeza de que não conhecia o homem, no entanto tinha a curiosa sensação que o outro lhe conhecia, tal era o brilho em seus olhos completamente negros e a expressão enigmática. Decidiu usar esta aproximação estranha ao seu favor, embora não soubesse como se dirigir ao senhor.

– Saúde, meu amo! – Ele sorriu com simpatia, querendo ser afável e humilde. Desconhecia sua classe ou posição exata, contudo faria o possível para agradá-lo a fim de que a venda fosse garantida. – Já é hora do almoço, posso lhe oferecer algo? Água, talvez?

O seu novo cliente coçou a barba,meditando a questão, em seguida meneou a cabeça em um sinal positivo. Sua quietude era notável, por mais que as expressões em sua pele bronzeada e cheia de linhas fossem respostas claras. Kadar lhe pediu com educação para que o seguisse, e os dois se sentaram em bancos baixos em torno de uma mesa também baixa, onde repousava um conjunto limpo de copos e uma jarra. Não eram tão elegantes e dignos de um vizir, porém serviriam para demonstrar gentileza e assim iniciar uma conversa tranquila. O rapaz lembrava que geralmente negócios vinham após uma breve introdução com assuntos leves, e os antigos tinham um apreço especial por este costume. Vendo que o outro permanecia em silêncio, Kadar tomou a iniciativa rápido: serviu damascos secos, água, comentou com animação sobre a comida e o tempo. O idoso respondeu com sua voz rouca, porém não alargou tanto a conversa e evitou falar sobre si ou emitir alguma opinião.

Gotas de suor nada relacionadas ao calor apareceram nas têmporas do jovem. Estaria fazendo algo errado? Ele arriscou um comentário despretensioso, lançando um olhar para o rico alazão, amarrado pelas rédeas na cerca própria para isso.

– O senhor tem uma bela montaria. – Para sua surpresa, a afirmação jogou um certo ânimo no freguês, que afinal se abriu.

– De fato. Mas... meus planos mudaram inesperadamente. – Tomou mais um gole demorado de seu copo, parecendo cansado. – Minha viagem era curta até que eu receber uma mensagem de que meu destino é muito mais longe do que o esperado. Sabe que um cavalo suntuoso não é páreo ao fervor do deserto.

– Compreendo, meu amo. Muitos dias de cavalgada podem ser fatais nesse calor, tanto para o senhor quanto para o animal... e a água acaba mais depressa do que a gente pensa. Você precisaria de algo mais resistente.

O cliente sorriu satisfeito por onde a conversa estava chegando, mesmo que o desfecho dela fosse óbvio para ambos desde o começo.

– Exatamente, meu filho. Estou disposto a trocar meu cavalo por um dos seus melhores animais.

A garganta de Kadar se abriu e fechou num engasgo atônito. Aquele bicho valia muito, valia pelo menos dois ou três camelos. Por quê o idoso não compraria com dinheiro vivo, já que claramente tinha condições?

– O senhor disse trocar? – O outro concordou com um aceno leve da cabeça, obrigando Kadar se conter de alegria. Mal podia acreditar na própria sorte! Sim, era hoje que seu mestre iria aceitá-lo e respeitá-lo pois tal troca era simplesmente a melhor venda em semanas. O rapaz se levantou com profissionalidade fingida e respondeu: - Posso ver o que arranjo para o senhor.

O jovem e velho seguiram até os camelos e dromedários. O aprendiz discursava cada particularidade deles: o mais baixo gostava de alimentos frescos; o da direita tomava mais água do que comia; outro tinha o péssimo hábito de cuspir nas pessoas, embora fosse o mais veloz; e aquele mais distante não dormia sem um afago na cabeça. Kadar sabia tudo sobre cada um, pois era quem passava mais tempo com os animais e era o único tinha verdadeira vocação para criá-los. Até mesmo deu nome à todos em segredo.

O nobre riu com as descrições e acariciava os focinhos dourados com admiração genuína, pois notara como o vendedor possuía entusiasmo pelo ofício e como os bichos pareciam saudáveis e amados. Escolheu um dromedário elegante, de pelo tosado em padrões iguais à finos tapetes, o qual o jovem lhe dissera que era o mais valente e forte de todos. Kadar não poderia esquecer como Amit lhe acompanhara por todo o percurso escaldante ao meio-dia, naquela desgraçada prova.

Antes de ir, o suposto vizir o tomou pelas mãos e com os olhos inundando intensidade, entregou-lhe algumas moedas reluzentes. Pediu para que tomasse cuidado, lhe desejou boa sorte na vida e por fim juntou as rédeas de Amit e se dirigiu à direção que viera.

Parecia que o vento gélido do deserto noturno soprara para dentro do peito de Kadar. Em seu íntimo ele percebia que havia algo de errado ou no mínimo estranho naquela situação: Um nobre viera com um cavalo lindíssimo, praticamente sua passagem para uma vida decente, cobrou pouco e ainda lhe dera moedas de ouro? Não era possível. A dita sorte nunca lhe viera, como tamanha fortuna viria assim, de repente? Kadar não viu mais o velho, e perguntava-se o que mais poderia acontecer consigo antes do dia terminar.

Quando a distância já era boa e as ruas tornaram-se mais livres, uma voz feminina e preocupada soou perto dos ouvidos do velho:

–Raed, quem era aquele moço? Você... você parecia conhecê-lo.

Conforme se aproximavam da estalagem em que estavam hospedados, as vestes longas e bordadas do velho se transformavam lentamente em tecidos escuros e gastos; a face do homem idoso mudava seu formato e rejuvenescia; e o tom grisalho de seus cabelos e barba tingia-se de preto. A aparência real do ladrão voltava sem que os outros percebessem. Ele preferia que a gênia não tocasse no assunto, todavia compreendia que aquilo fora espantoso e não reprimiu sua curiosidade, uma vez que ela prepara ilusões perfeitas ao invés de se deixar levar pela vingança.

– Era um fantasma, Alethia. – Ele respondeu, fazendo força para controlar a voz. - Uma assombração.

–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–

O sol continuou escorrendo pelo azul incandescente do céu; as horas derreteram até o entardecer.

Por recomendação e experiência própria, Raed bem sabia que não era uma boa ideia caminhar durante tanto tempo pela areia enquanto ainda fosse dia, contudo não pôde evitar: se parasse para ponderar por alguns instantes, temia olhar para trás e assim acabar retornando. Com mais calor à sua frente e suor escorrendo pela testa, desistir era um pensamento recorrente e razoável, embora com o gosto azedo da desonra.

De toda pouca dignidade que um ladrão pode ter, ele preferia carregar o orgulho de sempre progredir, de ter sucesso, realizar feitos inimagináveis.

Ou era isso que Raed tentava se convencer quando escutava sussurros de memórias antigas e fantasmas há muito enterrados. Ele rangia os dentes, esporeava Amit com mais força e trotava por alguns metros, dissolvendo esses espectros junto ao vento.

Dentro da bagagem, a garrafa púrpura sacolejava amarrada ao torso do animal, e dentro dela um ser fantástico experimentava sentimentos muito humanos: ansiedade, medo. Preocupação, acima de tudo. Antes tinha certeza de que seu amo era capaz de enfrentar as Dunas Brancas, visto a sua força e personalidade obstinada. Agora, Alethia espiralava em fumaça fúcsia de nervoso. Ele estava abalado; muito mais do que já vira em raras ocasiões. Ás vezes Raed tinha pesadelos, acordava molhado de suor e ofegante como se tivesse corrido por todos os desertos possíveis, mas nada comentava. Balançava entre a sonolência e o susto de desconfiança por um ou dois dias, no entanto permanecia quieto.
A mesma situação estava acontecendo no presente, com iguais resultados: A gênia fora jogada dentro de uma bolsa escura; seria retirada somente quando seu amo estivesse melhor.
Sem saber por quanto tempo estavam andando ou por onde se aventuravam, ela receava não tornar ver a luz tão cedo. As Dunas talvez estivessem perto, e caso ele fosse arrogante o bastante para atravessá-las naquele estado, a areia branca o consumiria.

Para o bem de ambos, o rapaz parou num pequeno oásis que encontrara.

Com as rédeas do dromedário enlaçadas à uma das palmeiras, Raed permitiu-se relaxar por algum tempo, aliás necessitava disso. Talvez apenas minutos, talvez horas inteiras. Só o cansaço de seu corpo poderia dizer. Retirou os tecidos da cabeça e mergulhou rosto na água límpida e esfregou os olhos para retirar a visão de Kadar da mente.

“Nós éramos crianças. Crianças azaradas.”

Com um suspiro cansado, ele ergueu seu pescoço para cima e deixou a brisa quente bater na sua face, tentando esvaziar o fluxo de imagens e cheiros que lhe confundiam. Por um segundo, ele conseguiu ficar em paz; já no outro, seu coração quase explodiu numa arritmia violenta.

Alguém lhe tampara a boca e o puxara para trás.

– Quieto. – A voz lhe dissera num murmúrio, ainda o segurando firme o corpo que se debatia. Fora pego desprevenido e desarmado. – Eu não mataria quem eu costumava chamar de irmão há anos atrás, e cliente só há algumas horas.

Raed acalmou-se mais por choque do que por qualquer outro motivo, de modo que seu misterioso algoz retirou as mãos cautelosamente de seus lábios. Não queria que o ladrão falasse alto e muito menos gritasse. Correr também seria igualmente estúpido, senão pior.
Algo maior e perigoso estava mais próximo do que o primeiro poderia supor.

Um jovem praticamente da idade do amo de Alethia sorriu quando ele e Raed se entreolharam, e logo em seguida lhe atirou exatamente oito moedas, as quais caíram sem barulho na areia.

– Não sei que tipo de feitiçaria você se envolveu, meu amigo, mas da próxima vez que quiser me enganar, me dê uma dica mais fácil. Sabe que nunca tive tempo para suas infames gracinhas.

Kadar o encarou com uma das sobrancelhas levantadas, naquele antigo gesto que Raed bem reconhecia. “Deu certo” o caçador de recompensas pensou, surpreso por ter elaborado algo que o outro pudesse perceber, mesmo que não tão depressa.
Enquanto ainda era um velho desfrutando da comida e da bebida da Corcova Azul, seu sangue estava em ebulição. Queria dizer algo ao seu amigo de infância, contudo não seria capaz disso trajando a ilusão da gênia.

Foi neste exato momento em que algo extraordinário aconteceu.

O ladrão sentiu uma presença dentro de si, um aroma diferente, embora não houvesse uma única flor por perto; e além da aflição crescente em seu peito, um toque de conforto também surgiu de modo espontâneo. Então, ele chamou por Alethia silenciosamente, um pedido que ecoou pelos cantos sombrios de sua cabeça.

Ela respondeu.

Respondeu e lhe ajudou com o que fosse preciso.

As moedas de ouro reluziam sob o olhar dos dois, com os dizeres que eles, e apenas eles, dariam maior valor:

“Duvidas que eu roube as romãs do rei?”

Se tivesse fôlego, Raed gargalharia.

– Finalmente. – Disse ao levantar-se. – Pensei que deixaria me esperando por muito mais tempo. Aos pés dele, oito moedas de ouro com palavras inicialmente desconexas se dissolveram em oito moedas de cobre.

A compra mais lucrativa do que o lojista sequer poderia imaginar.


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Notas finais do capítulo

Gostaram?
Aguardo comentários e, quem sabe uma recomendaçãozinha hehihie ^~^
Caso alguma parte esteja confusa, com um sentido estranho e/ou ortografia errada, peço que me corrijam. Faço o meu melhor, porém escorrego vez ou outra. Obrigada por me acompanharem!



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