Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 2
A Gênia e o Menino


Notas iniciais do capítulo

Aqui vai o segundo capítulo :3
Confesso que é parado, mas contém alguns esclarecimentos importantes para o resto do enredo. Não acho que essas informações ficariam boas picotadas em outros capítulos. Enfim, boa leitura!



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Enquanto verificava seus suprimentos, bafejos saíam da boca de Raed. Pensava em diversas coisas ao contar seus alimentos secos e utensílios, mas o que mais lhe martelou na cabeça foi uma necessidade: “Eu preciso de um cavalo.”
O quarto em que se alojara era pequeno, e não careceu mais do que duas velas médias para que o ambiente se enchesse de uma luz morna e amena, o suficiente para que enxergasse, mas não para o incômodo de outros hóspedes. A hora da alvorada ainda demoraria um pouco à despertar, e todos ainda estavam recolhidos em seus aposentos, desfrutando de uma abençoada noite de sono após um banquete simples e saboroso na ceia. O próprio Raed dormira bem, sonhara até, mas queria partir logo. O jovem ladrão escolhera uma pousada discreta, barata e decente; no entanto não queria mais atenção do que chamara pelo simples fato de ser um estranho viajando sozinho, sem nem um camelo. Ele olhava a sacola de tecido se encher gradativamente e voltava a sussurrar “Droga. Preciso de um cavalo”.

Ficou por vários minutos em silêncio, arquitetando como conseguiria condução até onde queria chegar, e se teria paciência para barganhar o preço de uma montaria ordinária. Provavelmente não. Entretanto, tinha preguiça de roubar.

–Sabe, ás vezes eu queria que essa minha vida de ladrão fosse mais fácil. – Ele suspirou, dando um apertou final no nó da bolsa.

Quem o ouvisse, ou até mesmo fosse bisbilhoteiro o bastante para olhar pelo buraco da gasta fechadura, não veria nada mais do que um rapaz fazendo as malas para uma viagem longa pelo deserto. Havia tecidos de tendas e provisões variadas. E também não ouviria mais do que uma afirmação dita de forma banal, para ninguém específico.

Mas Raed esperava uma resposta.

– O que é? – Ele se virou para a garrafa roxa, inclinada sobre uma almofada na cama. Com um olhar de esguelha, desconfiado, soltou um pequeno riso. – Está quieta hoje. Ficou com ciúme de Farah?

O vidro púrpura brilhou como ferro em brasa, e seus arabescos de ouro tornaram-se veias incandescentes. Por um segundo, ele temeu que a almofada pegasse fogo, porém relaxou quando o longo recipiente voltou ao normal pouco depois.
Então se aproximou, pegou os lençóis que chutara ao chão em seu sono, e começou a dobrá-los. Geralmente, fazia pouco caso do comportamento anômalo de sua companheira de viagens.

– Ainda está brava comigo? – Mais silêncio. - Ora, vamos. Já sei o que é. – Ele disse com desânimo, pois estava mais do que farto daquela história. - Faz três semanas que isto aconteceu!

Fumaça saiu de sua tampa pontiaguda, e como se estivesse viva, lançou-se sobre o rosto do rapaz e o enrodilhou em uma espiral lavanda. Raed espirrou e tossiu, praguejando mil e uma ofensas enquanto abanava a curiosa névoa.

– Você é mesmo uma víbora. – Ele largou o tecido dobrado em cima da garrafa, tirando-a de sua vista. – Deveria ter deixado que te levassem.

Uma voz suave e acompanhada de um eco sobrenatural ressoou pelas paredes, e seu tom era de acusação. Ela tinha cautela em não deixar a ira em sua fala denunciá-los, contudo não poderia impedir a si mesma de exibir seu profundo desgosto.

– Você perdeu a minha garrafa. A minha garrafa! – Ele passou a mão pelas têmporas, preparado para o que ouviria a seguir. Tiveram a mesma conversa tempos antes. – Sabe quantas centenas de anos demorei a encontrar uma que fosse adequada? Que fosse confortável? E então, num belo dia, um ladrãozinho como você permitiu que roubassem meu único e mais importante pertence!

– Eu não permiti que me roubassem. – Respondeu, ofendido pela forma como ela havia se referido à sua pessoa. Irritado, tentava em vão se justificar. – Sete homens me espancaram e levaram tudo. Só deu tempo para pegar outro frasco qualquer e te engarrafar quando eles te destamparam, daí eu fugi e tive que roubar tudo de novo. – Ele encarava a cama com raiva, na área onde jogara o lençol.

Será que ela o lembraria desse péssimo infortúnio pelas semanas seguintes? Será que esta próxima viagem, que já era difícil o suficiente, seria orquestrada pelas reclamações dela? Caso sim, ele temia em não se controlar e jogar o maldito vidro novo no meio das dunas, onde ninguém o encontraria por talvez milênios.

– Passamos cinco dias perambulando nesse mercado e nem para me arrumar algo mais elegante.

Raed visualizava a linda cena de dezenas de cacos roxos voando para todos os lados, e parecia realmente ouvir o delicioso som dos estilhaços. Queria quebrar a garrafa, embora isso não fosse livrá-lo de fato da voz dela.

– Alethia! – Chamou-a pelo nome, com a calma restaurada e lembrando-se de como necessitava de sua ajuda. – Não são nem seis horas da manhã para que brigue comigo, e saiba que me arrependo muito. Se esqueceu de quantas vezes pedi perdão?

Não, ela não se esquecera dos inúmeros pedidos de desculpas, porém a versão dos fatos que tinha era ligeiramente diferente: Sete homens o roubaram porquê Raed não prestara atenção nos avisos que ela lhe dera. Portanto, permitira sim que o espancassem. E se isso não fosse o bastante, a dona da voz tinha a sensação que todo o remorso dele era motivado pelo medo de ser amaldiçoado por ela, não por real pesar.
Bem ou mal, não há como voltar no tempo, ou ao menos isso não estava dentro dos seus poderes. Desta forma, ela baixou a guarda e abrandou o tom.

– Eu ainda quero uma garrafa nova. – A voz concluiu, ainda dentro do dito frasco.

– Ah, eu vou conseguir uma que lhe agrade. – “Uma que a rolha lhe tampe a boca”, completou mentalmente. Ele tentara comprar algo que fizesse o seu gosto, mas nada do que oferecia era aceito, de maneira que o jovem parecia um louco conversando com um objeto em sua cintura em pleno bazar. Atraíra atenção alheia de modo vergonhoso.

Ao mesmo tempo em que ela o importunava, Raed admitia que sem ela faria pouco do que fizera na maioria de suas jornadas. Ele já era insano antes de encontrá-la, fora perseguido, ferido e enganado em suas buscas, porém a ousadia que o conduzia aos tesouros tinha uma margem maior de sucesso com o auxílio de uma gênia. Não teria sido capaz de colher a Flor das Nove Pétalas próxima ao rio de magma, e não teria checado as verdades e boatos na boca de outras pessoas. Com Alethia, Aquela que Não Conhece a Mentira, as ilusões se dissolviam fáceis aos olhos do simples mortal que era.

Exceto no triste episódio da garrafa.

Ambos voltaram ao conforto do silêncio, uma vez que não havia sentido em discutir por algo que já estava feito. Ela o observava colorido em tons púrpura através do vidro, enquanto o rapaz examinava mais uma vez o seu recém-adquirido mapa, comparando-o com outros que tinha e relendo informações que conseguira em curtas notas.
Ainda coberta pelo véu dos sonhos, a luz fria começava a entrar aos fiapos pelas frestas da janela, e a gênia constatava o quanto ele se transformara com o passar do tempo. Seu rosto estava mais firme, o maxilar mais pronunciado e seus movimentos eram felinos de tão calmos; diferente do adolescente baixo e faminto que conhecera. Era uma experiência nova para Alethia acompanhar o envelhecimento de um mortal, pois em sua solidão e olhar distante, todos pareciam crescer e morrer muito rápido e de modo demasiado simples. O processo da vida visto de longe, não era mais do que uma sequência de ironias e alguns alegres acidentes. Não era tão fantástico e incompreensível como ver de perto.
Imagens do garoto ágil e com ares de importante lhe passaram na mente: inconsequente como tantos outros de sua idade, porém o único a possuir tamanho desprezo pela vida. A prova foi sua decisão de recolher a lâmpada mágica.

Somente os gananciosos, os ousados e os desesperados o fariam, pois ninguém poderia ser tão tolo para cometer tal estupidez.

Gênios eram perigosos e aprendia-se a essa lição muito cedo, através de lendas e boatos de um parente ou vizinho não tão distante. Os que sobreviveram ou testemunharam as aparições contavam que eles eram imprevisíveis e poderosos à ponto de criar ou destruir o que quer que fosse. Alguns eram bondosos e concediam até três desejos para quem lhes despertassem; outros somente queriam ser deixados em paz, e por isso propunham enigmas em troca de um único pedido, e caso alguém errasse, apenas desapareciam. Já outros, aqueles que todos temiam, matavam, amaldiçoavam gerações, invertiam o sentido dos desejos dos homens e eram capazes das mais diferentes desgraças, inclusive quebrar almas.

E almas quebradas não tem destino.

Todo gênio há de usar seus poderes quando desperto, e ela não queria mais conceder alegrias tão fúteis que sempre geravam lágrimas: riqueza, poder e luxúria. Alethia estava exausta dos desejos viciosos dos mortais, e como a maioria de sua espécie, se isolou em um lugar estéril e distante: ruínas de um palácio.
Tudo o que poderia ser aproveitado do lugar fora levado há tempos, só havia o peso da egrégora triste e a leveza de memórias distantes, e ela sabia que ninguém procura felicidade entre entulhos e cinzas. Lá, ela se escondeu.

Lá, um garoto ganancioso, ousado e desesperado cometeu a dita estupidez.

A gênia não queria realizar seus três desejos por ele ainda ser uma criança ao seu ver, porém não teve coragem de matá-lo justamente por essa razão. Mas, tampouco optou por um desafio ou charada; ao invés disso ela pediu uma história que lhe comovesse.

Como aquele mortal de pouca vida surpreenderia um ser que possuía centenas de anos?

Os olhos dele, acinzentados como o carvão ao seu redor, se fecharam, e a sua boca se pôs a narrar como chegara até ali, em troca da lealdade da gênia. Era o desejo mais audacioso que ouvira, e por mais que o enigma por trás dele lhe atiçasse a curiosidade, Alethia tinha a intenção de simplesmente dissipar-se junto ao vento.

Após o conto, Alethia só conseguiu dizer: “Sim, meu amo.”

A serenidade da manhã então perturbou Raed.

– Eu sei que nós não somos duas aves tagarelas, mas não me lembro de você ter feito votos de silêncio. – Ele retirou o tecido que havia jogado em cima dela, pressentindo que havia algo a mais que não queria lhe dizer. Sentado no chão, o jovem conversou com a garrafa como se falasse á um ser de carne e osso deitado sobre a cama.

– Essa viagem. – Desperta, ela suspirou sua resposta. Havia um peso dentro de si, embora não soubesse dizer exatamente o que era, dentre os vários pensamentos que lhe rodeavam. – Aziz tem razão. Você está entrando num terreno perigoso, talvez não sobreviva.

– E ainda assim, você não pode me dizer o que tem nessas malditas Dunas. – A afirmação destilava veneno, mesmo que o ladrão não estivesse com raiva dela e sim do Código que ela seguia. Havia coisas que gênios não poderiam dizer aos mortais, e havia coisas até mesmo eles desconheciam.

Alethia sabia o que havia nas Dunas Brancas e do quê esse lugar era capaz, porém não o que havia além delas. De qualquer forma, porém, não era permitido que contasse uma única palavra.
No entanto isso não lhe fazia apreensiva, pois existia uma forma de resistir às Dunas e ela confiava que seu amo, com um pouco mais de força, conseguiria. Na verdade, a gênia perguntava-se tinha sido uma decisão sábia ajudar o adolescente naquele entardecer, ele poderia ter desenvolvido uma ilusão de invulnerabilidade, o que não poderia ser mais distante dos fatos. Ao prometer-se lealdade a um mortal, não era mais possível ter vislumbres do futuro deste ou sentir suas intenções e pensamentos. Gênios tratavam seus amos como iguais nesse sentido, de maneira que o futuro dele não passava de um arrepio funesto para a sua excêntrica companheira.

Ele ainda era um simples mortal, fadado à fragilidade de seu corpo.

–Gostaria de lhe dizer que há algo além da areia, meu amo, mas você compreende é impossível. Não consigo ver o que está por vir. – Ela continuou como se pedisse desculpas. -... Só posso lhe garantir meu auxílio.

– Bem... – Levantou e esticou as costas. – Nunca pedi muito mais do que isso. Já sei que um dia vou morrer mesmo.

Uma risada curta e melancólica saiu da garrafa. Alethia não conseguia deixar de pensar que ele tinha razão, e de quantas vezes pensara que os momentos finais dele tinham chegado. Não era a primeira ocasião que fariam algo arriscado, e pela determinação de Raed, não seria a última.

Ele queria morrer em grande estilo.

–Estou longe de ser alguém que consola os outros, mas não quero que se sinta culpada. – De novo, ele se lembrou de como os poderes dela lhe eram úteis: não precisou mais do que uma semana na cidade em que estavam para recolher bons fragmentos do passado de Aziz e assim formar uma linha do tempo bem interessante. A velha não era assim tão diferente dele, afinal, por mais que o novo nome dela escondesse seu passado cheio de sombras: Adail, a Guia. - Aliás... - A boca dele mordeu os lábios para que seu sorriso não crescesse mais do que deveria. - Você pode se redimir fazendo um pequeno favor.

Ela deu um falso resmungo, e apesar de desconfiada, ria dentro da garrafa.

–E o que seria, meu amo?

O ladrão encarou a bagagem e depois se voltou para a Alethia, com as sobrancelhas erguidas numa expressão desanimada.

–Me ajude a arrumar um cavalo.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Novamente, peço para que me corrijam, caso algum erro de ortografia apareça e não se acanhem em comentar!



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