Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 22
As Borras do Café


Notas iniciais do capítulo

Bom-dia!
Peço desculpas por deixá-los esperando, mas aqui está o novo capítulo e espero que gostem ♥
Agradeço a todos que estão acompanhando essa história, o apoio de vocês significa muito - mesmo que existam fantasminhas entre nós. Muito obrigada!
Caso algo tenha ficado confuso, é só avisar, porque tenho o hábito de fazer um fluxo de pensamento dos personagens e etc.



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“Lá fora é tão absurdo quando aqui dentro”

 A mulher disse, com constelações de sardas no rosto e um breve sorriso em seus lábios curtos e rosados. Disse e se foi, feito um sonho, feito uma estranha alucinação de uma mente de repente atormentada por pesadelos.

“É o Paraíso”

A carruagem puxada por elegantes dromedários chacoalhava um pouco, mesmo em solo plano e bem cuidado. Era só ritmo dos animais, talvez culpa dos paralelepípedos depois, próximo à Base de Munira. De qualquer forma Kadar era indiferente, pois os orbes verdes e sinistros ainda o encaravam na neblina ao flutuar inconsciente; as unhas e a saliva de Tamir ainda estavam sobre si, ardendo. Aquela canção tocava em seus ouvidos há dias e pessoas sem rosto e uniformizadas corriam para prender seu corpo e lhe injetar morfina.

“Ele deveria estar morto.”

Um trio de soldados rasos checou de leve a carruagem aberta, mas dificilmente alguém trajado com as cores da Ascensão apresentaria perigo real, além do fato de Karim ser um rosto conhecido por ali. Discretamente ele lançou cumprimentos e sorrisos secos, o que era de se estranhar, afinal, sempre o doutor perguntava sobre os filhos pequenos de Hadi e soltava gracejos sobre o tempo ou o penteado de Zahra, que não parava de encontrar um novo jeito de prender seu cabelo volumoso. Num dia comum, ignoraria a agonia de Ghazal por minutos perdidos e aguentaria bafejos de frustração e palavras ácidas dela, mas havia vincos e rugas em sua face e estes não eram vindos de um largo sorriso, tão banal à sua expressão. Zahra conferiu os R.As, até mesmo daquele rapaz que nunca vira perto dos doutores, e tentou ler também o seu semblante. O que um alfaiate estaria fazendo ali? Sentiu tensão, vazio e mais nada vindo dele. Uma incógnita, uma interrogação. Ela deu o sinal para seus companheiros na guarita e por fim os portões se abriram.

“Bahadur o interrogará; farão testes contigo”

O caminho era largo o suficiente para que três daquelas carruagens corressem juntas ao mesmo tempo; alguns jardineiros cuidavam dos arbustos baixos ao lado e pararam seu ofício para vê-los passar. O corpo de Kadar transpirava mesmo após o banho de água gelada que levara sem querer de Karim, mas os outros não pareciam se importar tanto com o calor ainda que trajassem roupas mais escuras do que a dele. Seus olhos tentaram encontrar a origem de tanta luz e brasa, de lampejos dourados ferindo sua retina.
Vivia no deserto, estava acostumado com a dor por detrás de seus globos oculares devido à claridade intensa e lufadas de areia, no entanto o pouco dos mistérios do mundo que vivenciara, a gênio, o Salto e as Ruínas, não havia lhe preparado para enxergar aquele rosto. 

— Munira... – Balbuciou aquele nome quase santo, abrindo a boca e deixando-a aberta.

O mundo à sua volta derreteu como o gelo que caíra no chão.

Ela estava no livro. Ela estava nas histórias contadas pela voz amável de sua mãe, enquanto suor escorria de sua testa sobre o tear. Ela estava nas lendas de guerra narradas por cada ancião em cada vila, não importa quão distante de Nirav. Kadar morava longe, na Corcova Azul e a conhecia, pois não havia menino ou menina que não conhecesse seu nome e sua bravura.

Munira, o Escudo. Para alguns, a Justa, a Guardiã.

E ela o encarava, sua postura solene com o rosto erguido e ombros retos. Na mão direita e levantada na altura do peitoral, um escudo com sinuosos detalhes; na esquerda um lança descansada encostando sua ponta na base. A estátua de pedra bege era opaca, seus traços exibiam a altivez da mais velha dos Três Irmãos de Nirav, que não usava uma armadura adequada assim como na história; apenas um elmo, ombreiras, braçadeiras e caneleiras de bronze.

Contornaram a imensa escultura ladeada por um baixo anel de fogo e seguiram em frente, até a entrada. Pessoas os receberam, mais figuras trajadas em bege e dourado, com poucas palavras a dar e muito que cumprir. O rapaz não quis que o tocassem, mas seu corpo estava mole e quase deixou o livro cair mais uma vez ao chão, de forma que mais braços vieram ao seu encontro para ajudá-lo a descer. Retraiu-se respirando pesado, sem forças para desvencilhar-se. O que acontecia consigo? Seriam as drogas que o obrigavam a tomar, em pequenas balas amargas com água? Eles diziam que era para sua tontura constante, para as ondas de ansiedade que vinham lhe asfixiar, no entanto Kadar já não tinha mais essa e outras certezas.

Alethia lhe prometera segurança e luz, e ela não era perversa como tantos velhos avisaram ser a natureza dos gênios, ou ao menos não com Raed. Depois de sua magia encontrara Tamir, afogara-se, teve crises de pânicos e a sensação de ser pequeno demais num lugar grande demais. Nem o deserto parecia tão imenso e árido quanto o ar em seu tórax. Orou para que tudo fizesse sentido como uma miragem que aos poucos desanuvia-se da cabeça, mas no momento presente eletricidade percorria todo o seu corpo.

Havia torres de vigia, havia mil e um olhos atentos na Alvorada. Ele não era capaz de processar mais do que a visão de Munira e dúvidas recortadas que lhe envenenavam, no entanto sabia que o local era grande, aberto e cheio. O vento circulava fácil pelas bandeiras, matreiro, trazendo os sons distantes e afiados de lâminas e do trotar de cavalos.

Subiram os breves degraus, o piso polido e decorado adentro era o palco perfeito para que pés de sangue nobre andassem por cima, embora Kadar preferisse caminhar descalço sobre a areia de Ravel ao meio dia. Iluminados pela abóbada de vidro a muitos metros acima de suas cabeças, saíram do centro da construção evitando as laterais e escadarias internas. Quando viu, estavam no lado de fora mais uma vez, caminhando por uma extensa varanda que dava para um campo aberto e arenoso.

Era uma arena e dúzias de cavaleiros montados cavalgavam ali, armas em suas mãos e ordem em seus movimentos.

Karim foi à frente, apertando o passo até o homem de costas para eles, com as mãos postas para trás e uma postura observadora. Somente quando aproximou-se que o corcovano notou o riso que o outro tinha, principalmente quando um cavalo negro veio à sua mão receber um terno afago. Safir. Ele se virou com o chamado de Karim enquanto agradava o focinho do animal, ainda com o sorriso largo e entusiasmado, satisfeito. Porém, conforme os lábios do doutor se mexiam e gestos escapavam de suas mãos, o riso do homem diminuía e diminuía, restando somente um rosto severo.

Ghazal remexeu-se no mesmo lugar, tão desconfortável quanto seu paciente.

— Relatório na minha mesa até ás quatro horas. Ás cinco, reunião. – Seus olhos eram metal, de minério duro e danificado pela guerra, mas não enferrujado. Jamais enferrujaria. Então ele se dirigiu a outros oficiais de bege. – Mandem meu cavalo para os estábulos. O restante da equipe está dispensada do treino, mas quero que a agenda seja cumprida normalmente depois disso. Já nós dois, – As íris dele desabaram sobre o jovem corcovano – Desfrutaremos de uma refeição adorável enquanto me conta como encontrou o meu cavalo. E o porquê ele não envelheceu um só dia.

Ele apertou um dos ombros de Kadar de uma maneira amigável, mas não sorria.

“Quem você é de verdade?”

  * * * * *  * * * * *  * * * * *  * * * * *  * * * * *

Kadar apertou as bordas duras da capa do livro, imaginando de súbito fundir-se às páginas coloridas e não passar de um mero desenho insignificante na borda. Depois, viu que tal pensamento era tolo e sua postura infantil, afinal, lá estava ele sentado numa confortável cadeira de braços em ondas e acolchoada em tecido bege. Débil, gaguejante e nervoso como uma criança prestes a receber a maior bronca de sua vida, mas a diferença é que agora poderia ser morto, assassinado oficialmente para defender os interesses e a honra de Nirav.

Pensou ter ouvido o trinco da porta atrás de si fechar-se, selando também a sua vida, mas isto jamais aconteceu. A voz grave de Bahadur apenas agradeceu um de seus inúmeros subordinados e em seguida a porta bateu de leve, sem o virar da chave; se bem que talvez não precisassem de chaves ali. Já vira algumas portas automáticas deslizando para a esquerda, para a direita, para cima e para baixo, e todas ainda emitiam um ruído engraçado. Kadar enxergava a si próprio nos preparativos das viagens de negócios em Corcova Azul, tampando garrafas d’água cheias até o gargalo naquele mesmo som de ar comprimido.

E então lhe vieram imagens também de agulhas, do soro pingando, do bipe das máquinas, do ritmo de sua respiração e cada traço seu sendo medidos hora a hora. Lembrou-se da sensação de não saber de nada, e de que isso permanecia aceso em ondas de ansiedade em seu estômago.

Ele engoliu seco, apertando as pálpebras.

— Aqui está. – O homem se aproximou da mesa, trazendo uma bandeja de prata com um jogo de chá feito de vidro e com detalhes dourados e impecáveis. Antes de se sentar, deu ao rapaz um pequeno copo, e depois apoiou a bandeja na madeira escura. – Gosto de tomar chá por volta deste horário, mas gosto sem muito açúcar, assim a dá para balancear com o gosto do folheado de nozes. Pegue um.

Kadar ouviu a frase mais como uma ordem do que uma gentileza, tanto que teve que forçar o seu braço a ser mais leve ao alcançar primeiro um guardanapo, depois o doce lambuzado em mel. Encarou a textura da massa bem assada, das nozes trituradas, e o abocanhou.

O barulho quebradiço ecoou pelas distantes paredes da sala.

Mastigou e mastigou, então educadamente parou para uma pausa, a fim de mirar a figura por detrás da mesa. Geralmente se comeria aquele doce depois da refeição, numa ocasião especial... Mas Kadar sabia que não era assim no Paraíso. Amêndoas, caldas, nozes... O que era mais doce e suculento existia ali. Apenas os dois estavam naquele ambiente espaçoso, com uma vasta varanda ao fundo, leves cortinas e móveis de mogno. Era uma sala abaixo do escritório do comandante, mais para encontros e outros compromissos sociais que deveriam ser mantidos à parte do que era mais importante. Havia pergaminhos enrolados de um lado, prateleiras, quadros de detalhados mapas do outro. Na janela próxima a Bahadur, um poleiro vazio, e na parede oposta dois lances de escadas com uma estranha rampa.

Ele, por sua vez, passava as pontas dos dedos pela sua barba e o bigode bem aparados, ambos de pelos cinzentos, grisalhos. Rugas em volta de seus olhos lhe conferiam um ar agradável enquanto encarava um ponto distante, além da visão de Kadar. 

— Ah, que saudade do vento seco daqui. – Disse ele, de modo despretensioso. Seu tom não parecia falso por mais que se tratasse de um gancho lançado a esmo para fisgar uma conversa estranha com o rapaz. Ainda assim o jovem não largou o seu livro e muito provavelmente não largaria a ideia de manter-se calado. O homem lhe deu o peso de seus olhos negros, como se o visse pela primeira vez e ajeitou-se na cadeira, tomando uma postura mais ereta. – Prefere chá gelado? Ou está sem açúcar demais?

— Não, é... – Kadar inspirou forte. – Agradeço sua generosidade maior que o céu, meu amo. É que não estou com muita vontade mesmo, obrigado.

— Entendo. – Meneou a cabeça, em concordância. Aquele garoto não ia abrir a boca por conta própria e parte de Bahadur não o culpava. Primeiro que seu nome, e o de sua esposa principalmente, eram famosos pelas guerras e Kadar era um jovem mercador, somente um pouco acima de um simples aldeão. Bahadur e Natea Artesh eram figuras de impacto em qualquer lugar, de certo ele pensava que iria matá-lo ao fim do dia. – Estive longe, na mais distante ilha das Ilhas Nereida, Cranto. – Ele riu e aquilo pareceu fisgá-lo. – Acho que o destino sempre acaba me mandando para lá. Bem, devo dizer que em todo o serviço, foi uma surpresa receber a mensagem sobre um rapaz que apareceu boiando na água.

— Tenha certeza de que não foi uma surpresa apenas para o senhor.

— Digamos que... – Bebeu um gole do chá, tomando uma breve pausa. – Que não é raro a água nos trazer surpresas, rapaz. De fato, não é raro.  – Animais, homens e mulheres. Já acontecera de vir uma criança e aquilo o atormentava. Todos inchados, pálidos e sem histórias para contar, como todo corpo afogado haveria de ser. – Mas, é um deslumbre avistar alguém que ainda carrega um sopro de vida dentro de si. Devo dizer que fiquei muito interessado e não adiei o meu regresso.

O relatório sobre Kadar começava com seu nome, que por si só já mostrava algo singular: Um bastardo em Nirav.

“Peso: 83,52 kg
         Altura: 1,77 m
        Olhos: castanhos                 Cabelos: castanhos
        Nascimento: 01/10/0908    Naturalidade: Corcova Azul
        Escolaridade: Indefinida        Ocupação: Mercador

Observações: Cicatrizes nos braços e sinais de contusões recentes; ferimentos recém-abertos. Porcentagem de gordura dentro dos padrões, músculos robustos pelo trabalho árduo; Pele queimada de Sol. Linguajar educado, polido para um sotaque seminômade dos mercadores corcovanos do Nordeste.

Sem sequelas, porém mentalmente instável. Mantido sob observação constante.”

— Eu sobrevivi à água gelada. Só isso. – A voz de Kadar saiu mais alto do que pretendia, ou melhor, saiu de repente de sua garganta. Seus olhos arregalaram-se de súbito, o copo queria quebrar em sua mão. Embora o próprio rapaz não tivesse palavras para explicar o que ocorria em sua cabeça ou a razão exata por trás da maré de ira, Bahadur poderia sorrir.

Houve uma batida firme na porta e em seguida alguns serviçais entraram com bandejas, silenciosos na arte de adornar a mesa. Bahadur continuou a dizer algo leve e inútil que poderia ser ouvido pelos tímpanos de qualquer um sem grandes repercussões, tanto que o corcovano do outro lado da mesa não se deu o trabalho de prestar atenção. Taças e talheres reluzentes, uma longa travessa de carneiro fumegando, pão, legumes picados e arroz cozido com aneto. O jovem ficou a admirar o prato que era seu, digno de um vizir, tentado a saborear a comida o quanto antes.

Com ar brando e paciente, o comandante suspirou. Natea gostaria de conhecer o jovem, por alguma razão. Talvez fosse seu nervosismo, o jeito de quem desconhecia própria grandeza. Talvez porquê, de certa forma, Kadar fosse parecido com ele próprio muitos anos atrás.

“Bem,” ele afrouxou os dedos sobre o livro em seu colo. “Eu mereço uma boa refeição”

Kadar começou a comer com gosto, enchendo o seu pão com uma porção de carne e molho sem que vozes gritassem mais e mais memórias preocupantes. Se os testes de Bahadur se baseassem em boas refeições, ele não teria problemas em comparecer à Alvorada três vezes ao dia, se não mais.
A cada mordida, o rapaz relaxava os músculos dos ombros e do rosto; riu deu alguma piada tola feita por Bahadur e voltou a mastigar. Agora ouvia também o som dos pássaros lá fora e o farfalhar do vento em árvores, também havia o riso de pessoas em algum lugar lá embaixo.

— Almoçar assim sempre me deixa de bom humor. – O niravo limpou os lábios com um guardanapo de linho, satisfeito pela comida ter lhe aprazido no sabor e atingido seu objetivo principal: apaziguar a combustão crescente que o meninote era. Era uma estratégia de negociação que poucas vezes falhava. – Gosto de pratos mais concentrados, mais campestres. Tempero forte! Era uma das coisas que mais me atraía na velha Sundara, apesar de ter ido apenas três ou quatros vezes, com Natea. Todo mundo deveria comer uma refeição lá ao menos uma vez na vida; uma pena que isso nunca mais seja possível.

— Eu cheguei a frequentar o Palácio quando criança... – Ele olhou o outro com cuidado, meio de soslaio, para então continuar a brincar com o prato.

— Realmente cheio de surpresas... – Respondeu com um lampejo diferente em suas pupilas afiadas, mas era nítido que Kadar não diria muito sobre si naquela tarde. – Um lugar adorável, abençoado. Porto Leste, Porto Oeste. Água doce, chuvas regulares. Tinha o clima rústico que aqui se perdeu... Uma pena que tenha virado tudo cinzas. – As mãos calejadas do homem percorreram a própria testa, as rugas se acentuaram em torno dos olhos. A memória de anos atrás parecia castigá-lo com anos a mais. – Uma tragédia. Não é à toa que agora o chamam de...

— Lamúria. – Kadar completou.

— É. Lamúria.

Ao contrário de outros homens, o comandante não apenas falava das guerras e da devastação; ele as vivenciara de perto, participara ativamente na Conquista das Ilhas Nereida, a oeste de Sundara e muito longe de Nirav. Ele e sua esposa. As cicatrizes na sobrancelha e nos lábios, nas mãos e nas bochechas não mentiam: Bahadur não se vangloriara das batalhas, embora fosse abençoado com as amarguras da vitória.

— Ainda há purmânios lá?

— Não tanto quanto dizem, acredito que esse boato seja só para afastar as pessoas. Mas posso te assegurar que eles não querem o terreno para si. Eles a querem devastada. – Bahadur levantou-se da mesa, caminhando um pouco para a varanda. A visão do horizonte derramando-se para si o fazia libertar os corvos que eram as lembranças do sangue e de espadas. – Enquanto a rainha Ambra viver, não haverá tijolo ou alma nirava de pé ali. – Soltou um bafejo. – Era tarde demais para nós quando chegamos, o cerco estava feito. Restou-nos lamber as feridas como animais.

O silencio veio e se foi, afastando fantasmas dali. Kadar evitou dizer que estava nos portões de Sundara naquele dia, mas não pôde evitar a sombra que lhe passou pela expressão. Quantas perdas houve desde a Queda? Raed perdeu tudo o que tinha. Kadar havia perdido Raed. Natea Artesh perdera os movimentos das pernas e quase perdera a própria vida. Anos mais tarde, Bahadur perdeu Natea.

Mais guerras vieram depois, algumas não bem resolvidas ainda. Os conflitos das Ilhas Nereida pareciam nunca acabar e Bahadur envelhecia a cada nascer do Sol. O mundo continuaria um eterno campo de batalha sem ele.

— Basta do sangue que já secou. – Afirmou, recuperado. – Precisamos resolver alguns assuntos mais urgentes... O senhor que lhe acompanhava, Tamir acredito. Não sei dizer se era seu parente, não encaminharam muitas informações anexas aos seus registros. Infelizmente ele veio a óbito muito antes que a equipe das Fronteiras chegasse.

Kadar chacoalharia os ombros se isso não fosse tão rude.

— Era o marido da minha mãe e meu mestre no comércio. – Disse ele, ao invés de simplesmente alegar que não era um parente; se bem que este mero fato pudesse desenrolar a conversa outros tópicos mais desconfortáveis, por exemplo, quem era o seu pai. Era óbvio que Bahadur já sabia que ele não tinha família, mas não havia necessidade de se aprofundar nisso. – Levaram o corpo para casa? Digo, para Corcova Azul?

— O caminho é muito longo para um corpo. – Ele piscou os olhos, sem expressão. – Você é um viajante, sabe o que... Sabe o que acontece com carne no deserto.

— Sim, eu sei. – Kadar lembrou-se de Basim, o camelo assassinado pelo padrasto à beira do Lazúli. Lembrou-se de quando foi obrigado a andar sozinho pela areia ou quando foi surrado pelo bando, junto com Raed. Tamir já era algo podre muito antes de estar morto.

— Ele foi cremado.

A boca dele se abriu de uma só vez, por mais que sua exclamação fosse muda e incapaz. Algo subiu e desceu de sua garganta, e não era a sua refeição. Meneou a cabeça, franziu a testa. Precisou afirmar para si mesmo que odiava Tamir e que aquele final parecia apropriado para uma alma longe do Primordial. Se antes recordava-se com ira, agora necessitava rever as memórias amargas uma após a outra para que não sentisse pena.

—Funerais jamais envolvem fogo. Não... Não são os costumes.

— Eu sei o que está pensando. Respire, tome um pouco mais de chá. Ficou pálido de repente. – Pelos deuses, a almoço não tomava um bom rumo. – É a tradição aqui, pois não temos muito espaço para enterrar os nossos. Se tornaria insustentável, existe um reservatório d’água embaixo. Seria intoxicado.

De fato o garoto precisava de tempo para absorver a situação e Bahadur tentava ser o mais gentil possível, mas essa não era a sua natureza. Talvez se Natea estivesse ali, poderia contornar o constrangimento com graça e solidez, como sempre fazia.

— Diga, Kadar... Sei que não passamos pelos tópicos mais leves para uma conversa no almoço, mas quero que compreenda que isso é muito necessário, embora chocante. – Ele voltou a se sentar suavemente, entrelaçando seus dedos a frente do corpo. Colocara seu prato para o lado, satisfeito. – Nem por um segundo sequer desde que passou por aquela porta, o vi baixar a guarda. Eu vejo nos seus olhos, rapaz. Há mais do que ansiedade ou medo. Eu vejo fúria. O que eu poderia fazer para que se abrisse comigo?

— Fale a verdade.

Uma curta gargalhada ressoou pelo salão, tão alegre que quem estivesse fora e a escutasse, pensaria que ele e Kadar trocavam piadas.

— Igual a senhorita Yazid teve o prazer de fazer? – Meneou a cabeça da direita para a esquerda repetidamente. – Ela ocupa uma excelente posição em seu cargo, mas não tem o poder sobre casos da Tríade e apenas é uma convidada. Foi vergonhosamente deixada sem a supervisão por seu tutor, Karim, e o sujeitou a um estresse violento e inútil.

“Engraçado,” Kadar inclinou o rosto. “São quase as mesmas palavras que ela me disse, antes de também explicar o quanto mais eu seria tratado como um camelo velho na feira.”

— Mas ela foi a única a contar o que fariam comigo e o que está acontecendo.

— Quando alguém aqui lhe disse mentiras? – O comandante não esqueceu o decoro, por mais que sua paciência tivesse se esgotado só de pensar na doutora. Ela teria que escrever um relatório e tanto para a sanassem de medidas disciplinares por sua insubordinação. – Conte agora e está imediatamente liberado para ir, se quiser. Aplico a lei nos responsáveis um por um.

Não havia ninguém. Não existia um nome sequer na ponta de sua língua ou uma ocasião exata em que lhe afirmasse o contrário do que aconteceu depois. Na Ala Oeste, somente lhe diziam termos técnicos e porcentagens sobre seu estado físico, no máximo lhe lançavam olhares nervosos ou lhe garantiam que tudo seria explicado aos poucos, no futuro. Tudo ficaria bem, tome mais esta pílula. Relaxe, dê-me seu braço para tirar mais um pouco de sangue. Fale, vamos consertar esse sotaque corcovano.

— Vê? Não houve desonestidade de nossa parte; apenas um tremendo despreparo profissional. Como esclareci, não costumamos lidar com coisas vivas vindas de Lazúli.

— Desculpe.

Não existia sobremesa mais doce do que ver alguém ceder um argumento e Bahadur deleitou-se com cada segundo deste raro sabor. Satisfeito com o sopro que apagara a ira do paciente, ele teve mais espaço para soltar um sorriso tranquilo e desta forma também acalmá-lo. Não iria conversar tudo o que desejava ainda hoje, mas possuiria mais oportunidades. 

— Você viu a estátua lá fora. – Indicou o livro com uma rápida inclinada de sua cabeça. – E você conhece a história: “Munira fez do seu próprio corpo um escudo, e de seus olhos tochas flamejantes para afastar os inimigos...”

— “A Estrela nunca havia visto tanta bravura e honra.”

O homem apontou seu dedo indicador para Kadar.

— Exato. O escudo está erguido, não a lança. Proteger, Kadar, é o que fazemos. – Abriu as palmas das mãos, franco. – Ferir não é o nosso propósito, por quê abriríamos exceção para você?

— Que... Que tipo de testes farão em mim?

— Hum. Nada que não concorde, talvez algo mais físico aqui na Alvorada e exames cognitivos na Ascensão. Temos termos e condições para assinar. Tem assinatura, não tem? Se não, a carimbada de seu polegar serve. Quem sabe seja somente uma condição de sua linhagem, de seu sangue, ou puro condicionamento físico. Sorte? Não há certeza ainda. Entenda que estará contribuindo para com seu povo, Kadar. O que nós não faríamos com pesquisas de resistência, de regeneração?

Os mesmos serviçais que puseram a mesa agora batiam à porta para retirar os pratos usados. Um rapaz pouco mais velho que rapaz segurava uma pesada bandeja com apenas um braço e mirava seu trabalho com sossegada indiferença, desinteressado pelo o que quer que seu superior e o estranho conversassem; outro os serviu de xícaras brancas de café e tâmaras.

 Kadar ficou aliviado pela pergunta ser retórica, embora com ecos assustadores.

O que eles não fariam?

— Enquanto estiver aqui, será um cidadão comum, um alfaiate como diz seu R.A. Você disse que tinha familiaridade com o ofício, correto?

Confirmou, mas desejando ter prestado mais atenção ao que a mãe fazia, pois não existia no que mais se focar senão as lendas contadas por Neriah, quando à noite debruçava-se para trabalhar nos tecidos e bordados. Poucas vezes sentara ele próprio no tear antes que ela ficasse doente, depois começou também a cortar os moldes das roupas e alinhavar as peças. Os desenhos ficavam por parte dela, com seus dedos trêmulos e visão desgastada.

— Mandarei o cronograma oficial de suas visitas à Alvorada e à Ascensão, que deverão ser cumpridas na escala exata. Suas despesas serão todas pagas e você terá acesso a qualquer área de Nirav.

Kadar abriu um riso tímido.

— Inclusive à Nobreza?

— Você é uma criança ousada.

— Isso é um sim? – O comandante sorriu e Kadar imaginou o que ele pensaria de Raed aos nove anos de idade. Ou melhor, o que ele pensaria de Kadar e Raed juntos aos nove anos de idade.

— Sua casa não perderá em nada para o Palácio.

“Não foi um não.”

Ambos bebericaram o café quente bem devagar e as tâmaras estavam suculentas e doces.

— Espere, casa?

— Sim. Acredito que não queira permanecer no 214, garoto. E confie na minha assistente direta, ela tem um excelente gosto por arquitetura. Tenho certeza de que terá ao menos um bom apartamento próximo à Biblioteca Real.

— Isso é... É muita gentileza. – Os cenhos continuavam franzidos e meio desconfiados, como um gato acuado. Sendo enteado de quem era, enxergava toda essa benevolência com um preço e Kadar não sabia se estava disposto a pagar, tamanha a suposta generosidade. – E se não conseguirem nada no meu sangue? – Ou no que quer que seja?— Eu fico?

Bahadur deu uma leve tossida.

— É o pó do café, perdão. – Pôs a mão na garganta e pigarreou um pouco. – Não sei a certo. Caso obtenha meio de sustento e se apoie na história que inventamos no seu R.A., não vejo problema. Será niravo. Agora se quiser partir, também não cabe a mim impedir. Só terá que assinar mais alguns documentos de sigilo. Mas se quer uma opinião sincera, eu ficaria aqui até o festival de Veraneios!

As pupilas curiosas de Kadar encontraram o fundo de seu copo, observando as borras do café:

Era certo de este não era o método adequado para a leitura do destino na xícara, pois havia uma mulher corcovana em sua vila que sempre girava a porcelana em sentido horário e a virava de cabeça para baixo, deixando-a esfriar. As previsões eram sempre as mesmas:

“Muito trabalho nos próximos dias, fantasmas e uma garota que o despedaçará. Água antes do verão.”

Os finais das tarde de domingo se resumiam a um tormento de profecias infundadas enquanto cuidava da velha, obrigação que sua mãe insistia não importando quais outras pragas mais ela havia lançado ao vento. De qualquer forma, Kadar se acostumou até que ela morresse no fim de dois anos, quando jamais choveu antes do verão e nem depois.

Hoje na xícara ainda quente e sem escorrer, linhas sinuosas balançavam com o resto do café à direita, já no fundo um triângulo se acumulava feito a ponta de uma montanha. Desinteressado, largou a asa de porcelana o mais depressa que pôde.

— Bom, devo admitir que odeio encerrar um diálogo tão importante e agradável, meu caro, mas não posso interromper mais minhas obrigações. – O homem levantou-se mais uma vez, convidando com seus gestos Kadar fazer o mesmo. Caminharam pelo tapete macio no salão. – Aposto um rim que já soube da minha fama com horários.

— Aposto também que é um preço razoável para se manter tudo funcionando.

— Gostei de você. – O rapaz teve seu ombro apertado carinhosamente de novo, dessa vez com mais confiança e força. – Não é que tem ombros largos? A Alvorada bem que poderia aproveitar algo dessa sua boa forma! – Ambos riram, Kadar com nervosismo evidente. – Entrarei em contato em breve, mas não hesite em chamar caso necessário. Agora tenho meu cavalo de volta.

Bahadur deu uma piscadela bem-humorada enquanto lançava sua mão sobre a maçaneta, abrindo-a.

— Até... Até a próxima, então.

— Até.

O rapaz se foi com um sorriso e a alma recomposta no lugar, uma vez que seus medos haviam sossegados por ora. O comandante segurou sua testa, aliviado por novamente ter sido capaz de domar os instintos mais primitivos de sobrevivência de um terceiro, quando ele próprio mal continha as suas sequelas da guerra. Sua mandíbula bem desenhada pela barba apertou-se, dentes cerrados.

Completara uma de suas tarefas. Uma. Mil mais lhe aguardavam sem paciência, sussurrando como um ninho de najas inquietas aos seus ouvidos.

Ele recompôs-se no trajeto de volta ao salão, desviou da larga mesa de jantar e subiu as escadas que levavam ao seu escritório, escuro por não ter sido aberto completamente ainda. Com a luz que vinha de baixo e Sol que tentava atravessar as treliças das janelas, Bahadur conseguiu distinguir os contornos das prateleiras e poltronas, de duas figuras de igual estatura aguardando por ele.

— Agradeço a paciência de ambos. – Sua mesura foi correspondida prontamente pelos dois, que curvaram seu tronco para frente num movimento breve e respeitoso. E por mais que a boa educação os impedissem, foram direto ao assunto. Existia urgência. – Os arquivos foram entregues ao raiar do Sol. Já está decidido onde ele ficará e a grade de suas obrigações oficiais. Preparados?

 


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Notas finais do capítulo

~~~ A cada vez que você comenta, uma fada nasce.~~ ahaiehaieh



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