Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 21
Pesadelo


Notas iniciais do capítulo

Um pouco irônico o título deste capítulo remeter quase ao antônimo do título do capítulo anterior... Enfim, vocês descobrirão o que aconteceu - com o tempo.
Feliz Ano Novo, galera.
Tudo novo, de novo ~~ como eu sempre ouvi e gosto de repetir. Desejo um ano de conquistas à todos, meus queridos. Já lutamos bastante. Lutaremos mais, pois é necessário, mas quero que 2016 seja aquele episódio filler que dura 366 dias e que só coisa legal, engraçada e fofa acontece.
Eu amo fillers.
Boa leitura!



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O Sol já despontara no Além, com seus raios mornos e gentis.

Embora a manhã fosse um tanto quanto etérea devido ao fulgor diferente da luz e o chilrear longe de desconhecidas aves, o rapaz caminhava a passos duros na Catedral. Com o maxilar contraído, somente vez ou outra a visão do mundo clareando fora do templo roubava-lhe o ar dos pulmões, para então ele novamente soltar um longo suspiro.
Seus olhos percorriam inquietos pelas decorações fantasmagóricas das cúspides, o que o fez tropeçar nas escadarias e soltar um grave xingamento.

Depois que entregara as roupas à sua gênio, Raed foi até o quarto de Auri com seu lampião e por lá ficou. Devido à chuva e seus raios azuis e púrpuras, ele mal precisou de luz para se guiar no cômodo, e então deitou-se na cama, que era grande e macia. Seus olhos permaneceram abertos por horas, ainda enxergando a silhueta esfumaçada de Alethia no espelho.

“Isso é só um corpo. Um corpo como todos os demais.”

De quando em quando ela falava com seu tom espectral, seu tom sábio de uma existência de mais de centenas de anos. Usava locuções antigas, também destilava amargor. Raed acostumara-se com tudo isso, e frequentemente fazia graça dos trejeitos da gênio.

Mas a noite anterior repetia-se em sua cabeça contra a sua vontade, e a cada vez que via a imagem nebulosa dela, tentava encontrar o ponto exato em que a conversa dera errado. Tateava essa recente lembrança, procurando a ferida que deixou escapar. Ao acordar, viu algo encolhido em mantos sujos e os lençóis empoeirados, logo no sofá no meio do quarto. Era ela abraçando seu próprio corpo, mais parecendo um pequeno pássaro que não aprendera a voar.

Raed deu-se a desculpa que buscaria mais ferramentas ou suprimentos dentro da Catedral, de modo que a deixou dormindo e saiu o mais rápido que pôde.

Em nenhum dos os outros quartos havia tantas coisas quanto no de Auri, talvez porque ela recolhera tudo para que seus pertences ficassem à mão. Talvez porque tivesse medo de andar pelos corredores cheios de gravuras e santos, quando o Sol se punha. No andar de baixo, ao menos no altar e nos bancos, nada se aproveitaria também, pois já recolhera um cálice, castiçais e velas meio gastas.

Suor desceu pelo seu rosto, a camisa colou-se ao corpo. Era a febre voltando.

Com outro bafejo e mais uma extensa fila de injúrias, seus passos firmes amoleceram-se. Ele encarou o corte em seu braço, com o coração aos pulos. Uma infecção era impensável agora. A despeito da adrenalina súbita no corpo, sua pele já cicatrizava muito bem. Só estava pálido. Foi até a pia batismal e, ignorando os deuses maculados atrás de si, jogou água fria em seu rosto.

“Ora, essa.” Ele já se arrastava para outro lugar, despertando aos poucos a energia emprestada da água. Lembrou-se que não exploraram muito fundos quando chegaram à sala das romãs, e que lá planejava ir para ver o outro espaço do lado oposto, à esquerda. “Era só o que me faltava. Sobrevivo a mais de mil e uma provações, e agora fico doente. Que desperdício de tempo.”

Atrás dos três deuses, ainda havia algum espaço, isso era certo. Do trajeto que fizeram desde as Novas Ruínas até a Catedral, por aqueles odiosos degraus de pedras, vira que a última construção era grande, mais funda do que os painéis do retábulo aparentavam na parte de dentro. Ele deu mais alguns passos circundando seu alvo, enquanto o vento da alvorada uivava pelas paredes entalhadas e flores de pedra, a refrescar o corpo febril do rapaz. Existiam muitos vãos, fragmentos que permitiam o ar passar e as plantas entrarem, além de janelas quebradas no segundo andar. Era a terra clamando o templo para si.

Os vitrais das distantes janelas coloriam cada mínima gravura nas paredes e Raed as encarava fixamente em busca de algo assimétrico, algum friso que não deveria estar ali na lateral. Ramos verdes e vivos misturavam-se com os cinzentos e mortos, folhas longas e pequenas desabrochavam elegantes. Ele aproximou-se mais, tocando de leve as pontas dos dedos nos ornamentos. Fechou os olhos.

A visão que tinha agora da natureza esculpida remexia-se viva por detrás de suas pálpebras fechadas. Um sopro de flores abriu uma a uma, completando oito em seu total. Pareciam ter um tamanho padrão, apenas uma era maior do que as outras e suas pétalas longas e delicadas seduziam suas pupilas. Óbvio demais. Desviou seus olhos daquele ponto e continuou a algo mais que fosse incomum, porém mais sutil, então o encontrou: um broto pequeno foi deixado, a nona flor, logo acima de seu ombro esquerdo. Assim que a girou feito uma maçaneta, veio um estalo do mecanismo da porta e o ardor em sua mão. Quem sabe fosse mera impressão sua palma doer em brasas, quem sabe fosse a febre ou sua mente lhe pregando peças. Quem sabe houvesse explicações racionais para aquelas sensações, mas Raed optou por não buscá-las. Não por enquanto.

A porta, larga e grossa, deslizou rangendo para a direita. Parecia não ser utilizada há muito tempo, por mais que o templo tivesse abrigado muitos viajantes ao longo dos anos, mais recentemente Auri. Ele deu um passo para trás, pois não enxergava nada devido escuridão e também tinha receio da porta fechar atrás de si, depois que entrasse.

“Nem brincando que eu morro por causa de um alçapão.”

O corpo de Raed esqueceu-se do torpor e de sua irritação, tanto que ele se foi e voltou em pouco tempo, mas já preparado. Trazia facas, tocos de velas, uma tábua arrancada de um dos bancos, seu lampião, e cordas, as quais graças aos céus Auri tinha. A necessidade de cordas vinha nos momentos mais improváveis. Colocou a tábua atravessada na entrada, para que ao menos ganhasse alguns segundos a mais caso esta passagem fosse apenas uma emboscada; e com a corda atravessada a seu tronco, pegou a lamparina e entrou no caminho reto.

Tudo era silêncio, impregnado no ar assim como a poeira e tenso como os fios esticados de teia. Um único passo poderia destruir aquela quietude sóbria; um único passo poderia acionar alguma armadilha engenhosa, que atravessaria uma flecha na garganta do ladrão. Lentamente ele agachou-se no chão, ficando de joelhos, e por fim jogou meia dúzia de velas pequenas para frente.

Nada. Nem o mínimo destrave de um mecanismo qualquer no piso ou nas paredes, o que em si era bem estranho. Tinha que haver algo.

Por segurança, ele permaneceu por mais cinco minutos esperando agachado e depois retornou à entrada para amarrar uma corda em um apoio, no caso a estatueta destroçada de uma santa. Assim que deu nós na base de pedra e na envolta da própria cintura e coxas, orou para que aquela divindade estranha lhe garantisse alguma sorte e mais uma vez entrou na passagem secreta.

Não precisava que o chão se abrisse, fazendo com que caísse numa vala, talvez esta com espetos. Duas vezes em uma vida já lhe parecia mais do que o suficiente, ainda mais que Alethia não poderia lhe oferecer grande ajuda no momento presente. Com a corda seria possível subir de volta, mesmo que dolorosamente.

Caminhou com cautela pelas laterais do cômodo, com a lamparina erguida diante de si. Sem inscrições, sem desenhos, sem o menor dos traços nas pedras, e para um povo que colocava mil símbolos com infinitos significados em um templo, tal fato era curioso. Também sem sinais de aberturas de flechas nas paredes, para seu alívio.

Aquela era uma saleta de sacerdotes afinal, de pessoas que se vestiam com roupas engraçadas e brancas como no retrato que vira no escritório. Se a Catedral era um santuário comum, para a o público e para orações, para elevação espiritual, não faria sentido armá-la. Não se não existisse algo valioso demais para ser escondido. Para quê mais os devotos dos três deuses instalariam uma abertura secreta e armadilhas?

Os ombros de Raed relaxaram, entretanto seu coração parecia querer rasgar a carne do tórax. O que era mais valioso do que o próprio tempo?

As pernas dele se moveram para frente, para o meio do recinto. E então veio mais um passo, depois outro. Sua respiração era acelerada, seus ouvidos sentiam o fluxo de sangue correr desenfreado pelas veias. Suas mãos tremeram ao chegar perto do centro e quando chegou, uma das pedras do piso afundou-se sob seu peso.

Armadilha.

Engoliu seco; as pupilas dilatadas preparando-se para enxergar o vulto de algo lhe atingindo.

Em vez da dor veio a luz. Do alto, onde antes o ladrão não era capaz de ver, surgiram flores e ramos banhando-se num fulgor cálido como se a própria Lua tivesse derramado lágrimas. A claridade não era muita, mas servia para que visse o começo de uma escadaria profunda, a qual abocanhava violenta o chão. O cheiro de mofo e umidade lhe atingiu, de musgo crescendo e crescendo ao longo dos anos.

Raed direcionou a luz de seu lampião para os primeiros degraus, mas a luminosidade deste era insuficiente para lhe dar a pista do que encontraria. Para descobrir, bastava erguer a sola de sua bota e dar mais um passo adiante para o submundo; uma ação tão simples e corriqueira de descer escadarias. O ladrão virou seu rosto para a saída, vendo que a corda era curta para a descida. Seria necessário abandoná-la, bem como sua gênio.
O gotejar distante lá embaixo contava os segundos sem parar.

Vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três... Estava com fome, Alethia também. O corpo dela enfraquecera. Sua carne era muito nova, as sensações deveriam ser confusas, tanto que talvez nem se desse conta do vazio no estômago.

Quarenta e sete, quarenta e oito, quarenta e nove, cinquenta... A febre não o deixara por completo e caso tivesse que se defender, apenas por contato próximo conseguiria ferir seu oponente com as facas.

Oitenta, oitenta e cinco, noventa... Auri mencionara demônios de pedra e ele não estava no clima de desvendar aquela metáfora.

Ao fim de duzentas e quarenta gotas, no total de quatro minutos, seu curioso relógio sustara o ritmo. Não se ouvia mais nada da escuridão densa, nenhum som da água, apenas vento e o cheiro de umidade. Apenas o bafejo sombrio do imenso e carcomido buraco no chão. Sem querer saber o que aquilo significava, o ladrão seguiu o mesmo caminho que fizera, tirou a tábua da entrada e fechou o mais rápido que pôde a porta.

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Os dentes do rapaz batiam-se incessantemente, num ato involuntário e humilhante. Grunhindo, ele apertava seus lábios agora pálidos e continuava a esfregar seu próprio corpo na água fria, pois além de não se limpar há tempos, também acreditava que a temperatura do rio poderia aplacar o torpor da febre.
No entanto, sentia arrepios por toda a extensão de sua pele. A água em si, quando pôs a mão nela antes de entrar por inteiro, não parecia gélida como estava, o que o fez imaginar que justamente sua febre aumentara a sensibilidade ao frio, à troca súbita de temperatura.

Talvez ele não fosse tão inteligente quanto a cuidar de si próprio.

“Chega.” O ladrão abraçou seus ombros, tentando recolher sua dignidade ao andar calmamente até um lençol dobrado, que mesmo fino, era comprido o suficiente para servir de toalha. Passou alguns minutos enrolado no tecido branco, sentado numa pedra à beira d’água e com os pés apoiados no tapete de musgo.

Depois do palácio e exceto nas estalagens e oásis à noite, tomara banhos frios diversas vezes em sua vida. Houve uma caverna nos Alpes ao norte de Sundara, onde tivera que nadar por debaixo de pedras para atravessar até o outro lado e quase morrera de hipotermia, e ainda assim não chegara tremer desta forma vergonhosa.
Ele suspirou de olhos fechados. Se controlasse a respiração direito, seu coração também cessaria com suas palpitações nervosas.

Em seguida levantou-se, tirando de cima de sua bolsa algumas roupas que encontrara no baú na saleta do segundo andar da Catedral. Vestiu uma calça cor da areia, de um tecido mais grosso e um pouco mais justa do que gostaria nos tornozelos. Os botões o incomodaram um pouco, mas não existia muito do quê reclamar, pois era o tinha. Também pegara uma camisa cor de oliva maior que seu tamanho, de corte simples e fios meio gastos. Amarrou um cinto de textura firme com bainha para até três facas na cintura, e também havia uma tira do mesmo material para colocar-se na batata da perna, abrigando um diminuto punhal.

Quando encontrou estes itens no quarto, desejou ter conhecido Auri. Deveria ser alguém e tanto para ter em sua posse objetos tão úteis. Então trechos do diário flutuaram por cima de sua cabeça, sussurrando. Raed fazia o mesmo itinerário do que a viajante, será que também ficaria insano pouco a pouco?

“Talvez não afete quem já não é muito certo.” Ele riu para si, mais relaxado pela camada de roupas e com certa satisfação infantil ao vestir o casaco de couro castanho e todo forrado por dentro por um tecido deveras macio. Tinha botões de bronze polidos; punhos e gola de pelo de algo que Raed achava que ser carneiro, tudo numa forma diferente do que ele já havia visto.

Enxugou um pouco mais os cabelos e o rosto, ajeitou suas botas antigas nos pés e pôs-se a andar novamente, com a bolsa transpassada ao tórax e a balestra em suas mãos enluvadas. Deixou o lençol úmido pendurado num galho qualquer.

Não se afastara tanto da Catedral, e descobrir o caminho de volta não era problema: havia uma estreita trilha entre os arbustos e troncos. Nas margens do rio deparara-se com imensos salgueiros debruçados, lacrimejando o restante do orvalho matinal na leve correnteza das águas. A manhã geralmente era movimentada, com aves tagarelas e alguns animais acordando, outros indo dormir. Algum de grande porte poderia sentir sede e ir até onde Raed estava, cujas mãos preparam-se no gatilho de sua arma. Ninguém veio e ele decidiu ir embora.

Andando na terra fofa e pequeninas folhagens, o ladrão encarava a copa colorida das árvores de espécies desconhecidas. O verde da clorofila desbotava-se gradualmente, dando seu lugar à tons alaranjados, amarelos e até mesmo pontos rubros, e a cada vez que o farfalhar do vento vinha, folhas caíam feito plumas. Lá no alto e atravessadas pelos raios dourados do Sol, eram o oposto dos jardins de Sundara, pois ao invés da luz das lamparinas lançarem as cores de seus mosaicos sobre as plantas, a luz atravessava as folhas e aí coloria o ambiente de maneira orgânica. As mãos do rapaz afrouxaram-se em torno da balestra.

Silêncio.

E... Vozes, vozes baixas. Um coro; uma estranha língua.

A música.

“Eu me pareço com um falcão doente
Preso a terra por causa de sua doença.
Não pertenço mais às pessoas da terra
Nem sou capaz de voar para o céu.

Oh, pobre falcão
Como você pode viver com estes corvos?”

Os ouvidos de Raed não escutaram o que aproximava-se até que estivesse perto de mais. Quando abaixou seu queixo erguido aos céus e abriu as pálpebras, seu coração gelou como se imerso no rio.

– Minha nossa. – Seus xingamentos ecoaram na floresta. – Eu poderia ter atirado em você!

O capuz inclinou-se para o lado.

– Isso me pareceu improvável, amo. Você estava tão distraído que eu é que poderia tê-lo atacado.

Constrangido por ter sido pego em seu momento de contemplação, o rapaz optou por lhe oferecer um sorriso zombeteiro.

– Proposta interessante, Alethia.

– Sério? – As mais distantes árvores puderam ouvir o suspiro cético da gênio e ele riu em resposta. – Gracejar é a única coisa que faz em conversas? Que ser humano lamentável tu és.

– Basta, basta. – Ergueu as mãos em rendição, abaixando o rosto para a mortalha viva diante de si. O tom dela estava mais afiado do que de costume, e apesar de ser capaz de manter a tola discussão por mais tempo inflando-a de troças, aquela não era a decisão mais sábia a se tomar. Não era conhecido por ser ajuizado, mas tampouco era estúpido. Se as suspeitas fossem corretas, de fato algo dera errado na noite de ontem, embora não soubesse exatamente o quê. – Perdoe o mortal vil que sou. Espero que tenha gostado do chá e das romãs que deixei à mesa hoje cedo.

Alguns segundos embaraçosos correram até que a gênio murmurasse “obrigada”. Ele ergueu mais um sorriso satisfeito.

O ladrão e sua sombra atravessaram arbustos e pedras, contornaram galhos caídos cobertos por liquens. Ele mais uma vez lembrava-se dela na saleta observando sua nova forma, então compreendeu em parte a razão de sua ira, afinal, quase acontecera o mesmo consigo há poucos minutos. Ela contemplava seu exterior, ele o interior; ambas visões demasiado delicadas para serem vistas por mais de um par de olhos. A gênio andava ao seu lado, ás vezes atrás, e felizmente seus pés não estavam nus. Pegara um par de botas, números maiores que o seu e de cano mais baixo do que o recomendado para se andar entre ervas com sabe-se lá qual efeito. Ao menos estava mais protegida.

Conforme prosseguiam, os nomes das árvores formavam-se na língua do rapaz como se ele tivesse esquecido e recordando-se aos poucos.

– Bétulas. – Ele disse de repente, fascinado com o jeito que a palavra vibrou suas cordas vocais ao sair da garganta. Apontou um punhado de troncos brancos, com fendas cor de café e folhagem dourada. – A maioria delas são bétulas. Aquela, vê? – Apontou para outra. - Aquela ali, bem grande. É uma faia.

A gênio repetiu, acariciando o tronco alvo da qual ele nomeou “bétula”. A textura agradou a palma lilás de sua palma e feito uma criança Alethia passou a pôr a mão em cada tronco e galho por qual se deparavam. O trajeto era inexplorado e solitário, mas ela sentia o cheiro de animais e ouvia alguns gorjeios distantes, o rio também. Era um lugar a se jazer depois que toda esta aventura terminasse.

Os dedos de Raed apertaram-se sobre o gatilho por pura tensão. O tempo escorria, suas botas e as de Alethia faziam barulho contra as folhas caídas. Talvez não fossem silenciosos o suficiente para andar ali. Talvez estivessem afastando suas presas e atraindo predadores.

– Você está bem? – De costas para ela, o ladrão agachara-se sobre aquilo que parecia um galho quebrado recentemente, um rastro de algum animal a ser seguido. Mais trilhas? Por parte dela, aguardava uma resposta que o destruiria.

Acompanhava-o há anos, mas quanto da gênio Raed realmente conhecia?

– Sim. – Ela acariciou um minúsculo ramo de flores silvestres, encorajando-as a crescerem bem. Uma pena que o sorrir de sua face, de seus músculos, lhe provocasse certa aflição ao sentir. – Estou sim, por quê perguntas?

– Bem, porque... Porque está se apoiando em todas ás árvores. Está fraca, zonza? – Deu de ombros. – Tive febre pela manhã, não sei se tem a mesma coisa. Podemos parar, se quiser.

Os lábios dela mal domaram o riso.

– Não. – Suspirou, chacoalhando a cabeça. Entendera tudo errado. – Não é preciso. Só... Estou me familiarizando com a flora. – É claro que não diria que estava apenas brincando com as plantas, mas não pretendia mentir. - Existem lugares em nosso mundo que abrigam vegetações semelhantes, mas ainda assim diferentes. Existe algo distinto aqui.

A aura do terreno pulsava num ritmo desconhecido, a floresta interrogava que criatura Alethia era. De fato, existia uma energia diferente ali, algo que ela não conseguia captar por inteiro.

– Sim. Pensei que seria igual à Marinto, dois anos atrás. – Os dois afinal perceberam o infinito mar de árvores e quietude em qual se encontravam. – Não é.

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Metros e metros a leste abriram alas às margens do rio mais uma vez. O som da água corrente era suave, as pedras próximas faziam os pés de Alethia escorregarem incertos. Ela gostou dos salgueiros, e felizmente havia vários deles. Sentou-se perto de um, passando seus dedos pela folhagem como se fosse uma cortina e abraçou os próprios joelhos, vendo seu amo com as barras da calça dobradas para cima. Ele havia xingado o costureiro e o dono da roupa, pois o tecido era grosso e justo bem nos tornozelos, o que dificultava arregaçá-la para entrar na água. Provavelmente teria trocar as vestes de novo quando chegassem à Catedral. Nem ousou ficar com o casaco novo, tendo o entregado então a sua gênio, que o pendurou em outra árvore ao lado do salgueiro, virada para a terra e não para a água. O lençol que o ladrão usara como toalha tremulava ali também.

– Você parece um animalzinho grunhindo desse jeito. – Alethia murmurou de maneira agradável ao escutá-lo rosnar para a água. Agora o fato de não ter conseguido caçar algum animal à beira do rio não a surpreendia mais, uma vez que fazia tanto barulho. Até mesmo a gênio se afastaria, caso não achasse tão engraçado o modo que seu amo andava na parte rasa.

Raed a encarou com os olhos afiados e lábios comprimidos, de modo que ela sorriu mesmo que o outro não pudesse ver. Parecia realmente ter voltado no tempo, para o corpo do adolescente magro, mal humorado e desajeitado que era. Aliás, ás vezes parecia que pouco havia mudado.

Com a arma em mãos, as pupilas negras do ladrão moviam-se fugidias pelas dobras de água e padrões da correnteza, diferenciando o cascalho ao fundo e o que se passava pelo meio. A temperatura ainda arqueava suas pernas e o forçava caminhar lentamente, mas não igual antes. Quem sabe teria sido a febre? Assim que se assegurasse que o local era seguro, viria banhar-se à noite, quando a água afinal se aquece um pouco. Caules longos e folhas flutuavam, algumas já ensopadas e densas não vinham pela superfície e sim roçavam suas pernas.

Porcaria! Quase atirara em seus dedos do pé por pensar ter visto um peixe, o qual na verdade era a sombra de um casco de árvore boiando. Nisso perdera uma presa que nadava a menos de um metro à frente. – Mas que desgraça!

– Raed... – Esticou as pernas, apreciando a luz amena beijar sua pele. Depois aproximou-se mais da água, falando baixinho. – Quieto. Só porque peixes não têm ouvidos não quer dizer que não podem escutá-lo. Tenha paciência. Tens que se misturar a água, ser transparente e fluido igual a ela. Então ataque e pegue o que quer.

– Quer saber? Venha aqui. – Gesticulou com uma das mãos, chamando-a. – Só sei pescar com uma vara e iscas, onde posso ficar seco e sem frio. Até mesmo com uma lança consigo, embora seja sofrível. Pelos deuses, Alethia! Venha, venha logo aqui.

Por longos minutos, a gênio apenas o analisou de longe, retesada na mesma posição. Mal parecia ter compreendido o que seu amo dissera, ou pior, parecia encarar algo além dele, algo grande e com garras. Não era nada que Raed pudesse ver, pois tratava-se apenas uma sombra do passado dela cuja memória afogara fundo. Levantou-se vagarosa, por entre pedras e plantas caminhou com cautela e equilíbrio até chegar ao limiar entre terra e água.

O ladrão podia ouvir a respiração de sua serva num ritmo controlado e pesado, e no momento que suas íris cinzentas depararam-se com o tremor dos joelhos púrpuros, a tensão de seus ombros se desfez. Ela agachou-se e pôs seus dedos na água, chacoalhando-os brevemente como se brincasse.

– Está fria, mas pensei que estaria quase congelando pelo jeito que falou.

A figura maltrapilha engoliu seco e tirou as botas, pondo perna por perna no rio. Andou mais, até quase o meio, ignorando os avisos de seu corpo e a eletricidade percorrendo sua pele.

– Aqui. – Virou-se, a escuridão do capuz com dois olhos turquesas brilhando fracamente à distância. – Caminhe mais até o meio, depois pare. Devemos permanecer calados.

Ele obedeceu. Por mais de vinte minutos continuaram parados e em silêncio, aguardando. Folhas e mais matéria orgânica desceram com a água, mas peixes também vieram. Alguns eram quase da cor do fundo, escuros, outros prateados. As pernas de ambos estavam gélidas, querendo ter cãibra. Alethia esticava seus braços para fora do manto sujo, seu indicador alongado em sólida pedra roxa. Dali, uma fraca e lilás fumaça ondulava, circulando os alvos. O rapaz ziguezagueou seus olhos conforme o nado do animal, até que seus dedos puxaram o gatilho.

Sentiu o recuo da arma em seus braços, mal teve tempo de piscar para ver a flecha sair da balestra e acertar o peixe. Quase sem barulho. Então a gênio indicou outro enquanto movia-se devagar até o primeiro.

Mais dois tiros.

Ela já marcava o quarto, quando seu mestre ergueu sua palma em sinal negativo.

– Está bom, Alethia. – Ela aquiesceu, aproximando-se. Não havia o humor da manhã em seus gestos, talvez porquê estivesse ensopada até os ombros. Agachara-se para pegar os peixes fincados no substrato. – Está ótimo. De fome nós não morremos agora.

– Não. De fome, não.

O vento soprou sua canção lupina e fez com que estremecessem de frio. Sim, o Sol brilhava, mas não estavam acostumados com uma luz tão branda, o ar e água frios em pleno meio dia. Raed pousou seus olhos sobre Alethia.

– Bem, - Abaixou sua arma com o braço direito e ergueu o esquerdo. – Me entregue os peixes, os ponho ali na margem. Depois vou e volto da Catedral. Pegarei algumas roupas secas para você.

– O quê?

Raed avançou e tomou os peixes da mão dela, num gesto firme.

– Tem medo que eu faça uma combinação deselegante? Não é desafio algum lhe trazer algo melhor do que esses meus farrapos emprestados. – Ele riu, afastando-se do rio e dela antes que sequer tivesse tempo de protestar. Pôs os peixes dentro da bolsa, secou os pés e calçou suas botas. Tirando o casaco do galho, virou o rosto por detrás dos ombros. – Saiba que tenho muito bom gosto, obrigado. Volto já.

– Não é isso...

Raed saiu apressado, virando apenas um vulto indistinto a correr entre as bétulas e faias, atravessando os poucos salgueiros que rareavam conforme afastava-se das margens. Não deu tempo à gênio e aos seus olhos arregalados, o ritmo volátil dele mais o assemelhava à um estranho espírito da floresta, infantil e capaz das mais curiosas trapaças e pequenas bondades. Parada, com águas até as coxas e o tecido sujo embalando seu corpo, ela sentiu mais arrepio percorrer sua pele.

O silêncio desabou sobre o ambiente, estrangulando o mínimo rastro da vivacidade anterior. O rio carregava o tempo.

Seu reflexo sombrio a encarava de volta. Tocou a mão de sua gêmea d’água com seus dedos de estalactites, e ela chorou. Tentava tapar o soluço de sair da garganta, mas era impossível devido ao coração, que não permitia. Por mais que jamais se apagasse, há anos aquela dor não ardia tanto. Alethia abriu suas pálpebras para a correnteza. Sua imagem no rio parecia outra pessoa, e o céu acima dela era azul marinho, infestado de estrelas e aceso pela mais alva Lua Cheia. Havia uma alegria cálida em seu rosto, enquanto a brisa balançava seus cabelos, grudando nela o perfume da escuridão. Foi num oásis, de madrugada. Ele também estava ali, seus lábios também foram refletidos encostados em seu pescoço, sorrindo como ela própria; e suas mãos seguravam seu ombro, sua cintura.

As mesmas mãos que atiraram sua garrafa às profundezas do oceano.

Já havia enfrentado a água outras vezes. Tivera ajuda das sereias; anos depois decidiu visitá-las. Velejara com outros amos, frequentara as Ilhas Nereida antes, durante e depois das guerras. Ajudou Raed em uma caverna também. Então... Por quê água também descia de seus olhos? Por quê seu corpo de carne e ossos tremia? Por quê?

“Por quê fez isso comigo?”

Ela enumerava todas as respostas. Aquele peso que lhe assolava não deveria ser sentido; a culpa não deveria rasgá-la por dentro. Ela tinha consciência de tudo isso.

Mas se afogava.

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Raed seguia trilha, lembrando-se de que esquecera a bolsa com os peixes na margem. Tudo bem, voltaria para pegar mais tarde, bem como para entregar trajes decentes a gênio. Alethia merecia depois de enfrentar seu claro pavor de água, além de ter feito um grande esforço com os marcadores de fumaça espessa. Não conseguia bem se desintegrar, dissera no primeiro dia deles no Além, por consequência talvez fosse difícil fazer outros truques feito aquele; quem sabe ela também não soubesse nadar.

De qualquer maneira retribuir era bom, pois mesmo ladrão, Raed odiava dever á outras pessoas. De dívidas bastava uma antiga, de uma promessa besta quebrada à sua mãe.

As árvores tornaram-se mais esparsas, os arbustos também. Era o campo de grama úmida que separava a floresta alaranjada da Catedral. Caso seguisse metros mais abaixo, era ali que encontraria as escadarias de monólitos até o Templo Branco, e adiante as Dunas Brancas. Correu, entrou pelos fundos através da sala das romãs e seguiu o trajeto, subindo as escadas até o escritório. Suor escorreu pela testa, mas ele ignorou. Tinha que ser rápido.

Que tipo de roupa Alethia escolheria? Lilás parecia uma escolha óbvia e mesmo que fosse a alternativa certa, não havia nada roxo no baú onde ela pusera as vestes de Auri. A túnica rosa estava desbotada demais, gasta. Não. Revirou a fundo, achou uma calça escura. Parecia do tamanho certo dos quadris da gênio, a supor pelas suas pernas. Onde estava aquela camisa azul clara e punhos verde menta? Lembrava, bem pouco, a garrafa antiga dela. Já que não poderia dar-lhe uma garrafa igual e nem uma parecida, o tecido daquela cor era a resposta. Encontrou, e depois juntou-a com uma blusa de frio de lã escura também, com pequenos desenhos de triângulos brancos nas pontas, e que cairia bem, embora mais curta do que a camisa por baixo.

Havia bagunçado tudo, mas depois dobrara cada peça e o traje definido.

As escadas encurtaram-se, pois descia de três em três degraus sem distrair-se com o pó pairando no ar, em sua atmosfera singular e onírica. Veria muito mais destes detalhes belos e inúteis mais tarde; ele e Alethia não sairiam tão cedo dali. A busca continuaria como o desejado, mas não hoje, nem amanhã. Podiam respirar mais sossegados antes de partirem para a aventura.

A imagem dos três deuses maculados encarava a figura pequena e profana do ladrão dirigir-se à saída, em sua insignificância mortal. Seus ouvidos treinados ouviram mais uma vez o vento, seu nariz captou o cheiro de musgo. Umidade. Com a calça e as blusas para a gênio dobradas sobre os antebraços. Suor no rosto, mas só um pouco. Deu um passo para fora da Catedral, a visão obscurecendo conforme as pupilas contraíam-se para se acostumar com a intensidade da luz do dia.

E então, nada.

Num piscar de olhos, demorado e doído, ele soltou um suspiro. As costas apoiadas contra a grama latejavam, assim como a nuca e os tornozelos. Estava no chão. Tentou abrir os olhos, querendo enxergar o que de fato ocorria ao seu redor. Não era possível; um arquejo saiu rouco de sua garganta. Espere. Estava no chão? Não sentia seu corpo direito, não da maneira correta. O pescoço não obedeceu a seu impulso de erguer a cabeça, seus ombros estavam presos ao solo pela gravidade, cuja força jamais fora tão implacável. Os sons e cores se misturavam.

Havia o céu azul escurecendo, aquele Sol brando e muito alvo cedendo seu lugar às estrelas. Fiapos de nuvens voando. Gritos abafados, algo mexendo em sua carne. Eram mãos ou garras? Sentiu-se febril e ensopado. Chovera sobre si? Concentrando todo o foco em braço, ergueu seus dedos em sua direção. Fora um gesto débil, só não mais débil do que seu rosto virando-se fraco para vê-los. A pele estava coberta por uma substância quente e escarlate, a pele dos dedos, do braço, do tórax e em mais lugares que sua visão periférica não alcançava.

Sangue. Era o seu sangue?

E os gritos? Chamavam seu nome?

Olhos turquesas tamparam o Sol e a criatura guinchava. Deixou algo também quente gotejar em cima dele, mas desta vez não era sangue. Quem sabe não tivesse visto certo, no entanto era incolor. Lágrimas?

Raed franziu a testa, ou achou que fez. Alethia esperava por ele às margens do rio, ficaria histérica se não voltasse logo. O rapaz odiava se atrasar e também não queria mais repreensões por parte dela. Ela estava com frio. Precisava entregar as roupas logo. O caminho não era tão longo. Por quê então não se levantava?
Tentou balbuciar algo, afastar aquilo com as mãos. Relou em algo, apertou um punho. Era um indivíduo fino demais, humano demais. Não mover o próprio corpo como bem queria o irritava e a irritação contínua consumiu suas energias. As pálpebras tornaram-se prata, ferro, chumbo.

Nem o sangue, nem as lágrimas, nem Alethia o acordaram mais.


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Notas finais do capítulo

Hey, dia 18 de Janeiro comemoramos um ano de ADB!! Esperem que coisas legais vêm por aí...
**Errata: no capítulo anterior, coloquei "Ilhas Marinto", sendo que na verdade o local a qual me referi se chama "Ilhas Nereida". Marinto é outro lugar. ^^' Sorry



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