Cachecol Azul e Cabelo Vermelho escrita por Lirah Avicus


Capítulo 6
Capítulo 6




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—Você tem certeza disso?

—O senhor quer a resposta positiva ou a sincera?

Jabez Wilson sorriu. Não foi um sorriso bom. Parecia mais um sorriso de alguém que teme as próximas horas. Ele levantou-se, seu corpo largo e imenso dificultando-lhe os movimentos, caminhando até Violet. Ele juntou as mãos, pensando cuidadosamente no que diria a seguir.

—Avise-me se tiver algum problema. Não contei aos outros por que acho que contar ou não cabe a você decidir. Hoje não costuma ter muito movimento, então creio que será mais fácil. — ele sorriu novamente. Este sorriso foi melhor. — Boa sorte.

Violet saiu do escritório de seu patrão com um pequeno lampejo de esperança. Talvez não fosse necessário reconhecer as pessoas pelos rostos. Seus colegas usavam crachás. Os clientes sentavam-se em mesas numeradas. E ela conhecia aquele estabelecimento de cor.

—Olá, Violet! — sorriu Jet Williams, detrás do balcão. Ela passou por ele, pegando uma travessa limpa. Seus olhos passaram discretamente pelo crachá.

—Como está, Jet?

—Vou levando.

—E a namorada? — diz Alicia Larrabee, ajeitando o uniforme e o cabelo negro e curto.

—Dei um chute nela.

—Não foi o contrário? — ela ri, e Violet a acompanha, tentando sobrepujar o nervosismo. Jet dá de ombros.

—Depende do ponto de vista.

Violet sorri, daí sai andando, travessa em mãos, observando o café que logo se encheria de pessoas.

—Lá vamos nós...

O dia começou. Pessoas iam e vinham, faziam seus pedidos, comiam e bebiam, conversavam e riam, e então iam embora. Para Violet, estava tudo cada vez melhor. Como a excelente garçonete que era, atendia a todos com seu brilhante sorriso, levava os pedidos à cozinha, trazia-os de volta, e devido à numeração de mesas, não errava. Um pequeno desconforto a acompanhava, pois parecia que nunca eram os mesmos clientes em determinada mesa, assim como nunca pareciam os mesmos cozinheiros, as mesmas garçonetes, o mesmo barman. Mas Violet conseguia esconder bem este desconforto, e se via plenamente capaz de lidar com ele de forma graciosa e leve.

Enquanto pedia um misto quente, panquecas e uma porção de fritas, dois homens entraram no café e se sentaram. Helen Stoner passou por Violet, cutucando-a.

—Idiotas à vista...

Helen tinha razão. Quando se trabalha como garçonete por muito tempo, se passa a reconhecer rapidamente todos os tipos de clientes. Havia os homens de negócio, a donas de casa apressadas, a madames exigentes, os pais lerdos com filhos hiperativos, os jovens da faculdade, as idosas impacientes e, claro, os imbecis. Este grupo era formado normalmente por rapazes que andavam em duplas ou em bando, cujo único objetivo era importunar as garçonetes. Era bem fácil reconhecê-los: roupas de marca, conversa estúpida já antes de serem atendidos, óculos no alto da cabeça, assim como o fato de não trazerem consigo nenhuma namorada. Violet quis se livrar da responsabilidade de atendê-los, mas Helen estava no fundo do café fazendo sabe-se lá o quê e Alicia estava ajudando uma senhora idosa a ler o cardápio. Até mesmo Kellan, o faz-tudo, tinha ido consertar um dos canos na cozinha.

Não tinha jeito.

Violet respirou fundo, pegando os cardápios e indo até a mesa. Os jovens ali sorriram ao vê-la. Mau sinal.

—Bom dia. — ela sorriu, colocando os cardápios sobre a mesa. — Bem vindos ao café Jabez’ s.

—Obrigado, moça. — disse um dos jovens. O outro riu. Violet se esforçou para permanecer simpática.

—Querem alguma recomendação ou preferem ler o cardápio e pedir depois?

—Pode me recomendar todas as lanchonetes com garçonetes tão gatas quanto você?

Violet apertou seu caderninho de pedidos entre as mãos. O sotaque daquele homem a irritou. Provavelmente era americano.

—As panquecas hoje estão deliciosas.

—Se estiverem tão gostosas quanto você eu quero comer todinhas.

O outro jovem, um típico rapaz popular, apenas ria desdenhosamente. O jovem que falava, cujo cabelo negro jazia espetado nas mais variadas direções, sorria de modo sonhador para Violet, cuja vontade de permanecer no emprego a impediu de dar um tapa bem no meio da cara dele.

—Vocês pretendem pedir? Há outros aqui que precisam de mim.

—Tudo bem, eu vou pedir... — o jovem pega o cardápio de forma displicente, abrindo-o e passando os olhos rapidamente pelas letras. — Eu vou querer suas panquecas deliciosas.

—Tudo bem. — ela anota, olhando para o jovem risonho. — E você?

—O mesmo.

—Ótimo. — ela se afasta o mais rápido possível, levando o pedido aos cozinheiros e apoiando o cotovelo no balcão, suspirando de cansaço. Jet Williams, o barman, se aproxima.

—Idiotas?

—Adivinhe...

—Aposto que são americanos... — ele murmurou, franzindo o nariz. — Bem que uma arma de destruição em massa faz falta numa hora dessas.

Violet sorriu, mas estava tão nervosa que não conseguiu dar risada.

—Concordo.

—Olá, moça.

Violet encara o homem que surgira ao seu lado, que exibia um leve sorriso. Olha rapidamente a mesa de onde saíra, e percebe que agora só havia um dos rapazes. Com certeza aquele era um dos jovens idiotas. Soltou um suspiro irritado, assumindo uma postura mais agressiva.

—Senhor, por favor, eu já fiz seu pedido, se puder esperar na sua mesa seria ótimo. Quando o pedido estiver pronto, eu levo!

Jet estava boquiaberto. Alicia, que assistia a cena de longe, também estava em choque.

Violet viu os rostos dos colegas, e não entendeu todo aquele espanto. O rapaz à sua frente cerrou os olhos.

—Violet, calma... — disse o rapaz, sorrindo. Mas então seu sorriso se desfez. — Espera aí... Não sabe quem eu sou?

Violet encarou Jet, que ainda estava espantado.

—Eu...

—Violet, não sabe quem ele é?

Violet sentiu todos os olhos sobre si. Olhou com atenção o rapaz que a olhava de volta, tentando se lembrar. Neste momento, o verdadeiro jovem idiota saiu do banheiro e voltou a sua mesa. Ela sentiu-se suar frio. Seu coração retumbou.

—Eu não...

—Tudo bem. — o rapaz disse. — Já faz muito tempo. — completou com toneladas de sarcasmo, virando as costas e saindo, visivelmente irritado.

Ela permaneceu estática. Não tinha a menor ideia do que fazer naquele momento.

—Violet, — diz Jet. — aquele é seu ex-noivo.

Alicia tapou a boca com as mãos. Com certeza não esperava que, mesmo com o relacionamento terminado, uma mulher fosse tratar o ex de forma tão cruel. Violet encarou Jet, daí olhou ao redor, completamente perdida. Daí saiu correndo atrás do homem que acabará de empurrar com força a porta do café e fora para a calçada.

—Quentin! — ela gritou, já na rua. — Quentin, espere! Por favor! — ela segura-lhe o braço, e ele se esquiva abruptamente.

—Não toque em mim.

—Quentin, me desculpe, eu... Eu não te reconheci!

—Você está brincando, né? — ele disse, colérico. — Eu vim aqui, preocupado com você, decidi esquecer tudo e ver como você está, sem ressentimentos, e o que eu encontro?

—Eu sei, mas tem uma coisa que você não sabe! Eu sofri...

—É, eu soube, passou rapidamente na TV. — ele disse impacientemente, tentando chegar até seu carro.

—Mas lá não disse...

—Não disse que você está tão bem a ponto de maltratar as pessoas ao seu redor!

—Não foi de propósito, eu não reconheci você!

—Claro, isso é lindo!

—Eu estou falando a verdade, eu não reconheço...

—Sabe, Violet, eu não fui um bom namorado, eu reconheço isso, na verdade talvez seja até justo, eu te maltratei e você agora me maltrata...

—Eu não te maltratei, jamais quis isso, eu realmente não sabia quem você era!

Quentin a encarou profundamente, parando de andar. Ele fica assim algum tempo, enquanto Violet esperava ansiosamente pelo que ele diria. Daí ele balança a cabeça negativamente.

—Que piada...

—Quentin, não!

—Não se preocupe, Violet, você nunca mais vai me ver...

—Me desculpe, eu...

—Ei! — uma mulher grita atrás de Violet. — Ei, você!

Ela se vira, vendo uma mulher elegantemente vestida, usando saltos altíssimos, caminhar em sua direção.

—O que foi? — ela disse, ainda nervosa pela situação que enfrentava. A mulher pareceu ultrajada.

—Não fale assim comigo, mocinha. Onde está a minha filha?

—Sua filha?

—Sim, eu estava na mesa 5, minha filha quis usar o banheiro, eu não podia levá-la por que estava no celular e você se ofereceu para levá-la. Onde ela está?

—Ela... — Violet forçou a memória. — Seu marido veio quando já havíamos saído e a levou.

—Meu marido? — a mulher de repente ficou apavorada. — Meu marido estava comigo o tempo todo!

—Ele... Ele disse que era seu marido.

—Você é louca? Sua retardada! Para quem você entregou minha filha?!

A mulher fora para cima de Violet, e por pouco não a atacara com suas longas unhas vermelhas, porém foi impedida por Helen e Jet, que saíram do café para ajudar a colega de trabalho.

—Por favor, senhora, fique calma! — pediu Helen, empurrando-a para longe de Violet.

—Essa retardada entregou minha filha a um estranho!

—Violet, para quem você entregou a menina? — pergunta Jet.

—Ele disse que era pai dela... — Violet estava em pânico. — Eu não sei!

—Ele disse e você acreditou?!

—Louca! — berrava a mulher, cujo marido também saíra para controlá-la, e agora a puxava de volta para o café. A mulher se debatia em prantos. — Minha filha! Você vai para a cadeia! Maldita!

Violet olhou ao redor, Quentin já havia partido, e ela estava sozinha, cercada de rostos curiosos e desconhecidos. Por um instante, ela quis que a terra se abrisse e a engolisse...

Jabez Wilson era um homem bom. Se fosse possível colocar no dicionário o nome de alguém para designar um homem bom, este alguém seria Jabez Forrest Wilson. Sua bondade funcionava como uma cabana, um manto que cobria todos ao seu redor, e ele se esforçava em fazer o bem sempre que possível. Não era algo aprendido, era algo natural a ele. Assim, enquanto se dirigia ao seu escritório, sua mente trabalhava a todo vapor para encontrar uma saída diferente daquela que lhe era imposta. Seu coração parecia se derreter. Ele não queria aquilo. Mas não tinha escolha. Abriu a porta, deparando-se com seu simples escritório repleto de fotos de família e livros de escritores consagrados. Detrás da mesa, sua cadeira estofada de couro nem tão legítimo. Na cadeira do outro lado, Violet Hunter, garçonete, torcendo as mãos como se estivesse planejando arrancar os dedos.

Jabez suspirou, indo até sua cadeira estofada e sentando-se, mirando seus olhos tristes na moça à sua frente. Como diria o que tinha de dizer?

—Acharam ela? — perguntou Violet, a angústia exalando de sua voz e rosto.

—O homem a quem você entregou a menina era mesmo pai dela... — Violet solta um suspiro aliviado, recostando-se na cadeira e levando a mão à testa. — A Sra. Messer é separada do pai da criança e estava aqui com a menina e o novo marido. O problema é que o pai não tem ainda a permissão judicial para ficar com a criança, ele tentou se aproveitar da situação para pegar a menina e, bem, alguém como você não conseguiu perceber a diferença entre... Bem, entre ninguém.

—Mas mesmo que eu reconhecesse alguém, como eu poderia saber...

—Não poderia. Por isso o pai da menina se atreveu a tentar pegá-la, seu problema apenas facilitou tudo.

—Eu sinto muito.

—Ela ameaçou nos processar... — Jabez usou todas as forças para terminar a frase. — Se não demitirmos você.

—O quê... — Violet arfou.

—Ela tem motivos.

—O quê? — ela repetiu, em choque.

—Você entregou uma criança a um desconhecido.

—A menina o reconheceu, começou a rir e foi correndo para o colo dele!

—Você devia ter se certificado! — Jabez mais lamentava consigo que ralhava com ela. — Ainda mais sabendo de sua condição! E a Sra. Messer tem o motivo e os meios para fechar este lugar!

—Eu achei que era o marido dela! — diz ela, pousando as mãos sobre a cabeça. — Não pode explicar à Sra. Messer...

—Eu expliquei. Ela não quis saber. E ninguém se importa... — ele leva a mão ao rosto. — Eu não quero fazer isso, Violet...

—Então não faça! — ela implora. No mesmo instante seus pensamentos voaram até Arundel, até o asilo, até seu pai. — Jabez, por favor...

—Quando você melhorar eu a contratarei novamente!

—Eu não vou melhorar... — ela suspira.

—Eu não posso arcar com o fechamento deste estabelecimento, não posso pensar só em você, tenho de pensar nos outros que trabalham aqui e que ficarão desempregados... — ele coloca as mãos sobre a mesa, balançando a cabeça e tentando manter a serenidade. — Darei meu melhor para que você receba os benefícios pelo máximo de tempo possível. Eu a demitirei para que você tenha todos os direitos, é o que posso fazer. Minha querida, eu sinto tanto...

Violet fecha os olhos, sentindo seu mundo rodar. Sentiu tudo ao seu redor mudar de lugar, de tamanho, dançando e flutuando em volta de sua cabeça. Quando os abriu, a realidade caiu como uma pedra. Nada de fato havia mudado. Ela era a única coisa fora do lugar. Ela encarou Jabez, já recomposta.

—Eu entendo.

Perder algo é uma coisa estranha. Ainda mais quando é algo precioso. Você procura, reclama, procura, chora, xinga, culpa outras pessoas, xinga outras pessoas, chora mais... Faz tudo, menos reconhece que perdeu. E que não vai achar. Isso é ainda mais claro quando perdemos algo que não é palpável. Como o emprego. Você acaba se vendo num estado de não-aceitação, num lugar sem cor e silencioso onde você não perdeu nada, está apenas com dificuldade de achar. Mas vai achar.

Violet se viu neste estado quando saiu do café Jabez’ s. No fundo, em sua mente, nada daquilo aconteceu. Bem no fundo, ela ainda se via trabalhando, feliz e satisfeita, sem mal-entendidos ou brigas. Era como se ela estivesse saindo naquele horário por qualquer motivo estúpido, e caminhava pela calçada a passos errantes e olhar perdido. Segurava sua bolsa com ambas as mãos, não que temesse que ela fosse roubada, mas por que precisava se agarrar a alguma coisa. Isso não queria dizer que Violet gostava daquela bolsa. Era uma bolsa de crochê, velha e surrada, cuja linha devia ser branca, mas o tempo decidiu que seria bege. Usava-a por que a outra havia sido levada. E Violet tentava não pensar em quem a levara...

Ela desceu as escadas que levavam à estação de trem. Charing Cross. A famosa estação, de construção moderna, grandes arcos de metal com grandes janelas de vidro. Ela sempre passara por aquele lugar, e na verdade nunca prestou muita atenção na arquitetura que a cercava enquanto esperava o trem. Parou na plataforma, assim como várias outras pessoas, sem ânimo de olhar ao redor. Não reconheceria ninguém mesmo...

Não havia muitas pessoas na estação. Não era horário de pico. De fato, nada parecia movimentado por onde Violet passara antes de chegar a Charing Cross, o que a agradara muito. Quanto menos gente, melhor.

O trem surgiu. Como uma lagarta gigante e metalizada, ele deslizou ao lado da plataforma até que todas as portas coincidissem com as rampas de embarque, e imediatamente as portas se abriram. Todos entraram.

Violet sentou-se perto da porta. Mesmo antes de tudo acontecer, ela tinha este costume herdado do pai, que sempre temia que algo fosse acontecer dentro do trem e que fosse necessário sair correndo pela porta. Violet sempre achara graça deste costume, mas teve de reconhecer que também o tinha. Pensou nisso alguns segundos, daí levantou os ombros discretamente, como que raciocinando consigo mesma. Ela se sentia mais segura ali. Abriu sua bolsa de crochê, tirou seu celular e o fone, colocando-o nos ouvidos, e a música tocou. Não era um celular novo, não tinha nem mesmo cartão de memória, mas tinha uma memória interna suficiente para que 15 músicas selecionadas dos Beatles permanecessem ali para momentos de tédio ou estresse. Violet fechou os olhos, respirando fundo. Ouvia naquele momento “The Long And Winding Road”. Ela gostava muito daquela música. Ela amava os Beatles.

O trem prosseguia seu caminho. Parecia que nunca ia chegar. Quando a música terminou Violet abriu os olhos, permitindo que sua mente finalmente processasse o fato de que havia sido demitida. O que faria agora? Como sobreviveria? Como manteria o tratamento do pai?

Ela massageou as têmporas, olhando ao redor de forma tristonha, quando notou que alguém esquecera uma bolsa ao seu lado. A primeira coisa que passou por sua cabeça foi buscar a carteira e ver a identidade, talvez encontrando a dona e devolvendo-lhe o pertence. Daí veio-lhe ao pensamento que não adiantava nada ver a foto da pessoa na identidade, e que provavelmente iriam achar que ela estava roubando aquele pertence. Daí ela prestou mais atenção naquela bolsa...

**

O Hospital St. Bartholomew’ s, mais conhecido como Bart’ s, localizava-se no bairro Smithfield, e era, como todos sabiam, o mais antigo hospital de toda a Inglaterra. Sobreviveu ao Grande Incêndio. Manteve-se de pé durante a Blitz. Foi local de execução de William Wallace. Com certeza, aquele lugar de paredes envelhecidas e tijolos em relevo havia presenciado muito ao longo da História. St. Bart’ s não era mais um hospital comum. Seu departamento de emergência havia sido fechado em 1995, e agora ele permanecia como centro de pesquisa, e também como destino de corpos que faziam parte de investigações policiais.

Molly Hooper olhava sua prancheta com cuidado. Seu colega a observava de forma impaciente, provavelmente se perguntando por que aceitara trabalhar num necrotério com uma especialista que queria que tudo fosse perfeito. À sua frente, duas macas com dois corpos dentro de dois sacos pretos.

—Eu já posso despachá-los?

—Claro que não. — ela disse, sem olhá-lo. — Os detetives ainda virão dar uma olhada.

—Nós já fizemos a autópsia.

—Não precisa ficar aqui, pode ir. — ela sorriu para o rapaz, incentivando-o a sair o necrotério. — Vai, tome um lanche ou algo assim. Quando eles chegarem eu cuido de tudo.

—Obrigado, Molly. — o rapaz saiu do necrotério numa velocidade inacreditável, e Molly ficou pensando por que pessoas aceitavam trabalhar lá se não tinham estômago para isso. Ela olhou novamente a prancheta que segurava, daí olhou as duas macas, deixadas lado a lado naquela sala branca e extensa. Elwood e Faye Simons, 24 e 25 anos, casados, foram encontrados mortos na própria casa pela empregada, que ao tocar a campainha insistentemente desconfiou e pediu ao vizinho que arrombasse a porta. A polícia foi acionada, o crime foi descoberto, os corpos foram removidos, e lá estavam eles, lado a lado, na sua última parada antes do caixão. Ela pensou rapidamente, daí completou os dados que faltavam, escutando vários passos ecoando corredor afora. O coração dela acelerou. Ela tinha um certo palpite de quem estava vindo...

—Bom dia, rapazes. — ela sorriu, enquanto Sherlock e Lestrade entravam na sala.

—Bom dia, Molly. — respondeu Greg. Sherlock foi até um dos sacos pretos, abrindo-o.

—Causa da morte?

—Incisão larga na região do pescoço, partindo a traqueia e todos os tendões, vasos e nervos que lá se encontravam. — ela ajudou Sherlock a retirar o saco do primeiro corpo, o pertencente ao marido, e Lestrade virou-se para a parede por um instante. Molly observou o corpo, seu rosto denotando certa repulsa. — Basicamente, o assassino quase arrancou a cabeça dele...

Gregory voltou-se para o corpo, ainda hesitante. O corpo estava em perfeito estado de conservação, pálido e cianótico, e o imenso corte no pescoço não continha sangue. A limpeza havia sido perfeita. Ainda assim, era um defunto com a cabeça praticamente separada do corpo.

—Corte preciso? — disse Sherlock, tirando sua pequena lupa e estudando a laceração sem um mínimo de acanhamento.

—Não. — Molly aponta para o final do rasgo na garganta. — Vê aqui?

—Sim. — Sherlock aperta os olhos. — Ele começou cortando, — ele seguia a linha do corte com um dos dedos. — mas abriu o resto à plena força. Foi como se... — ele coloca as mãos por dentro da abertura, como se quisesse rasgar o resto do pescoço do morto. — Ele segurou dos dois lados e puxou. Será que eu...

—Você não está pensando em arrancar por completo essa cabeça, não é?

Sherlock olhou timidamente para Lestrade, que estava em choque. O bom policial não acreditava no que via. Naquele momento, Sherlock lembrava um menininho ansioso por um doce.

—Eu só ia...

—Não se atreva. — Lestrade rosnou entredentes.

Sherlock ergueu-se, soltando um longo suspiro decepcionado. Molly olha sua prancheta rapidamente.

—As lacerações indicam aplicação de força extrema para sua formação.

—Acesso de fúria? — pergunta Lestrade, ainda sentindo que ia acabar desmaiando.

—Provavelmente, — diz Molly. — estes tendões são fortes, você precisa de grande esforço físico para... Parti-los.

—Não é o estilo de nosso assassino. — diz Lestrade, procurando um lugar para pôr as mãos.

—Não, foi efeito colateral. — Sherlock estuda as marcas de violência por todo o corpo. — Você não disse que eles iam depor hoje?

—Sim. Com sua suspeita de que o assassino esteja se disfarçando de policial achamos que seria uma boa ideia tentar... Mostrar algumas fotos, fazê-los ver nossos rapazes... — Lestrade respira fundo, mantendo-se inteiro. — Não que eu ache que seja um de meus rapazes.

—Ele estava com raiva... — murmura Sherlock. — Mas por quê? Deixe-me ver a esposa.

Molly abre o outro saco. Os dois homens observam a morta, pensativos.

—Interessante...

—O quê?

—Ela não sofreu.

—Como sabe?

—Veja a pele dela. — Sherlock caminha ao redor da maca. — Não há marcas de golpes, ele nem mesmo a enforcou... — ele se aproxima do rosto dela, pegando novamente sua lupa. — Ele a sufocou gentilmente.

—Sherlock... — suspira Lestrade, balançando a cabeça. — Gentilmente?

—Este casal não fazia parte dos planos de nosso assassino, foram uma decisão em virtude da necessidade, assim ele não teve tempo e/ou vontade de realizar seu procedimento habitual. Realizou uma variação leve de seu método. Ele tapou o nariz dela, fazendo-a desmaiar e então a matou. Ela não sentiu dor, sequer percebeu nada. Veja que o corte na garganta dela foi delicado, ele foi metódico, quase cirúrgico. Ele a matou primeiro, invadiu a casa e a pegou por trás, terminando com ela rapidamente. O marido surgiu, mas este não foi tão fácil, eles lutaram.

—Sim, — Greg concorda. — há arroxeados no corpo do marido que conferem com marcas de luta.

—Isso deixou nosso assassino frustrado, e já sabemos que ele não lida bem com frustrações.

—Como sabe?

—Na última vez ele atirou uma moça de um telhado.

—Ah, sim, e como ela está? — Os dois detetives olham para Molly, que estava aliviada de finalmente ter tido a oportunidade de perguntar. Ela abraça sua prancheta. — Eu soube que ela adquiriu um desvio cerebral raro e... Ela está segura?

—Bem... — diz Lestrade, olhando para Holmes.

—Deixou policiais de confiança para acompanhá-la como eu mandei?

—Hmm... Eu pedi que Dimmock fizesse isso.

—Ele não fez.

—Ele pode ter feito e você não sabe.

—Ele. Não. Fez. — disse Sherlock pausadamente.

—Você não tem como saber! — Lestrade soltou, frustrado. — E talvez nem precise...

—Olhe para essas macas, você realmente acha que não precisa?

—Eu decidi deixar isso na mão dele.

—Está deixando tudo na mão dele, e ele tem a mão furada.

—Ele é o responsável pela investigação! — diz Lestrade, abrindo os braços.

—Se confiasse nele não teria vindo aqui no lugar dele.

—Por favor, se vamos discutir, vamos fazer isso lá fora, por que eu estou quase vomitando.

Sherlock vai até Lestrade, sua expressão séria.

—Olhe para os corpos, Lestrade. Você os chamou para depor ontem, e eles apareceram mortos hoje de manhã. Quem mais você chamou?

—Foi o Dimmock, ele sabe, não eu...

—Fale com ele, ligue agora, cancele tudo, coloque-os sob proteção oficial, ou teremos mais corpos para visitar à tarde. Isso não é um pedido amigável, Lestrade. — seu celular toca. — Sherlock Holmes.

—Ele está aqui...

O olhar de Sherlock tornou-se vidro. Seu rosto tornou-se mármore. Ele era agora uma bela estátua de cera. Toda a sala, antes branca, escureceu. As coisas ao redor pareceram menos distintas, como um borrão sem cor, e a voz de Lestrade parecia agora um mero eco distante.

“Sherlock! Sherlock, o que foi?”

“O que aconteceu?”

“Sherlock...”

“Ele está aqui...”

Violet Hunter tentava respirar. Seu pulmão insistia em se fechar, em chiar e em não processar o pouco oxigênio que ela conseguia puxar para si. Seus olhos mantinham-se em movimentos rápidos, perscrutando cada pequeno canto daquele vagão. Seu corpo estava enrijecido. Suas pernas tremiam involuntariamente. Sua mente desejava se esvair. Suas mãos trêmulas pareciam garras, num misto de pânico e agonia, uma ao redor da bolsa de couro azul escuro, a outra mantendo o celular colado a sua orelha, por baixo de seu cabelo rubro.

—Ele está aqui... — ela dissera, sua voz saindo fina e entrecortada. Seu peito retumbava audivelmente. Não soubera como conseguira fazer a ligação, mas a fizera e sentira-se aliviada e apavorada ao ouvi-lo atender.

—O quê?

—Ele está aqui... — ela se esforçou para repetir, encolhendo as pernas por sobre o banco, abraçando os seus joelhos e tentando impedir que tremessem. — Ele... Aquele... Ele...

—Fale devagar.

—O homem... — ela olhou novamente para aquele acessório terrível em sua mão. A bolsa. A bolsa que desaparecera na noite em que tudo ocorreu. A bolsa que o assassino levou. Pessoas passavam por ela, segurando-se nos canos do teto, e ela as olhava com a respiração acelerada. — Aquele que fez... Aquilo... Meu Deus...

—Em que trem você está?

—Eu estou...

—Em que linha?

Bakerloo... — ela trincou os dentes. — Não sei em que ponto, não consigo reconhecer os prédios...

—Permaneça calma. — ele disse, nunca alterando o tom de sua voz grave e poderosa. Um silêncio rápido ocorreu. —Olhe em volta, há algo estranho?

—Há pessoas... — ela sussurra, olhando em volta. — Só rostos...

—Concentre-se. — a voz dele era imperativa. — Ache algo.

Ela olhava todos no vagão, algumas dezenas, e tentou encontrar algo que fosse estranho ou suspeito. O senhor lendo jornal? O moço bem vestido que falava ao celular? O homem de cabelo branco que fumava? O moço, para onde ele fora? Havia dois senhores de cabelo branco agora? Qual estava fumando? Para onde fora o jornal?

—Não consigo ver... — ela arfou, apertando com força suas pálpebras, baixando a cabeça, ansiando desaparecer e nunca mais voltar. — São apenas rostos!

—Não feche os olhos. — Violet ergueu a cabeça, percebendo que um homem jovem se levantara, olhando em sua direção. Ele era pelo menos uns quatro palmos mais alto que ela. Ela se pressionou contra o banco, perdendo por completo sua voz. — Saia daí.

Ela se levantou, suas pernas ameaçando se dobrarem, indo até a porta que separava os vagões e abrindo-a, passando para o próximo vagão. Caminhava a passos incertos, desviando-se das pessoas que a olhavam com estranheza, e tentando se esconder detrás delas. O homem também passou para o outro vagão, sempre procurando-a com os olhos.

Ela apertou o passo, esbarrando em alguns passageiros, que reclamavam ou xingavam, dirigindo-se para o fim deste vagão.

—Ele está me seguindo... — ela ofegou com urgência, empurrando outra porta. — Por favor, me ajude...

O trem passou por um túnel mais denso. O sinal falhou. A ligação caiu. Violet olhou o celular, soltando um gemido de desespero. Disparou pelo vagão, perguntando-se onde estavam os policiais que ela tanto via em outros dias. Nunca estavam lá quando eles eram necessários. Agarrava-se aos tubos que atravessavam os vagões, buscando por equilíbrio, pois suas pernas não eram mais confiáveis. O homem ainda a seguia, e também apertara o passo. Violet beirava o puro desespero. A cada instante em que olhava para trás, um homem diferente a seguia, com feição diferente, mas com o mesmo olhar ameaçador.

O corredor parecia menor agora. As janelas de vidro pareciam querer curvar-se e arrastar o teto consigo. Violet não sabia quantos vagões atravessara. Perdera a conta.

Ela empurrou mais uma porta, tropeçando para dentro de novo vagão, e para seu espanto, este estava vazio. Seu coração praticamente parou. Era o fim. Ela girou o corpo, vendo o homem se aproximar cada vez mais. Diferente dela, ele não esbarrava em ninguém. Parecia atravessar os outros corpos, e flutuar em sua direção. Era uma visão aterradora. Violet ficou estática. Sua boca secou. Sentiu-se em seu pesadelo.

O homem empurrou a porta. Violet cambaleou para trás, sem voz para gritar. O homem avançou, ela recuou e, num resquício de seu instinto de sobrevivência, se lançou sobre o freio de emergência, puxando-o num grito de terror.

—Não!!!

A trava foi ativada. O barulho ensurdecedor dos freios ecoou por vários quilômetros, atraindo e assustando todos nas estações e nas ruas. O chão acima tremeu. O trem começou a escorregar sofregamente sobre os trilhos, atirando fagulhas no cascalho que circundava a linha Bakerloo, iluminando o túnel por onde passava de laranja e branco. Todas as pessoas no trem desabaram como uma, na mesma direção, chocando-se umas contra as outras, contras o tubos e bancos, gritando apavoradas. Não sabiam o que estava acontecendo.

Violet caíra no chão metálico do vagão em que se encontrava, perdendo a consciência por alguns instantes. Abriu os olhos numa tomada de fôlego, erguendo-se rapidamente e lembrando-se de onde estava. Sequer olhou ao redor, as portas se abriram e elas saltou para fora do trem, correndo com todas as forças através do cascalho, subindo pela primeira escada que encontrou, chegando à plataforma e atravessando-a, disparando escadaria acima e deparando-se com a luz do dia.

Estava no meio da Piccadilly Circus.

Luzes piscantes de propagandas, carros buzinando, centenas de pessoas cruzando-se numa velocidade inacreditável. Violet girava ao redor de si, tentando recobrar seu equilíbrio e direção. Estava completamente perdida. Daí voltou a correr. Correu. Corria sem parar, nem mesmo para recobrar o fôlego. Apenas corria. Não olhava os dois lados para atravessar a rua. Não pedia perdão ao topar com alguém. Ouvia o chiar de seu peito, o batimento louco de seu coração. Não se importava.

Ela apenas corria... Corria...

—Dra. Handler! — ela gritava com voz embargada, cambaleando pelo hall do Hospital Queen Anne. — Dra. Handler!!!

Um enfermeiro foi até ela, segurando-a antes que caísse de exaustão no piso frio do hospital. Ela não reconheceu os rostos que se aproximaram, mas reconheceu sim a voz que falou com ela. Uma voz doce e serena, a voz de uma boa médica.

—Santo Deus, Violet... Tragam ela... Liguem para o Sr. Holmes...

O que veio a seguir pareceu um sonho ruim. Vozes distantes, vultos indistintos, daí a realidade, e o cansaço. Um tremendo cansaço.

—Respire, querida... — a Dra. Handler repetia, acariciando o cabelo de Violet. — Fique calma.

Estavam no refeitório, aquele pertencente aos médicos, pois a Dra. Handler não viu necessidade de colocar Violet num quarto. Uma sobrecarga de adrenalina que finalmente a levou à exaustão, ela explicara. A vontade de viver sobrepondo-se sobre todo o resto.

Violet respirou novamente, ainda sentindo seus músculos tremerem pelo grande esforço que fizera anteriormente. Pegou o copo à sua frente, que continha um líquido desconhecido, mas de gosto doce e agradável, e tomou outro gole. A Dra. Handler sorriu.

—Boa menina. — ela se recosta em sua cadeira, respirando fundo. — Vai se recuperar rapidamente. Ligamos para a polícia, eles já estão no local onde o trem freou. Parece que eles foram acionados antes do trem parar, e chegaram extremamente rápido. Provavelmente quando você saiu, eles entraram. — a médica soltou uma risadinha. — Você tem boas pernas.

—Mas um coração fraco... — Violet murmura. Ela baixa o copo, olhando de soslaio para os enfermeiros que conversavam na entrada do refeitório. — Ele estava lá. Eu o vi de frente, ele me seguiu por não sei quantos vagões... E eu não sei como ele é...

—Não se culpe. — a Dra. Handler diz, seu cenho preocupado. — Você não tem...

—Não tenho condições... — ela completa, e a Dra. Handler pôde perceber que ela trincara os dentes. Os enfermeiros se afastam, e vários policiais liderados por Lestrade e Dimmock entram no refeitório. Seus olhos estavam fixos em Violet. Lestrade foi até ela, ajoelhando-se ao seu lado.

—Como se sente? — perguntou, sua voz baixa e preocupada.

—Estou bem. — ela respondeu, sem olhá-lo. Lestrade colocou sua própria mão sobre a mão trêmula dela.

—Tem certeza?

Violet o encarou, e quis dizer algo, quando Dimmock falou com sua voz alta e estridente, dando-lhe um sobressalto.

—Você freou um trem de dezenas de vagões... — ele sorriu de forma repreensiva. — Fez uma bagunça, sabia?

—O assassino, — ela começou olhando para Dimmock, daí voltou o olhar para Lestrade. — ele estava lá.

—Onde está a bolsa? — pergunta Lestrade.

—Guardamos em segurança. — a Dra. Handler se levanta. — Eu vou buscá-la.

Dimmock olhou Lestrade com desconfiança.

—Como sabia que havia uma bolsa?

—Sherlock me disse. Ele disse que tinha de haver uma prova palpável para Violet perceber a presença do assassino, e que tudo indicava que era a bolsa.

—Onde ele está? — diz Violet.

—Na estação Piccadilly. — diz Dimmock. — Homem sortudo, acionou a polícia minutos antes do trem sair derrapando pelos trilhos.

—Não é sorte... — murmura Lestrade, encarando Violet. — Ele sabia.

—Aqui está. — a Dra. Handler entrega a bolsa a Dimmock, que coloca o acessório dentro de uma sacola para provas, deixando-a com um dos policiais atrás de si. Enquanto isso Lestrade permanecia observando Violet, pensativo.

—Estou pensando onde poderia deixá-la...

—Ela pode ficar comigo. — oferece-se a Dra. Handler. — Ela pode ficar aqui até que eu termine meu horário, daí ela poderá descansar em minha casa.

—Muito bem, é uma ótima ideia. — ele se volta para Violet. — Voltarei depois, tenho de colocá-la sob proteção oficial. Dra. Handler, obrigado pela ajuda.

—É um prazer.

—Muito bem. — Dimmock esfrega as mãos, querendo parecer displicente, mas deixando bem claro que estava ansioso. — Ela está bem, já temos a bolsa, e ganhamos de quebra um lugar para deixar nossa... Hmm... Testemunha. Agora eu preciso trabalhar, e voltar à cena do trem. Tenho um assassino engraçadinho para capturar.

—Posso ajudar? — pergunta Violet, desejando se levantar, mas foi impedida por Lestrade.

—Não creio que esteja em condições... E, sinceramente... — ele media cada palavra. Olhou-a tristemente. — Como você nos ajudaria?


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