Cachecol Azul e Cabelo Vermelho escrita por Lirah Avicus


Capítulo 26
Capítulo 26




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Tiro.

—Esquerda! 35 milímetros!

Tiro.

—Direita! 10 milímetros!

Tiro.

—Esquerda! 14 milímetros!... Acha que seremos presos por isso?

—Somos velhos demais para ir para a prisão, só íamos encher cela, e isso por no máximo 15 anos.

—15 anos? Ha! Você está se achando muito forte! Morreríamos antes de ir a julgamento!

—Não nos levariam a julgamento, descobriríamos os podres de todo o júri, do juiz, dos policiais e dos esbirros. Matariam-nos de uma vez.

—Parece justo.

—Silêncio, estou tentando me concentrar.

Tiro. Gritos de comemoração.

—Acertei!

Grito de raiva. Palavrões.

—Você beija a sua mãe com essa boca, menino?

—Vocês vão me pagar por isso, seus velhos malditos!

Tiro.

—Que droga!!!

—Errei a sua cabeça de propósito, então cale a boca!

Silêncio. Parece que a ameaça surtiu o efeito desejado.

Violet sentiu que havia sido atropelada por uma manada de rinocerontes. Todos adultos. Tentou se mexer, sem muito sucesso. Todos os seus membros doíam. Ela entreabriu os olhos, divisando uma luz vinda de uma grande janela. Três silhuetas postavam-se diante da janela. Delas provinham as vozes que ela ouvira.

—Acho que talvez você tenha exagerado, Hombach.

—Não, — respondeu a voz mais grave. — machuquei a orelha daquele infeliz e agora me sinto feliz. São Pedro fez o mesmo. Sinto-me muito mais religioso agora.

—Comentário desnecessário.

—Você é ateu, Hombach.

—Estou aberto a novas explicações. Só por que não concordo com as grandes religiões não significa que sou ateu. Apenas não aceito ser um carneiro pronto para ser tosado.

—Muito profundo. — uma das vozes disse sarcasticamente.

—A gente tosa ovelhas, não carneiros.

—Não importa.

Violet levou a mão à cabeça num gemido. Isso chamou a atenção dos três senhores na janela. Eles fora até ela, distribuindo-se em fila ao lado da cama, encarando-a de forma interessada. Ela se ergueu, finalmente conseguindo abrir os olhos.

—Ela acordou! Esplêndido! — exclamou o senhor mais baixo, gordinho, com um bigode bem aparado e olhos brilhantes, além de um sorriso largo. Vestia uma camisa com uma cordinha ao redor da gola, e sua calça era segurada por uma gravata.

—Como se sente, lieber? — perguntou o senhor do meio, este menos gordo, um tanto calvo, nariz aquilino, vestindo colete e usando óculos escuro de lentes redondas. Segurava um rifle numa das mãos, mas tinha uma expressão muito agradável. — Parece muito mais corada.

—Estou bem... — ela passa a mão pelo cabelo. — Um tanto... Dolorida.

—Nós retiramos todo o sedativo presente em seu corpo. — disse o senhor baixinho e risonho. — Quimicamente. Não foi difícil, mas foi necessário, ou você acordaria apenas na próxima superlua!

—Espero que não se assuste com nossa presença. — disse o outro senhor, este sendo de altura média, cabelo cinza e desgrenhado, óculos de aros grossos e olhos castanhos. Ele gesticulou, apontando para si mesmo e para os outros dois. — A senhorita se encontra em nossa casa.

—Como? — ela olha em volta, vendo um quarto amplo, mas desprovido de móveis, tendo apenas a cama, um criado mudo, um espelho e um quadro. No quadro, um fundo branco com um risco vermelho. — Como vim parar aqui?

—Seu cavaleiro de armadura reluzente a trouxe! — disse o senhor sorridente.

—Somos amigos de Sherlock. — explicou o senhor com o rifle. — Sou Hombach, estes são Graham e Godel. E estávamos treinando tiro na sua janela, espero que isso não a tenha acordado.

Graham encarou o amigo, erguendo as sobrancelhas.

—Você não disse isso.

Hombach dá de ombros.

—Eu sei que isso a acordou, apenas quis ser um bom anfitrião.

Godel aproxima-se de Violet, esticando as mãos e erguendo as pálpebras dela, observando com cuidado.

—Sente tonteira?

—Hmm, não.

—Gosto agridoce na boca?

—Um pouco.

—Quem foi o quinto Beatle?

—George Martin.

—Ha! — Godel se afastou, batendo palmas. — Essa moça me conquistou.

—Alguma mulher nestes últimos 40 anos não fez isso? — murmurou Hombach.

—Consegue se levantar, querida? — pergunta Graham.

—Acho que sim. — Violet abraça o próprio corpo. Passava em sua mente todas as lembranças, reais ou não, da noite anterior. — Mas não quero.

—Compreensível. — aquiesce Graham. — Você teve uma noite difícil. Mas fizemos seu café da manhã, aliás, a enfermeira fez, entre uma ou outra praga, e lhe traremos para que coma. Deve se manter bem alimentada.

—Tudo bem... — ela passa os dedos sobre um pequeno ferimento sobre sua mão direita. — Enfermeira? Estou ainda no hospital?

Hombach soltou uma gargalhada.

—Santo Deus, não! Está em um asilo, lieber, — enquanto Hombach falava, Godel virou-se e voltou à janela. — o último lugar em que alguém que quer lhe fazer mal viria procurar.

—Qual asilo?

Graham levanta uma sobrancelha.

—Aprendemos de maneiras incômodas, querida, que é melhor que a pessoa protegida não saiba onde está.

—Ah, inferno! — praguejou Godel. — É ele.

Os outros dois senhores vão até a janela, juntando-se ao que já estava lá. Violet coloca os pés para fora da cama, sentindo uma tonteira inesperada.

Graham dá um tapa frustrado na moldura da janela.

—Por que tenho de suportar estas criaturas nefastas?

—Por que junto da genialidade vem a pertinência. — responde Hombach. Godel vai até Violet, segurando sua mão.

—Sente-se tonta?

—Um pouco.

—Vai passar, espere um pouco. — ele se vira para Hombach. — Atire nele!

—Não. — diz Graham. — Quero saber o que ele quer. — ele vai até a porta, voltando-se para os outros. — Vocês dois, comigo. Quero este verme fora daqui antes que Sherlock retorne.

—Não posso deixá-la, ela está tonta.

—Sente-a no sofá.

—Mas assim ele vai vê-la! — protesta Hombach.

—E daí? Ninguém vai tirá-la deste apartamento.

Violet se levantou, amparada por Godel e Hombach, e ao pôr-se de pé, sentiu-se estranhamente melhor. Começou a caminhar, tendo a mente a vagarosamente clarear.

—Quem está vindo? — perguntou, enquanto se dirigiam à sala.

—Mycroft. — diz Hombach. — O irmão mais velho de Sherlock.

—Ele tem irmão?

—Infelizmente, sim.

Godel concorda com a cabeça.

—É óbvio que ele viria aqui, em quem mais Sherlock confiaria para deixar sua preciosa carga?

—O que ele quer? — ela disse, sentando-se no sofá bordado com motivos árabes. Hombach tirou um cachimbo do bolso, acendendo-o com apenas uma mão. Falou em meio à baforadas:

—Provavelmente se livrar de você, docinho.

—Hã?

—Mas não se preocupe, podemos dar conta dele.

Godel surge com uma bandeja, que continha dois bules, um prato com pãezinhos e biscoitos, e um potinho de manteiga acompanhado de uma faca, e coloca-a sobre uma mesinha ao lado do sofá.

—Temos prática em deixá-lo... Desconfortável.

—Desconfortável?

—Para ser sincero, praticávamos bullying com o Holmes mais velho.

—Acreditamos na justiça equitativa. — Hombach coloca as duas mãos no mesmo nível à frente do rosto. — Para haver justiça tem de haver equilíbrio.

—Mycroft pegava no pé do Sherlock, — sorriu Godel. — então, pegávamos no pé dele.

Hombach tirou o cachimbo da boca, pensativo.

—Falávamos sobre como o nariz dele poderia resgatar o Titanic daí afundá-lo de novo, ou como parecia que tinha um pau atravessando-o por todo o corpo.

—Ou a insistência dele em usar sempre o mesmo suéter. — completa Godel.

—Ah, isso o matava!

—Ele nunca trocava de suéter, usava sempre o mesmo. Era um suéter marrom, parecia feito em casa... Não que eu tenha algo contra bens manufaturados, mas...

—Tínhamos algo contra o Mycroft. — afirma Hombach.

—Sim... — Godel ergue as mãos. — O Homem-Suéter!

—Céus... — Violet quase conseguiu sorrir. — Vocês são crianças absolutas...

—Não somos adultos, somos velhos, uma condição na qual temos o direito de agir de modo mais infantil que os bebês. — Godel pega um biscoitinho. — Adoro biscoitos de canela...

—Ele está vindo. — informa Graham, cruzando os braços. — Hora da batalha. Ele vai abrir a porta em 3... 2...

A porta se abre.

Mycroft entra.

Violet se espantou ao ver o irmão de Sherlock Holmes. Esperava algo que a lembrasse ao menos um pouco o grande detetive. Mas não. Era algo completamente diferente. Na verdade, era exatamente o oposto.

Mycroft Holmes vestia-se com um cavalheiro. Terno, colete, gravata. Relógio de bolso. Tudo estava no lugar. Segurava um guarda-chuva preto, e Violet pensou que não se lembrava de ter visto céu nublado quando olhou pela janela. Mas o mais interessante eram os detalhes de seu rosto. Olhos grandes, inquiridores, nariz adunco e lábios que aparentavam sempre desprezar o que havia ao seu redor. Violet não gostou do que viu. Baixou a cabeça, procurando se concentrar em seu café da manhã.

—Então... — disse Mycroft. — Este é o andar do necrotério?

—Treinou esta frase quantos dias antes de vir para cá? — disse Hombach, retirando os óculos escuros.

—No caminho para o asilo, na verdade. — disse ele. — Deduzo as ações de meu irmão no momento em que ele as executa, não antes.

—Interessante. — Hombach continua. — Então por que não enviou ajuda ao hospital ontem à noite?

—Provavelmente estava ocupado na esteira. — diz Godel. — E como vai a dieta?

—Vai perfeitamente bem, Prof. Godel. — disse ele, entredentes.

—Fico feliz com isso. — o professor disse, sorrindo maldosamente. Mycroft respondeu ao sorriso.

—Devo informá-los que estou crescido agora. Vocês não me assustam mais. Não mais que pequenas baratas fugindo da luz.

—Poético... — murmura Hombach.

—O que quer aqui, Mycroft? — diz Graham, impaciente.

—Eu trago boas notícias. — ele abre os braços discretamente, sorrindo. — Vim estender minha cordialidade, e a bandeira branca, a meu querido irmão. Esperarei por ele aqui, na companhia amistosa de vocês, e o informarei que não irei mais atrapalhá-lo em sua investigação.

—Não somos amistosos. — grunhe Godel.

—Você veio aqui vê-la. — diz Graham, nem um pouco impressionado. — Quer saber se tem motivos reais para se preocupar, e para isso tinha de observá-la pessoalmente.

Violet se encolheu. Mycroft a olhava agora, ainda sorrindo.

—Ah, você estragou a surpresa... — ele disse, fingindo decepção. — Apesar de eu ter dito a verdade em cada palavra. Se meu irmão quer encontrar a cova, não o impedirei. Mas eu queria ver pelo quê ele está se arriscando. — ele franze o nariz, ainda encarando-a. — Estou desapontado. — ele olha para os senhores, erguendo as sobrancelhas. — Ela não tem nem cabelo...

Violet fechou os olhos por um instante. Aquilo doeu.

Hombach juntou as sobrancelhas.

—Você também não tem cabelo, e ninguém o inquiriu por causa disso.

—Você vai esperar pelo seu irmão no gramado, na calçada, no meio da rua, pendurado num poste... — Graham cerrou os olhos. — Mas não aqui.

—Eu voto em pendurá-lo num poste. — diz Godel, levantando a mão.

—Não tem escolha, Prof. Graham, represento poderes muito maiores e que significam muito mais que três velhos decrépitos, esquecidos num asilo, atocaiados, relembrando tempos de glória. E como vai o seu neto?

—Podemos estar esquecidos, — disse Graham, ignorando a última pergunta. — mas isso nos serve de uma forma que você não poderia sequer imaginar. E você vir aqui apenas nos dá a certeza disso. Você poderia ter mandado algum serviçal, mas veio em pessoa. Por quê? Com medo que Godel transtorne algum assistente seu num cachorro?

Mycroft solta uma risadinha.

—Eles realmente não estariam preparados...

—Exatamente. Ainda mordemos. Por outro lado, você perdeu algo importante. Algo... Perigoso. Não teria nada a ver com o misterioso preso em Pentonville sobre o qual Sherlock tem falado tão animadamente, não é mesmo? Você o perdeu?

—Ele está corando... — murmura Godel.

Mycroft ficou em silêncio alguns instantes, estudando o lugar. Brincava com o cabo do guarda-chuva, meditando no que fazer. Daí voltou a sorrir.

—Levarei a garota.

Violet soltou a xícara de chá, congelando. Hombach engasgou com a fumaça de seu cachimbo.

—Você bebeu?

—Não podem ir contra uma ordem minha. Tenho o apoio da Coroa. A menos que queiram brincar de detetive... Numa prisão federal.

Graham sorriu. Olhou rapidamente para Hombach, e os dois trocaram um olhar cúmplice.

—Não, meu amigo, ele percebeu... Ela é um perigo. Tudo bem. — ele caminha pela sala, indo até detrás do sofá de três lugares, costurado em couro legítimo. — Vamos fazer o seguinte. — ele retorna a seu posto anterior, detrás da mesa. Coloca um urso de pelúcia rosa, com laço verde, sobre a mesa. — Vamos brincar de deduções. Eu contra você. Quem fizer mais deduções fica com Violet. Se evoluíste tanto quanto dizes não há por que temer um velho decrépito e atocaiado como eu.

Silêncio na sala. Parecia que todos haviam segurado a respiração.

Godel e Hombach observavam ora Graham, ora Mycroft. Pareciam em choque.

O Holmes mais velho observou o urso, daí olhou para o Prof. Graham, que esboçava um sorriso vitorioso. Eles se encararam algum tempo, estudando cuidadosamente um ao outro.

—Não vou me curvar a isso. — Mycroft vira as costas, indo até a porta. Daí para, e encara Violet. — Espero que você não esteja alimentando falsas expectativas para com meu irmão. Quando o caso acabar, também acabará o interesse dele.

—Não estou procurando um namorado, estou procurando um meio de continuar viva.

Mycroft faz cenho zombeteiro.

—Adorei seu novo corte. Mande meus sinceros elogios ao cabeleireiro.

—Vá se ferrar. — rosnou Violet.

—Uhu... — cantarola Godel. — Cadê o seu suéter?

Mycroft bufa de raiva, daí fecha a porta atrás de si com força. Seus passos são ouvidos desde a sala.

Os senhores se entreolham. Arregalam os olhos. E caem na risada.

—Você tinha de citar o suéter, não mesmo, Godel?

—Minha querida, — Graham se senta no sofá grande, de frente para Violet. — gostaria de lhe dar os parabéns. É a primeira pessoa a mandar Mycroft Holmes ir se ferrar.

Hombach volta a fumar seu cachimbo.

—Ele não faria isso nem se quisesse.

—Com certeza, aposto como ainda é virgem.

—Você está bem, lieber?

Violet baixou a cabeça, juntando as mãos sobre o colo. Abriu um sorriso forçado.

—Desde quando sua mão está tremendo assim? — pergunta Graham.

—Não sei.

—Isso não é químico... — murmura Godel. Os três trocam olhares, como que conversando sem palavras. Hombach vai para o quarto, recarregando sua arma.

—Vou atirar.

—Vou ajudar. — completa Godel, acompanhando-o. Graham e Violet ficam sozinhos na sala.

Violet não se sentiu à vontade. Após observar por um certo tempo aqueles senhores, percebeu o quão inteligentes eram. Talvez geniais. Do mesmo naipe que Sherlock. Talvez de um naipe maior devido à idade. E naquele momento, sendo observada pelo Prof. Graham, ela quase podia senti-lo observá-la e deduzi-la, descobrindo coisas a seu respeito e tirando conclusões. E ela não se esqueceu do fato de que o irmão mais velho, e talvez mais esperto, de Sherlock, evitara um confronto mental com aquele senhor. Com certeza ela estava diante de um quase Einstein.

—Algumas pessoas dizem que me pareço com ele. — disse Graham, tirando-a de seus pensamentos. — Mas acho que se eu pentear o cabelo a semelhança desaparece.

O queixo dela caiu. Ele acompanhara seus pensamentos.

—Eu... Não sei.

—Acompanhar pensamentos aleatórios tende a ser uma atividade superestimada. Você notou que éramos velhos e sábios, observou-nos conversar, viu que Mycroft, alguém visivelmente superior intelectualmente, sentiu-se acuado por nós, e Einstein é sempre um ponto de referência para pessoas inteligentes. — ele deu de ombros, sorrindo. — Vê? Não é tão difícil.

—Quando explica assim não parece mesmo.

—Também não é difícil saber que está desmoronando, querida. — o sorriso dele se desfez, e no lugar veio uma expressão preocupada. — Não vou perguntar se já tentou cometer suicídio, mas vejo que você já deu sinais de que não está em seu perfeito equilíbrio emocional. Não a culpo, ninguém estaria equilibrado no seu lugar. Mas pessoas levadas ao extremo tendem a tomar decisões extremas.

Ela sacode a cabeça negativamente.

—Não vou fazer nenhuma besteira, eu já disse isso...

—Ao Sherlock, eu sei. Mas se quer saber, ele não acreditou em você. Por que acha que ele seguiu cada passo seu?

—Para pegar o assassino, é claro.

Graham se recosta em seu sofá.

—Sherlock pode agir em vários fronts de batalha ao mesmo tempo. Não duvido que já saiba quem é o assassino, e que o pegue, muito em breve. Mas ao mesmo tempo ele está tomando precauções para não perdê-la.

—Ele não se importa com isso.

—Sua própria mente está lhe dando provas contra sua afirmação. Ele ficou com você ontem à noite, não ficou? — Violet mordeu a língua. Aquele senhor sabia até demais. Será que Sherlock havia contado? Graham riu. — O quê? O Homem de Gelo admitir que fez algo tão gentil com uma cliente? Ele nunca faria isso.

Ela abre a boca, ainda indecisa quanto ao que dizer.

—Estou perdida.

—Eu sei. E espero que se encontre. Apenas... Aguente firme. E não faça nenhuma besteira.

Ela assente com a cabeça. Daí olha em volta.

—Por que não estou ouvindo tiros?

—Por que Godel e Hombach estão ouvindo a conversa de detrás da porta.

A porta se abre. Sherlock.

—Ah... — ele sorri, observando a sala. — Sessão de terapia?

—Está bem humorado, — comenta Graham. — quem morreu?

—Thadeus Lieberman. — ele diz, seus olhos brilhando de contentamento. — E você não vai adivinhar o estado do corpo...

—Mais uma vítima do seu amigo?

—Não. — ele parecia uma criança com um segredo. — Melhor.

—Esse é o homem que nos atacou no cemitério? — Violet pergunta.

Sherlock sequer a olha. Continua falando com Graham.

—Pedi que um conhecido delatasse o corpo à polícia. Não quero que saibam ainda onde estou, tenho muitas coisas à fazer antes disso.

Violet respira fundo, nervosa.

—Oh, não se preocupe comigo, finja que não estou aqui. — ela se levanta, mas é acometida de outra tonteira. Ela ia se apoiar no sofá, mas Sherlock a ampara. Ela o encara, ainda com raiva, e o afasta com um tapa em seu ombro. Sai andando, apoiando-se na parede, e entra no quarto que antes dormia, ignorando que Hombach e Godel ainda estavam lá atrás da porta. Aliás, fecha a porta, e faz isso com força.

Graham junta as mãos, olhando para Sherlock.

—Minha sala. Agora.

Graham se levanta, e os dois entram na pequena sala cheia de livros, oposta ao quarto vazio, e o professor fecha a porta.

—Sei o que pretende.

—O que quer dizer?

—Que sei o que está fazendo, está planejando tratar a moça mal para de alguma forma apagar o quanto foi atencioso na última noite, faz isso por que se sente inseguro, um sentimento presente em você com os cumprimentos do Homem-Suéter, mas não é certo, não é apropriado, e principalmente não está de acordo com o que você realmente quer fazer.

Sherlock olha para um dos livros da estante.

—Ainda chamam Mycroft de Homem-Suéter?

—Preste atenção e pare com isso, você não tem que afastar qualquer coisa boa que aparece na sua vida.

—Desculpe, quando me inscrevi nesta agência de encontros?

Graham respira fundo.

—Todos nós precisamos de apoio. Hombach teve uma esposa fantástica, Godel teve várias, e eu... Eu não tive ninguém.

—Está vendo?

—E me arrependo. Gastei toda uma vida estudando e resolvendo a vida dos outros, e não tive tempo de estudar e resolver a minha. Eu joguei, e você pode dizer que venci, mas perdi, por que apesar de obter sucesso acadêmico não obtive aquela centelha preciosa, aquela pequena e estúpida faísca, a felicidade. — o professor fez  seu cenho melancólico. — Eu não fui feliz.

—Felicidade é irrelevante.

—Talvez para um jovem detetive, cheio de vida e energia, preocupado demais com cálculos, cuja mente e aparência fresca e misteriosa o façam ser sempre o centro das atenções. E achar que não precisa de ninguém quando todos estão aos seus pés. Mas a noite chega, e quem permanece com você quando volta para casa? Olhe para seu irmão. O único relacionamento estável que já teve foi com a esteira ergométrica!

—Professor, Mycroft não serve como padrão. — diz Sherlock, irônico.

—Nenhum de nós serve. — Graham levanta os ombros. — Aqui somos todos loucos. Diferentes, excêntricos, excluídos, invejados, odiados, perdidos. E daí? Estamos condenados? Temos de vaguear pelo mundo sozinhos? O ostracismo é nossa sina? Somos evoluídos o suficiente para desafiar estereótipos, não viver de acordo com eles. Eu fui solitário. Mas você pode não ser.

Sherlock baixa o olhar.

—Mas... Eu não sei...

—Pergunte. Não é tão difícil. Pergunte a ela. Claro que não agora, não neste momento em que há um assassino à solta e atrás dela. Cuide do assassino primeiro. Mas quando tudo isso terminar, vai deixar ela ir embora? Oh, criança, não faça isso. Não me perdoaria se, além de seguir meus ensinos, você optasse por seguir minhas decisões, apesar que de uma forma mais sofisticada.

—Professor, eu não fui feito para isso. — ele disse em voz baixa.

—Você não foi feito. Você fez a si mesmo. E como seu próprio Projetista, pode perfeitamente alterar o projeto, se isso significar uma melhora.

—Não posso...

—Deixe acontecer. Algo natural. Peça alguns conselhos a Hombach, ele teve um sucesso tremendo em sua vida.

—E ele perdeu o que lhe era mais importante.

—Mas ele teve. Mesmo que por menos tempo que merecia. E nós? O que temos?

—De que adianta ter algo e depois ter isso arrancado?

—Você pode lutar. E se orgulhar de ter feito o que tinha de fazer, mesmo se perder. Sem arrependimentos. Você vai conseguir. É meu maior achado. Melhor do que eu, melhor do que todos nós. Faça-me orgulhoso.

Sherlock ergue a cabeça, fingindo confusão.

—Fala do caso ou da testemunha?

—Ambos. Ferre o desgraçado, fique com a mocinha e cavalgue em direção ao pôr do sol.

—Eu não tenho cavalo.

—Vá se danar, Sherlock. A propósito, quem matou o mendigo?

Sherlock sorriu. Mais uma vez era uma criança com um segredo.

***

A Sra. Hudson estava estática. Aquela madrugada havia sido uma das mais estranhas de sua vida. Primeiro perdera o sono. Depois recebera a visita de um assassino, como o próprio admitira. Muito educado e gentil, sim, mas ainda assim um assassino. Daí ele ouviu algo. Daí ele sumiu na escuridão do corredor. Daí ela ficou esperando. Daí um homem desconhecido surgiu, arma em punho, roupas puídas e cheiro repulsivo.

—Onde está o detetive? — o homem perguntou, deixando à mostra seus dentes podres.

—Eu... Eu não sei. — ela gaguejava, olhando fixamente para a arma. — Ele sempre sai. Nunca me avisa, eu não sei.

—Quem é você?

—Sou só a moradora de baixo... Eu não sei onde ele está.

O homem sorriu, e começou a andar. A Sra. Hudson começou a retroceder, pois o homem vinha em sua direção. Ele levantou a arma, ainda sorrindo.

—Quero que dê um recado a ele... Melhor, acho que vou escrever o recado em você.

Ela engoliu em seco. Tentou alcançar uma frigideira que secava no escorredor. Ele esticou a mão para segurá-la, mas antes que fizesse isso, Benjamin surgiu atrás dele, apontando-lhe um revólver na nuca. A Sra. Hudson enfiou a mão no bolso discretamente. Sua arma não estava lá.

—Sente-se. — ordenou Benjamin, seco.

—Ou o quê? — o homem desafiou. Benjamin franziu o nariz, daí deu um golpe detrás do joelho do homem, que caiu sentado na cadeira ao lado da mesa. A Sra. Hudson se afastou, levando a mão ao peito.

—A senhora está bem?

—Sim... Sim... — ela se abanava, tentando se acalmar. — Cuide dele, sim?

Benjamin se volta para o homem.

—Quem é você?

O homem cuspiu nele. Ele se afastou antes de ser atingido pela saliva, suspirou profundamente e caminhou para detrás do homem. Daí, sem aviso, fincou à plena força uma chave de fenda na têmpora direita do homem, fazendo a Sra. Hudson levar as mãos à boca, segurando um grito.

O homem deixou a cabeça cair levemente para o lado. Seus olhos e pálpebras saltavam, e todo o seu rosto parecia entrar em pane. Seu corpo não se movia.

Benjamin puxou uma cadeira, sentando-se em frente a ele.

—Agora, qual o seu nome?

—Thadeus... — ele falava com uma voz gutural, travada. — Lieberman.

—O que quer aqui?

—Matar... o detetive... Matar...

—Quem te mandou fazer isso?

—Ele... Ele... Ele...

Benjamin olhou para a Sra. Hudson, pensativo. Daí voltou-se para o moribundo.

—Desculpe por isso, Thadeus, se tivesse decidido cooperar estaria em bem melhor estado. Agora, quem está por trás disso?

—Ele... Ele...

—O que ele quer?

—Ela... Ele... Ela... Ela...

—Fala da moça ruiva?

—Vadia... Vadia...

—Quem é ele? Diga-me quem é ele.

—Eles...

—Como?

—Eles... Eles... — ele começou a falar com voz mais aguda. — Eles... Eles...

Benjamin revira os olhos. Levanta-se, e arranca a chave de fenda. No mesmo instante o homem cai no chão. Morto.

Ele observa a chave de fenda ensanguentada nas mãos. Daí encara a Sra. Hudson, confuso.

—Eles?


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