Cachecol Azul e Cabelo Vermelho escrita por Lirah Avicus


Capítulo 13
Capítulo 13




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/584139/chapter/13

O dia era chuvoso. Nuvens negras cobriam o céu, e sons distantes de trovões balançavam a terra. Olhando pela janela, Mary achou aquilo quase cômico. E apropriado. Afinal, por que sempre chovia em funerais? Era um mistério insolúvel. Sempre nos filmes, séries, e livros que ela lia, o tempo ruim era uma constante nos enterros. Ou estava nublado a ponto do céu desabar ou então chovia aos baldes. Agora o mau tempo em dias fúnebres se estendia à vida real. Mary cruzou os braços, ainda olhando pela janela. Talvez a tristeza das pessoas próximas ao finado se estenda até os céus, e eles também queiram chorar.

Ela ouviu o violino. Virou-se na direção que vinha o som. Não era uma música conhecida, nem uma sinfonia abalizada. Parecia mais alguém desocupado, que estando sem nada melhor para fazer resolveu ficar arranhando o próprio violino.

A descrição perfeita para Sherlock.

Metido em seu roupão azul, descalço e descabelado, ele apareceu, proveniente de seu quarto, tocando notas aleatórias em seu instrumento de cordas. Ele passou por ela, parando de tocar por um instante e estudando-a da cabeça aos pés. Ela levou a mão ao queixo.

—Desistiu de mudar o visual, bonitão?

O sorriso dela era largo. E matreiro. Sherlock não correspondeu. Nem respondeu. Sem mudar a expressão séria, voltou a andar e a tocar seu violino.

—Sherlock, você não vai mesmo ao enterro?

A pergunta fora feita por John, que vinha da cozinha e arrumava a gola de seu casaco que insistia em não se entender com a gola de seu terno, deixando ambas amassadas e apontadas para o alto. Sherlock parou de tocar, encarando o amigo.

—Funerais são para família e amigos. Não me encaixo em nenhuma das duas categorias.

—Ótimo... — John murmurou, vendo Sherlock voltar a passear pelo apartamento tocando seu violino, daí caminhou até Mary, que usava um sóbrio vestido preto, um cardigan e uma echarpe também preta. — Pode arrumar para mim?

—Vire-se. — ela ordena, começando a ajeitar a gola. — Você devia ir, Sherlock, é uma demonstração de respeito para com a finada.

—Também vou ter que ir ao enterro de todos os outros desconhecidos que morrerem aqui em Londres? — ecoou da cozinha.

—Ela não era uma desconhecida para você.

—Deixe-o, Mary. — murmura John, impaciente. — Não há raciocínio que o demoverá de sua decisão. Conseguiu arrumar?

—Está lindo.

—Por que vocês vão? — diz Sherlock, parado na porta da cozinha. John suspirou.

—Por que eu a conheci, e me sinto na obrigação de dar meus sentimentos a... Seja lá quem estiver lá e for parente.

Sherlock volta-se para Mary.

—E você?

—Bem... — Mary levanta os ombros. — Eu não conheço a finada, mas conheço John, e ele é meu marido. Aonde ele for, eu vou atrás.

Sherlock revira os olhos.

—Que estúpido.

—Um dia você entenderá. — sorri Mary, numa piscadela.

—Espero que não.

—Não consigo ligar para ela! — reclama John, tirando o celular do ouvido. — Ela não atende!

—Ela quem? — pergunta Sherlock.

—Violet.

—Violet?

—Ela era muito amiga da doutora. — explica Mary, sentando-se no sofá e curvando-se levemente para ajeitar o sapato. — Achamos por bem que ela fosse, e seria melhor para ela que não fosse sozinha.

—Conversaram muito sobre ela na noite passada.

—Eu ia preferir que você perguntasse isso, — diz John. — e não, não conversamos na noite passada.

—Por que não?

—Por que eu passei a noite com você, Sherlock, e não com a minha mulher.

—Isso foi romântico. — murmura Mary. — Eu sabia que tinha um rival forte, mas agora a coisa ficou séria...

—Não tem graça. — rosna John, encarando a esposa.

—E por acaso vocês estão planejando me contar o que aconteceu ontem à noite?

Os dois amigos se entreolham, sem soltar palavra. Mary olha ora um, ora outro, com seus olhos inquiridores. No entanto, não obtém resultado. Sherlock vira as costas, voltando para a cozinha, e John o acompanha, pegando um copo e enchendo-o d’água. Tenta ligar para Violet novamente, sem sucesso. John guarda o celular no bolso e volta-se para Sherlock.

—Falou com Lestrade? — sussurrou. Mesmo em sussurros, sua voz continha toneladas de preocupação. Sherlock aquiesceu com a cabeça.

—Assim que você foi embora, sim.

—Sherlock, o que faremos?

—Muito bem, o táxi chegou. — anuncia Mary, olhando novamente pela janela. — Temos de ir, meu amor.

—Mas...

—Vocês podem cochichar pelos cantos outra hora. — Mary caminha até o marido. — E não podemos fazer nada quanto a Violet. Ela não atende o celular. Na verdade nem eu atenderia, não depois de ontem. Acho que no momento ela precisa de espaço, e de um pouquinho de solidão.

—Eu a levo.

John e Mary encaram Sherlock. A expressão dos dois era hilária.

—Como é?

—Eu sei onde ela mora, posso buscá-la e daí levo-a ao cemitério.

Mary cerrou os olhos.

—Mas você disse que não ia.

Sherlock levanta os ombros.

—Estou apenas fazendo um favor a bons amigos. Não tenho muitas coisas para fazer hoje, não vai me custar nada.

—Tudo bem. — John ainda estava descrente. — Então vai levá-la.

—Vou.

—E depois trazê-la.

—Certamente.

—E não vai aprontar nada neste meio tempo.

—Não planejei nada.

—Você não vai vestido assim, não é?

Sherlock solta um suspiro.

—Prometo vestir algo apropriado para a ocasião.

—Ora, ora... — Mary sorri. — O que te fez mudar de opinião?

—Não mudei nada. Ainda não quero ir.

O casal Watson se entreolha, daí ambos dão de ombros e encaram Sherlock.

—Então nós vamos. — diz Mary. — Nos vemos lá. Até mais, querido.

Eles descem as escadas, indo até o táxi na rua. Sherlock foi até a janela, puxando a cortina com cuidado e observou-os partirem, daí foi até seu quarto, vestiu-se como de costume e saiu, pegando o primeiro táxi que encontrou. Não observou as ruas enquanto o táxi se movimentava. Olhava para as próprias mãos sobre o colo, e pensava profundamente. Mais uma vez, era impossível saber no que ele pensava...

O celular vibra. Mensagem de texto.

Pescoço quebrado. Lacerações frontais indicando uma corda que foi posta ao redor da garganta da vítima. Enforcamento. Marcas pelo corpo indicando luta. Início de hemorragia abdominal causada por forte golpe. Morte por asfixia. Abraços, Molly.

Sherlock leu e releu algumas vezes a mensagem, daí guardou o celular.

O táxi parou, e Sherlock desceu. Não era uma caminhada longa entre seu apartamento e a casa de Violet Hunter, mas ele simplesmente não queria andar. Encarou a casinha pequena e apertada, no meio de outras casinhas pequenas e apertadas, foi até a porta e tocou a campainha. Esperou. Tocou novamente. Esperou. Nada.

Sherlock nunca respeitou portas. Nunca respeitou trancas ou cadeados. Não respeitava nem mesmo a senha do notebook de John Watson. Assim, quando ele tocou duas vezes e ninguém atendeu, ele segurou a maçaneta, firmou a mão na madeira da porta e, com o joelho, forçou a porta a abrir num estalo. Adentrou na casa, observando-a pela primeira vez. Já havia passado por ali e visto a casa pelo lado de fora, mas ele nunca entrara. Viu alguns quadros com fotos antigas na parede, poucos enfeites, teto sem mofo e nada de tapetes.

—Violet? — chamou. Sem resposta. Sherlock já estava com os dentes trincados. Ele continuou andando, encontrando Violet sentada em frente a uma mesa, na sala, de costas, fazendo sabe-se lá o quê. Sherlock se aproximou, colocando a mão em seu ombro. — Violet...

Ela gritou, batendo na mão dele e desabando da cadeira, caindo no chão. O celular caíra também, desconectando-se do fone de ouvido e começando a ressoar música por toda a sala. Ela se levantou rapidamente, ajeitando sua blusa de lã surrada, pegando o celular e desligando-o.

—Meu Deus, desculpe... Ai... Você me assustou!

—Toquei a campainha duas vezes.

—Eu não escutei... — ela nota os olhos escrutinadores de Sherlock, e abraça o próprio corpo. — Mas isso não te dá o direito de arrombar a minha porta!

—Preciso me certificar de que você não vai tentar se matar de novo.

—Eu não ia me matar, eu só estava... Escrevendo. Não sou uma suicida em potencial, aquilo foi um momento de fraqueza... — ela balança a cabeça, irritada. — O que faz aqui?

—Sabe que o funeral da Dra. Handler é hoje?

Ela baixa a cabeça, olhando os próprios pés.

—Sim, eu sei.

—Pretende ir?

—Bom, eu não sei... Acho que...

—Excelente, — ele disse abruptamente. — você tem dez minutos para se arrumar, eu espero aqui.

—Como é?

—Você vai comigo. Eu não tinha planos de ir, mas como John e Mary não conseguiram entrar em contato com você eu me ofereci para levá-la. — ele olha para a mesa onde antes Violet escrevia. — De qualquer forma não quero ir sozinho...

—Espera aí, eu não vou...

—Ah, você vai sim. — ele a encara. — E eu posso te forçar... — ele diz num rosnado baixo, que Violet sentiu vibrar por todo o seu corpo. Os olhos dele pareciam cor de âmbar agora, e estavam fixos nela. — Agora são nove minutos, Violet.

—Tudo bem. — ela tem um sobressalto, como que despertando daqueles olhos hipnóticos, e sai andando, subindo as escadas. — Espere aí.

Ela chegou ao andar de cima, e quis levar a mão à boca para impedir que seu coração saltasse para fora. Foi até seu quarto, fechando a porta e controlando a respiração.

—O que foi aquilo? — suspirou, pousando a mão sobre o peito. Ela nunca sentira aquilo. Era como se ela tivesse sido atingida por um carro. Suas mãos tremiam, suas pernas tremiam, seu corpo tremia e seu estômago congelara, com borboletas furiosas se debatendo dentro dele. Por algum motivo, aquele olhar e a voz de Sherlock a tinham feito se derreter a ponto de caber inteira dentro de um copinho. Pensamentos nada saudáveis passaram por sua cabeça, tais sendo nem um pouco castos, e ela sentiu-se esquentar. Violet fechou os olhos. Nem mesmo Quentin, no início do relacionamento e no ápice do amor, chegara sequer perto do que aquele detetive fizera. E ele fizera isso sem nem mesmo a tocar...

Ela respirou fundo. Tinha de se recompor. Caminhou até seu guarda-roupa, abrindo-o e observando todas as roupas penduradas em cabides. Seu coração afundou. Que roupa escolheria? Não podia ser qualquer uma. Ela começou a arrastar roupas para lá e para cá. Jogou várias delas sobre a cama. Tinha que ser a roupa perfeita. Estupidez adolescente, com certeza, mas isso não vinha ao caso. Acabou por achar um vestido preto, que ia até os joelhos, de gola branca, que atenderia ao que ela precisava. Vestiu-o, tendo problemas com o zíper, pois suas mãos não paravam de tremer, indo em seguida até o espelho da penteadeira, com o objetivo de arrumar o cabelo. Soltou as madeixas, que caíram macias sobre seus ombros, mas quando se olhou no espelho soltou um grito.

Violet caiu para trás, tropeçando numa pantufa que por lá se encontrava, desabando no chão e batendo as costas no madeiramento da cama. Ela tentou puxar o ar para si, e sentiu sua consciência falhar por um segundo.

A porta se abriu num estrondo, e ela viu um vulto escuro entrar em seu quarto. Este foi até ela, tomando-a nos braços e levantando-a do chão com uma facilidade anormal, e, ao recuperar por completo sua consciência, Violet se viu suspensa nos braços de Sherlock, agarrada em seu pescoço como um macaquinho. Ela afundou o rosto no pescoço dele, sentindo seus olhos se molharem. Não queria mais ver aquilo que tanto a aterrorizara.

Sherlock ouvira o grito. Subira como um raio escada acima, e ao entrar no quarto e ver o que nele havia, seu instinto mais primário o levou a tomar Violet para si e mantê-la consigo, protegida do perigo. Agora, tendo ela em seus braços, sua mente voltara a trabalhar normalmente, e seus olhos pousavam sobre a prova de que o seu mais novo amiguinho tivera uma noite cheia, assim como ele mesmo.

No quarto havia uma cama, um guarda-roupa, uma penteadeira, roupas jogadas sobre a cama e um escrito na parede, possivelmente pintado em sangue:

Onde você está?

—Olá, amigo... — ele sussurrou quase inaudivelmente. Sorriu vitoriosamente. — Chateado comigo? — Ele saiu do quarto, levando Violet até a cozinha, sentando-a numa cadeira e dando-lhe água. Ela não conseguia nem mesmo segurar o copo. Ele terminou de dar-lhe água, colocou o copo sobre a mesa e segurou o rosto dela com as duas mãos, forçando-a a encará-lo. Ela não ofereceu resistência, mas ainda respirava como se tivesse um gato preso à garganta. — Fique calma. — ele disse. — Respire. Não foi nada, ele só queria te assustar, está tudo bem.

—Ele veio aqui... — ela disse, levando uma das mãos ao rosto.

—Sim. E isso foi um erro. — ele se afasta dela, olhando ao redor, indo até o guarda-pó, pegando um casaco e levando-o até ela. — Vamos. São 17 minutos de táxi até Brompton.

***

—Ela amava vir aqui. — disse a moça de feições asiáticas e tristes. John segurava a mão de Mary, e tentava parecer o mais compassivo possível. A moça continuou. — Nas raras vezes em que o sol aparecia, e estávamos de folga, ela sempre me ligava. “Ei, Sookie, vamos nos bronzear?” ela dizia.

—Parecia uma senhora muito animada. — diz Mary.

—Ela era sim. — a moça, Sookie, baixou o olhar, colocando as mãos no bolso. — Pelo menos agora ela ficará sempre aqui. — Daí em diante não falou mais nada.

O clima estava assim. Calmo, porém melancólico. Poucas pessoas haviam entrado pelo portão do Cemitério Brompton naquela manhã nevoenta, e menos ainda chegaram depois. John havia sido um os primeiros a chegar, junto a Mary, e agora se ocupava em se apresentar aos outros que ali estavam. Todos amigos da Dra. Lisa Handler. Nenhum parente. Logo outro conhecido, um homem alto e bem aparentado, aproximou-se de John.

—Olá. — disse amigavelmente, cumprimentando-o e em seguida cumprimentando Mary. — São amigos da Lisa?

—Bem, sim, eu a conheci há uma semana, mas decidi vir em respeito a ela. — John passa o braço pelo ombro da esposa. — Era uma pessoa muito especial.

—Ela era sim. — o homem sorriu tristemente.

—E você?

—Trabalhava com ela.

—Você é médico? — pergunta Mary.

—Pediatra. Conheci Lisa quando tive de tratar de um paciente que quebrara a perna. Nunca vi um garotinho tão nervoso, ele gritava e esperneava, e não havia quem o acalmasse, nem mesmo os pais conseguiam. Mas daí Lisa surgiu, com aquele sorriso lindo, e ela sim, conseguiu acalmar o menino, deixando que eu fizesse o curativo. — ele suspirou profundamente. — Ela era... Como uma mãe para nós.

O homem engasgara. Com certeza queria chorar. John não estendeu a conversa, optando por abrir um sorriso terno e por ficar calado. Por algum motivo que ele não entendia, uma aura soturna rondava o cemitério, e mesmo que ele sempre sentisse isso quando ia a cemitérios, não gostava e nem se acostumara a ter essa sensação. Lembrou-se de quando viera ao funeral de Sherlock... John limpou a garganta. Mesmo tendo recebido o amigo de volta, ele ainda sentia um nó na garganta ao lembrar daqueles dias horríveis. O ataque de Moriarty. Sherlock apontado como fraude. A perseguição por parte da polícia. St. Barts. O salto...

Um homem posta-se ao lado de John.

—Gregory? — John se espanta. — O que faz aqui?

—Eu a conheci. — disse o inspetor. — Não tinha nada melhor para fazer e sinceramente não teria paz se não viesse. Como vai, Sra. Watson?

—Olá, inspetor.

Lestrade olhava ao redor, observando as campas e lápides.

—Não imagino por que as pessoas gostam de passear aqui. É meio... Tétrico.

—Tem sol aqui... — diz John. — De vez em quando.

—Mas descansar sobre... O lugar de descanso eterno. — Lestrade meteu as mãos nos bolsos. — Não conseguiria fazer isso, nem mesmo pago. Aquele é o Sherlock?

John olha na mesma direção, avistando Sherlock e Violet surgirem no caminho de cimento e passarem para a grama.

—Sim, é o próprio.

—Nem em um milhão de anos achei que ele viria. — Lestrade estava espantado. — Ele não foi nem no próprio enterro.

—Tenho a impressão de que ele foi sim. — diz John. — Mas ficou escondido atrás de alguma árvore.

—Eu acho que ele andou vendo muitos filmes de espião. — comenta Mary.

—Eu acho que ele andou lendo muito Tom Sawyer. — comenta Lestrade.

—Eu acho que ele devia andar se importando com os outros. — comenta John, emburrando.

—Mas... A Srta. Hunter está com ele... — Greg vira-se para John. — Os dois estão...

—Eu pedi que ele fosse buscá-la. — disse John, rapidamente.

—Ah, sim.

—Mas nunca se sabe. — diz Mary, num sorrisinho. E ela ainda sorria quando Sherlock e Violet se juntaram a eles. Sherlock posta-se ao lado de John, e é o primeiro a falar.

—Divertindo-se?

—Pergunta idiota. — rosna John.

O padre surge de dentro da igrejinha, caminhando pela grama e se aproximando do buraco aberto para o caixão. Todos se aproximam, formando um círculo ao redor da cova.

O Cemitério Brompton era um dos Sete Magníficos, termo informal dado aos sete grandes cemitérios de Londres, construídos entre 1832 e 1841. Era bem arborizado e vasto, reaberto após 40 anos para novos enterros. Por vezes era possível encontrar raposas e esquilos correndo livremente entre as lápides.

Árvores balançavam ao sabor do vento. Pássaros cantavam quando o padre abriu seu livreto e começou a falar.

—Amigos e amigas...

A voz do padre era grave e baixa. O próprio padre era baixo e velho. As nuvens estavam baixas e escuras. Os ânimos das pessoas estavam baixos e tristes.

Violet observava o caixão fechado. Não conseguia se livrar da visão de sua querida amiga inerte e sem vida. Ela abraçou o próprio corpo, algo que sempre fazia quando se sentia só. Violet olhou para cima, admirando o céu nublado. Viu alguns pássaros voavam em círculos sobre ela. Em seus olhos verdes refletiram-se as aves negras, e as nuvens pareceram se movimentar mais rápido. Imaginou-se junto a eles, ou melhor, indo para longe. Imaginou como seria bom voar.

Alguém a cutucou. Enquanto isso o padre ainda falava.

—Lisa Handler era uma mulher bela, madura e decidida. Ela dedicou a vida a ajudar o próximo.

—Você quer ser minha amiga? — disse a garotinha de olhos negros, vestido preto e cabelo preso e separado numa Maria-chiquinha.

Violet se abaixou para poder encará-la, dobrando os joelhos.

—Oi, linda... — ela murmurou. — Onde está sua mãe?

—Está do outro lado. — disse a menina, alto o suficiente para que alguns mirassem olhos repreensivos para as duas.

—Fale baixo, querida. — Violet disse num sorriso. — Não queremos atrapalhar o enterro, não é? — a menina fez que não. — Ótimo. Por que não fica aqui e depois eu te levo até sua mãe?

A menina fez que sim, colocando-se ao lado dela. Violet voltou a olhar para o padre, forçando-se a não olhar para o lado, para o rosto de Sherlock. A cada vez que ela o olhava, sua vontade aumentava de permanecer olhando. Ela não suportou mais esta vontade, olhando para o lado oposto e vendo a menina ao longe, entrando num caminho apertado cheio de árvores e vazio de pessoas. Ela foi atrás dela, esperando voltar antes de colocarem o caixão debaixo da terra. Caminhou para dentro das árvores, procurando aquela menina levada, e planejando levá-la direto para a mãe. Torceu para que a mãe da menina lhe desse uma bronca.

As árvores eram frondosas e verdes. O chão era coberto de musgo. O canto dos pássaros era mais próximo. Ela caminhou algum tempo, procurando pela menina, até chegar a um prédio de dois andares, porém muito longo. Provavelmente era onde se faziam os velórios. A porta estava aberta, assim Violet foi até a leva de escada, parando no primeiro degrau. Pensou se seria uma boa ideia entrar. Talvez não fosse.

Ela subiu as escadas. Sabia que não devia, mas subiu. Engraçado como sempre teimamos em fazer algo que sabemos que vai nos fazer mal, nos machucar ou nos matar. Simplesmente continuamos andando, olhando ou subindo as escadas. Violet subiu as escadas, entrando naquele prédio. Viu-se num longo corredor, pisando sobre um chão frio de mármore escuro e tendo diante de si uma infinidade de portas e paredes brancas. Quis sair dali. Quis ir embora. Mas não foi. Pensou na menina e continuou andando, torcendo para que a menina não quisesse pregar-lhe nenhum susto. Ao passar pela primeira porta ela pôde ter certeza de que era lá que se faziam velórios. Salas amplas com mesas grandes e vasos vazios mostravam que várias famílias já haviam passado por lá para se despedirem de seus entes queridos falecidos. Ela andava pelo corredor, ouvindo seus próprios passos ecoarem pelas paredes, e acabou por abraçar de novo o próprio corpo. Não era a mesma coisa. Não esquentava, e tampouco confortava ou protegia. Violet sentiu falta de abraçar outra pessoa.

Ela olhava sala por sala, procurando aquela menina. Ficava com cada vez menos preocupação e cada vez mais raiva. Maldita menina...

O medo também crescia. Sozinha naquele prédio, isolada de todos, podia muito bem ser vítima de algum maluco. Sentiu-se num filme de terror. E nos filmes de terror a moça que anda sozinha quase nunca sobrevive.

—Oh Deus, por favor... — ela gemeu. — Não me deixe morrer... Não num cemitério...

Ela olhou dentro de outra sala. Nada da menina. Desistiu. Resolveu voltar para o funeral. Voltar para a segurança. Voltar para...

Violet congelou. Não conseguia se mexer. Seu coração quis parar também, devido ao pânico imóvel que a possuiu. Não conseguia respirar, nem gritar, nem nada que pudesse tirá-la daquele estado de imobilidade total. Não conseguia pensar. Nem chorar. Ela só conseguia olhar.

À sua frente, alguns metros à frente, parado no meio do corredor, estava um homem. Ele era alto, branco, cabelo preto. Vestia uma jaqueta e uma calça preta. Não tinha nada demais. Violet não conhecia seu rosto. Mas ela sabia...

Era ele.

Ela quis falar. Ou melhor, gritar. Mas ela sabia que a voz não sairia. O homem não se mexeu. Parecia esperar pela reação dela.

Violet não estava perto de nenhuma porta. Estava entre duas delas. Ela se amaldiçoou por ter entrado naquele prédio. Sentiu-se um coelhinho estático em frente a dois faróis de carro.

O homem ainda não se movia. Olhava diretamente para ela. Parecia saber que ela não ia escapar.

Violet sentiu seu corpo amolecer. Temeu desmaiar. Não podia desmaiar. Se ela desmaiasse, morreria.

“Sherlock...” ecoou em sua mente.

Ela não pensou. Virou-se como um raio, suas pernas dobrando-se e esticando-se na direção da porta mais próxima. Violet mal respirava, ansiosa por chegar até a porta e sentindo como se estivesse cada vez mais longe dela. Parecia que ela corria em câmera lenta. Como num pesadelo, ela pôde sentir o assassino também se mover, correndo atrás dela, o calor dele em suas costas. Estava prestes a pegá-la.

Violet agarrou-se na moldura da porta, virando bruscamente e escorregando para dentro da sala, empurrando a porta e batendo-a com força, trancando-a. O assassino chocou-se contra a porta trancada, e fez isso com tanta força que atirou Violet no chão. Ela caiu, erguendo-se em seguida como podia e arrastando-se para longe da porta, que agora era atacada furiosamente em meio a rosnados de ódio. Ela se apoiou numa mesa grande, colocou-se de pé e olhou em volta, procurando uma saída. Sua cabeça latejava, sua consciência falhava vez por outra, e ela sentia a adrenalina correr louca por suas veias. Não havia outra porta.

A porta sacudiu. Lascas voaram dela. O assassino estava decidido a derrubá-la.

Violet foi até a janela, abrindo-a ao máximo, o que não foi muito, pois estava enferrujada. Ela não pensou. Enfiou-se pela fresta que a janela liberara, puxando-se para fora do prédio. A fresta era apertada, rasgando seu vestido e pele, mas seu instinto de sobrevivência era mais forte que a dor. Ela continuou a passar janela afora, e quando estava com meio corpo livre, o barulho na porta cessou...

O assassino saíra de lá.

Ela soltou um gemido de desespero, tentando ir mais rápido. Ele iria acabar por pegá-la facilmente, presa naquela maldita janela. O tronco dela foi puxado pela gravidade, e ela pendeu de cabeça para baixo, enquanto suas pernas permaneciam para dentro da sala. Violet começou a chorar, encarando a parede e tentando virar a cabeça, procurando sinais do assassino. Ele ia pegá-la.

Não, não ia.

Num último grito, Violet fincou as mãos na parede, empurrando o corpo, passando-se por completo e desabando no cascalho do lado de fora do prédio. Ela se levantou cambaleante, vendo apenas vultos. Podiam ser árvores. Um deles se moveu, e ela disparou na direção contrária, atravessando as árvores e se arranhando entre os galhos. Ela colocou as mãos à frente do rosto, sem ver aonde ia. Será que pegara o caminho errado? De repente as árvores acabaram, e ela reconheceu aquela passagem, atravessando correndo o estreito caminho de cimento e avistando as pessoas no funeral. Suas pernas falharam, e ela se sentiu cair ao mesmo tempo em que corria. Seus pulmões se encheram de ar, e ela gritou com todas as forças.

—Sherlock!

Normalmente o que precisamos não acontece. Não quando precisamos. Sempre que sentimos falta de algo, ou nos desesperamos por algo, aquilo nunca vem até nós, e ficamos sozinhos, chorando ou simplesmente melancólicos, inconformados com a realidade da vida.

Violet achou que isso aconteceria. Que ela cairia e seria atacada e morta.

Mas ela não caiu. Ela não viu nada. Mas quando sentiu-se pega no ar, e braços fortes a abraçaram, ela não resistiu. Lançou-se naquele abraço, largando completamente o corpo e vendo-se no meio que um casaco azul escuro e quente. Ela se agarrou à camisa dele, chorando como uma criança.

—John! — ela ouviu ao longe.

—Todos saiam daqui! Agora!

—Sherlock, o que aconteceu?

—É ele.

—Ele está aqui?!

—Violet... — era a voz de John. — Ela está ferida?

—Vou chamar reforços.

—Pegue um revólver.

—Fique aqui com ela. Viu ele?

—Ele ainda deve estar por aqui.

—John, vá por ali, eu vou por aqui. Sherlock, pode ficar sozinho?

—Vão!

Violet ouvia todas as vozes, mas não as reconhecia. Não discernia quem estava falando, ou por quê. Ela apenas fechara os olhos, respirando pesadamente, enredada naquele casaco e no dono dele.

Sherlock se movera. Retrocedera alguns passos, com Violet ainda agarrada em sua camisa. Ela virou a cabeça, querendo ver o que acontecia ao seu redor, e viu que ele estava armado. Ele apontava ora para um lado, ora para outro. Violet não entendeu esse comportamento. Não havia nada em lugar nenhum. Será que ele sabia onde estava o assassino?

Ele passou o braço ao redor da cintura dela, caminhando por entre as árvores. Olhava ao redor como um cão de caça treinado, farejando atrás de sua presa. Se ele via alguma coisa, Violet não sabia. O que ela sabia era que ela mesma não estava vendo nada. Só verde.

Tiros ecoaram. Tais assustaram os pássaros.

—Lestrade e John atiraram... — Sherlock murmurava consigo mesmo. — Mas eles não estão no mesmo lugar...

—O quê?

Antes que Violet recebesse uma resposta, um homem saltou sobre os dois, derrubando-os e fazendo a arma de Sherlock cair alguns metros à frente. O atacante tinha um porrete de madeira nas mãos. Ele desceu-o sobre Violet, mas Sherlock passou o corpo por cima dela, recebendo o golpe, impedindo um gemido e segurando o objeto, arrancando-o das mãos do homem e jogando-o longe. O homem agarrou Violet pelas pernas, que gritou, arrastando-a pela grama. Sherlock avançou sobre o homem, os dois se atracando, como gatos. O homem era imenso, lembrava um guarda-roupa, mas Sherlock era mais bem treinado. Atingiu alguns golpes doloridos no atacante, inclusive um gancho que o fez cambalear para trás. Violet engatinhou para longe daquela briga, vendo ao longe John cair no chão como se tivesse sido atingido por alguém. Ela não entendeu. Havia mais de um?

John se ergueu, avistando Violet e Sherlock entre as árvores. Seu atacante correu para cima dele, mas ele rolou o corpo para o lado, pondo-se de pé rapidamente, desviando-se de outro soco e passando o braço pelo pescoço do homem, sufocando-o com força. Logo o homem parou de se debater.

Sherlock deu um último chute potente no estômago do homem imenso, que gemeu de dor. O homem parecia exausto. Violet observava-o quando viu-o tirar uma faca da jaqueta.

—Facada!

O homem avançou com a faca sobre Sherlock, os dois caindo sobre a grama. Violet esticou-se o quanto podia, pegando a arma que caíra longe, mas sem saber exatamente como usá-la. Neste mesmo instante John pegou a arma da mão dela, atirando no homem antes que ele esfaqueasse Sherlock. Ele empurrou o corpo de cima de si, que caiu pesadamente no chão. John foi até ele. Exibia um corte feio na bochecha.

—Tudo bem?

—Não.

—Cuidado! — Violet gritou.

Novo tiro. E um homem que estava detrás das árvores foi ao chão, morto.

Lestrade baixou a arma, também arfando. Ele caminhou até onde os outros três estavam, guardando a arma em seu cinto. Não estava ferido, mas seu rosto denotava cansaço. Violet se ergueu, ficando sentada e percebendo que machucara feio o joelho.

John encarou Sherlock, confuso.

—Sherlock, quantos assassinos são mesmo?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Mais um! Ufa... Estou muito feliz de ter conseguido adicionar mais um capítulo nesta história, pois meu tempo ultimamente está tão pequenininho... Como diria Calvin, os dias estão simplesmente lotados :)
Obrigado mais uma vez a todos que estão lendo. Mil bjos para vcs! Lirah



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Cachecol Azul e Cabelo Vermelho" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.