Cachecol Azul e Cabelo Vermelho escrita por Lirah Avicus


Capítulo 14
Capítulo 14


Notas iniciais do capítulo

De volta à investigação... Lá vamos nós...



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O Cleopatra’ s Needle é o nome popular de um obelisco de pedra, um de três feitos pelos antigos egípcios e reerigidos em Nova York, Paris e Londres durante o século 19. Tem ligação com a rainha egípcia Cleópatra VII, construído durante o reinado do Faraó Tutmés III. Encontra-se no Victoria’ s Embankment, próximo à Ponte Golden Jubilee. Foi dada ao Reino Unido em 1819 pelo governante do Egito e Sudão Muhammad Ali, em comemoração às vitórias do Almirante Nelson na Batalha do Nilo e de Sir Ralph Abercromby na Batalha de Alexandria. O governo britânico aceitou o presente, e este permanece em seu lugar de honra até hoje, presenciando grandes acontecimentos da História, como os ataques nazistas à Londres durante a Segunda Guerra Mundial.

Eram 10:15 da noite. Poucas pessoas, alguns casais, algumas pessoas solitárias, caminhavam por aquela parte de Londres, que era desprovida de pontos de recreação noturna. Aquele não era, de fato, um lugar noturno, pelo menos não para quem quer diversões mundanas relacionadas à noite. Era um lugar silencioso, introspectivo, e talvez um pouco romântico. Era onde namorados procuravam privacidade sob o céu, que mesmo à noite estava nublado. Não havia estrelas. Havia apenas o brilho embaçado da lua, e a luz dos postes a ajudava a iluminar o rio Tâmisa, as barcas, o parapeito que se estendia até onde a vista alcançava, e o obelisco, exibindo sua imponente altura e seus enigmáticos hieróglifos.

Naquela noite, no entanto, este monumento presenciou algo incomum. As pessoas que passeavam pelo Victoria’ s Embankment também presenciaram a mesma coisa.

Uma mulher gritou.

Havia um policial sorridente amarrado ao obelisco. E ele estava morto.

Sherlock e John chegaram poucos minutos depois. Mary lhes havia ligado quase no mesmo momento em que transeuntes no Victoria’ s Embankment perceberam que entre os monumentos turísticos naquele local não estava incluído o cadáver de um servidor público. O assassino havia sido bem pontual. Tiveram de atravessar uma multidão de curiosos, que, seja por medo ou por repulsa, não se aproximaram demais do obelisco.

John não queria se aproximar. Olhou ao redor, para a noite fria que se estendia sobre todos, para as árvores sem folhas que se estendiam pela calçada larga, para a esfinge inexpressiva que olhava diretamente para frente. Olhava para tudo. Só não queria olhar para o corpo amarrado na pedra.

Sherlock escalou os altos degraus, passando por cima da placa comemorativa de cobre, segurando-se na pedra e movendo-se para o lado, até alcançar o corpo amarrado. Abaixou-se com cuidado, uma mão para mexer no cadáver e outra segurando-se ao obelisco. Levantou a gola do uniforme do policial, olhando com cuidado, daí estendeu a mão até o bolso dele, onde o distintivo se encontrava.

—Aquele sujeito pode mexer no policial? — perguntou um rapaz punk a John

—Sim ele pode. — John caminha até o monumento, sem, no entanto, subir nele, erguendo a cabeça e observando aquela cena horrível. Sherlock lhe joga o distintivo, e John o abre.

—Antoine Dumbas... — disse.

—Nome horroroso... — Sherlock murmura, vistoriando todos os bolsos.

—Era um guarda de ronda?

—E não é deste circuito. Foi trazido após ser morto.

John volta o olhar para o distintivo.

—Spitalfields. É um bairro muito violento.

—Ainda mais com nosso amigo se divertindo por lá.

—Ele pode ser seu amigo, Sherlock, mas não é meu. — John cruza os braços, olhando a multidão de curiosos. — Eu acho... Eu acho que devíamos esperar pela polícia. Digo... Por Lestrade.

—Ele não virá, está querendo se distanciar do caso, e não quero ter que tolerar Dimmock. — Sherlock o encara. — Ora, vamos, John, não é todo dia que posso estudar uma cena de crime que não foi pisoteada por mamutes.

—Sua visão sobre a polícia é péssima, já lhe disse isso? — Sherlock abre um sorriso, voltando a remexer no cadáver. John se aproxima mais. — Você poderia não demonstrar tanta alegria, ou pelo menos poderia não parecer tão à vontade... E você não diz sempre que ficar fuçando no corpo pode danificar provas importantes ou violá-las?

—Estou de luvas de couro, John...

—Acha que foi algum tipo de represália?

—Pelo quê? Nós não fizemos nada a ele...

John aquiesce com a cabeça, desapontado. Era verdade, até agora eles não haviam atingido o assassino de nenhuma forma.

—Você disse... — John esfrega os braços por causa da decrescente temperatura. — Você disse que ele foi trazido para cá após morrer.

—Após ser morto.

—Isso. — John junta as sobrancelhas. — Dá na mesma, ele está morto. Sherlock, não abra a boca do sujeito!

—A primeira pergunta — disse Sherlock, sem dar atenção ao último comentário de John. — que você deve se fazer é: como ninguém viu um homem amarrando um policial morto no Cleopatra’ s Needle? Isso com certeza é algo que você olharia.

—Eu não olharia... — diz John, baixando a cabeça.

—Olharia sim.

—Não, não olharia, é tétrico.

—Você olharia e sairia berrando.

—Talvez eu saísse berrando, mas não...

—Você está olhando agora.

—Tudo bem, eu olharia sim, mas preferiria não olhar. Mas de qualquer forma não dá para saber se havia alguém aqui que viu isso acontecer.

—Dá sim.

—Mesmo que alguém visse, não avisaria ninguém, ele ficaria assustado, fugiria na certa.

—Seres humanos são covardes, dependentes e escandalosos, além de adorarem ter algo novo para contar. Com certeza quem visse chamaria a polícia, — Sherlock empurra a cabeça do corpo para frente, olhando detrás. — as pessoas por perto, os bombeiros, os amigos, os parentes, qualquer um que pudesse ouvi-los e ajudá-los.

—E como ninguém viu?

—O que afasta as pessoas de locais públicos?

—Apocalipse zumbi.

—Condições climáticas desfavoráveis... Eventos interessantes em algum lugar... — Sherlock vira-se para John. — Você anda falando demais sobre zumbis, por quê?

—Mary me fez assistir alguns episódios de uma série sobre mortos-vivos... — John balança a cabeça. — É nojento.

—Interessante... — ele volta-se para o corpo. — Nosso primeiro motivo para a falta de testemunhas é, acima de tudo, um show gratuito que ocorreu na Piccadilly Circus patrocinado pelo McDonalds.

—É... — John concorda. — Isso atrai pessoas... Você conhece o McDonalds?

—Em segundo lugar, olhe este corpo. Olhe estes nós na corda. É uma corda única, passada ao redor do obelisco e tendo as pontas amarradas aos pulsos do policial. Os pés estão pendurados, não ajudam na sustentação, então a corda teve de ser bem amarrada. Reconhece este nó?

—É um nó simples, — diz John, esticando o pescoço. — estilo marinheiro.

—Consegue fazer um desses?

—Sim, claro, qualquer um consegue, é o nó mais simples de todos.

—Exato. Conseguiria desfazê-lo?

—Talvez.

—Não, não conseguiria.

—Por quê?

—Por que está molhado. Marinheiros evitam fazê-lo por este motivo, a corda incha e ele se torna quase impossível de desfazer.

—Choveu, então... Molhou a corda.

—Já tem sua resposta de por que ninguém viu nosso amigo pendurando seu presente para nós.

—Por que choveu?

—A chuva era fina, porém densa, cobriu como uma cortina toda a cidade, e cessou à mais ou menos uma hora. As pessoas continuaram a trafegar pelas ruas, estamos acostumados a andar na chuva, mas o tipo de chuva acobertou o que era feito aqui.

—Alguém veria!

—Ninguém andava por aqui, John, não é um lugar muito visitado à noite, ainda mais necessitando de um guarda-chuva. E estava ocorrendo um evento popular à 7 minutos daqui, as pessoas que estavam na rua foram para lá. Numa condição climática assim você atravessa a chuva para chegar a algum lugar, não para no meio dela. Qualquer um passaria por aqui protegendo o rosto da umidade e da friagem, estando acostumado com este monumento, sequer o olharia, o cair massivo das gotas tem um efeito ilusório que ofusca objetos a certa distância, e cá está o mais novo enfeite do Cleopatra’ s Needle. As poucas pessoas que vieram para cá vieram com o cessar da chuva, e o corpo já estava aqui.

—Como pode ter tanta certeza de que ele o pendurou aqui durante a chuva?

—Ah, claro... — Sherlock revirou os olhos. — ele esperou a chuva passar, esperou esse lugar começar a ter movimento, e só então pendurou o sujeito aqui, debaixo da luz amarela de um poste, e ninguém sequer veio perguntar o que ele estava fazendo!

—Tudo bem, me convenceu.

—Ele o trouxe de carro, — Sherlock passa a mão pelas costas do corpo. — arrastou-o pela calçada... Levantou-o e atou-o ao obelisco...

—Isso exige força.

—Já discutimos sobre isso, John, ele é alto e é forte, deduzi isto ao estudar o alto do prédio da Chiltern. O que podemos deduzir de novo a respeito do assassino?

—Que ele tem um péssimo senso de humor...

—Fala do sorriso? — Sherlock segura o rosto do policial com uma das mãos, virando-o para si. — Pelo menos ele tem senso de humor, um tanto mórbido, mas com certeza tem.

—Não imagino por que assassinos com senso de humor são uma coisa boa.

—Não são, mas este tipo costuma revelar mais coisas sobre si do que aqueles que simplesmente matam e vão embora. Um tiro não revela muita coisa, mas esse corpo... Ele foi tratado com muita atenção... O pescoço foi lacerado, há marcas de enforcamento... Procedimento padrão do assassino, morte por asfixia. Um corte profundo na garganta em seguida, mas não profundo demais, a cabeça poderia se despegar do corpo e sair rolando rua afora... Cantos da boca rasgados... — Sherlock estuda atentamente os ferimentos. — O corte foi feito após a morte. Lâmina pobremente afiada, possivelmente um canivete. Ele introduziu-o na boca da vítima e puxou para o lado, abrindo o rasgo até mais da metade da bochecha. Um sorriso forçado...

—Isso parece coisa de quadrinhos... Amarrar um policial morto em via pública, todo cortado...

—Uma provocação à Scotland.

—Como assim?

—Lembra-se da mensagem que ele enviou à Violet?

—Sobre um policial pendurado no Cleopatra’ s Needle?

—“É minha contribuição”. Nosso assassino está mais bem informado do que imaginávamos, tem conhecimento de todo o andamento do caso. Ele sabe que Lestrade não quer gastar muito de seu contingente no caso, quer jogar tudo na mão de Dimmock, e não quer imprensa. Nosso assassino quer exatamente o contrário. Ele quer público, e quer ser caçado, de preferência por muita gente.

—Com certeza o que aconteceu hoje dará imprensa.

Sherlock pensa algum tempo, daí salta do obelisco para o chão com a leveza de um gato. Tira seu celular, colocando-o no ouvido e passando por John.

—Ligue para Dimmock, avise-o do colega sorridente. — ele se afasta, também fazendo uma ligação. John tira seu celular do bolso, discando os números e pensando na melhor e mais gentil forma de dizer o que tinha de dizer. Enquanto o celular tocava, porém, ele pegou-se observando o corpo pendurado, daí uma raiva vingativa surgiu nele, e, quando Dimmock atendeu, John estava segurando 10 pedras e uma funda.

Detetive Dimmock falando.

—Olá, detetive. — disse John. — Aqui é John Watson, estou ligando...

Ah, como vai? — interrompeu o detetive. — Que bom que ligou, John, fico feliz, mas o fato é que estou um pouco ocupado no momento, será que você poderia ligar depois?

—Claro! — disse John, sentindo um calor subir-lhe na nuca. — Só quero avisar que, se você demorar a tirar o corpo daqui do Cleopatra’ s Needle, ele vai começar a cheirar mal.

Como é? — disse Dimmock, baixando a voz.

—Há um corpo, amarrado, aqui no obelisco, e é de um policial. Talvez agora você decida nos dar ouvidos, afinal, parece que o assassino está mais interessado em nos ajudar do que o detetive encarregado, então eu acho que depois de falar com você eu vou ligar para o assassino e agradecer a ele! A propósito, adivinha como eu descobri o número de celular do assassino?

Bem...

—Ele está mandando mensagens para a vítima usando o celular que pegou dela! Pegou da bolsa dela, aquela que sumira, e que o assassino devolveu alguns dias depois. Pelo visto você não percebeu que estava faltando um celular, e não foi inteligente o suficiente para mostrar os itens dentro da bolsa à Violet e perguntar-lhe se tinha algo faltando.

John, por favor, fique calmo...

John sentiu seus nervos ficarem tensos. Se ele tivesse o poder da telecinese, pensou, Dimmock teria explodido.

—Não. Me. Mande. Ficar. Calmo... — rosnou. — Mais uma pessoa morreu, e a culpa, direta ou indireta, é sua. Por que não nos ouviu? Por que não colocou logo um policial treinado para proteger a moça? Por que não deixou a polícia em alerta?

Geraria muita imprensa...

—E um defunto amarrado aqui no meio da cidade não vai causar tanto alarde, não é?

O silêncio veio do outro lado da linha. John respirou fundo. Já conseguira a reação que desejava. Agora tinha de se acalmar.

Estou mandando reforços para o Cleopatra’ s Needle neste instante, e ao mesmo tempo estou mandando alguém para a casa da Srta. Hunter. O inspetor Lestrade sugeriu que fosse uma mulher, então...

—Não precisa mandar agora, Violet não está lá.

—E está onde?

—Num lugar seguro.

Dimmock respirou fundo. Seu suspiro pôde ser ouvido através do celular.

—Tudo bem, eu vou chegar aí em alguns minutos. Não se preocupe.

John desliga o celular, voltando-o ao bolso, vendo cada vez mais gente se aproximar do obelisco. Tais pessoas curiosas fizeram um círculo ao redor do lugar. Ninguém chegava perto demais.

—O que lhe deu esta injeção de raiva?

John volta-se para Sherlock, que também encerrara sua própria conversa, e balança a cabeça.

—As mortes que ocorreram antes de você pegar este caso foram idéia do assassino, não podíamos fazer nada. Mas agora o que está acontecendo é culpa da inércia absurda da polícia. Eles podiam estar vivos.

—É verdade. — Sherlock volta a observar o corpo. — Mas de que outra forma veríamos uma cena dessas?

—Eu gostaria que nunca houvessem cenas como essa. — A tristeza na voz de John era palpável. Sherlock fez sinal para que andassem, pois a primeira viatura policial já fazia suas luzes visíveis a certa distância. Eles atravessaram a multidão, deixando-a para trás e enveredando-se por uma rua menos movimentada. Sherlock ajeita suas luvas, ajeitando em seguida o casaco. — Você vai lavar essas luvas, não vai?

—Por quê?

—Você pegou num defunto. Sua mãe nunca te ensinou a lavar as mãos depois de pegar em algo sujo? — Sherlock o encara, confuso. — Sua mãe nunca te disse para não chegar perto de coisas mortas?

—Minha mãe nunca se importou que eu tocasse em cadáveres.

—Tudo bem, mas mesmo assim não é higiênico pegar num defunto e depois ficar pegando em outras coisas.

—Sei disso, sempre higienizo minhas roupas e a mim mesmo depois de tocar em cadáveres.

—Que bom, eu achei que... Só não toque em mim, ok?

—Tudo bem.

Eles andaram mais alguns metros, atravessando uma rua, subindo na calçada e caminhando ao lado de grandes construções em estilo vitoriano, antigas, porém reformadas. John olha para o amigo e percebe que este está absorto em seus próprios pensamentos.

—No que você está pensando?

—Na mão dele.

—Como?

—Na mão do assassino. Lembra-se de quando fomos ao hospital? Eu lhe disse que ele escreveu com a esquerda, mas obviamente era destro.

—Sim, eu lembro.

—Na casa de Lisa Handler havia restos de café da tarde sobre a mesa da cozinha, nem Violet nem a doutora haviam comido, então obviamente foi o assassino, de que lado a xícara e a faca estavam?

—Esquerdo, mas...

—Quando você come, a xícara e a faca ficam do lado da sua melhor mão, portanto, ou o assassino é extremamente cuidadoso... — Sherlock cala-se, voltando a mergulhar em seus pensamentos. John esperou que ele continuasse, mas o silêncio persistia.

—Sherlock... Sherlock, por favor, termine sua dedução em voz alta.

—Esse era canhoto.

—Quem?

—Esse que matou o policial. Ele teve problemas em fazer o nó quando foi exigido destreza da mão direita.

—Mas usamos as duas mãos para fazer o nó.

—Ele tinha de se segurar no obelisco, ele é alto, mas não é um gigante, ele teve de escalar como eu fiz. Viu como eu tinha de usar uma mão para remexer no corpo e guardar a outra para mim? Ele teve de fazer o mesmo. Quando precisou da mão esquerda para se segurar, ele teve problemas em fazer um bom nó usando a mão direita.

—Então ele é ambidestro?

—Um ambidestro é hábil com as duas mãos, não o contrário, — Sherlock balançou a cabeça negativamente. — não, ao usar o canivete para cortar a boca da vítima ele usou a mão esquerda e foi preciso, compensou perfeitamente a cegueira da lâmina e fez um belo corte. Como um assassino pode ser bom e ruim com a mesma mão, só que em circunstâncias e momentos diferentes?

—Talvez não seja o mesmo, talvez haja alguém ajudando ele.

—Seria plausível se não fosse o perfil dele.

—O perfil?

—Ele é um lobo solitário. Não aceita ajuda, é perfeccionista demais para isso, ele não comete erros, e sabe que outras pessoas cometeriam, portanto não pede a ajuda de ninguém. Ele trabalha sozinho.

—Você também trabalha sozinho, Sherlock, e olha eu aqui.

—Isso é uma exceção.

—Por que não haveria exceção para ele também?

—Você é meu amigo, John, acha que um assassino em série como este que enfrentamos tem amigos?

—Por que não teria?

—Amigos de fachada sim. — Sherlock vira em outra rua. — Amigos para servirem de álibi ou de escudo, mas não amigos de verdade com quem dividir segredos, ele não confia em ninguém.

—Como sabe disso?

—Pense, John. Ele mata, ele desova o corpo, ele se veste de policial, ele persegue Violet, ele nos investiga, ele faz tudo. Isso não é prova de que ele não gosta de ajuda?

—Mas você não pode saber se era realmente ele no trem. — Sherlock para de andar, encarando John. Ao perceber que ganhara toda a atenção do amigo, John sente-se gelar. Não podia dizer idiotices agora. — Violet não o reconhece, e se for mais de um ela não saberia dizer. Talvez fosse um na Chiltern, outro no trem e outro matando o policial. Violet não conseguiria diferenciar cada um se os visse.

—Era ele.

—Como sabe?

—Eu sei.

—Talvez seja mais de um, mas atuando da mesma forma.

—Eu reconheço um assassino, John. Reconheço seus maneirismos, sua individualidade, sua marca, esse é o meu trabalho. Foi o mesmo assassino, o mesmo das 7 mulheres, do casal Simons, da Dra. Handler, e agora do policial.

—Tudo bem, e como explica o mistério das mãos?

Sherlock coloca as mãos no bolso.

—Dupla personalidade. — ele volta a andar. John o segue.

—Como é?

—Identidade dissociativa. Uma mais metódica, outra mais sádica. Podemos chegar a essa conclusão observando os assassinatos em si. Com as mulheres mortas ele apenas as enforcou e cortou suas gargantas, já com o marido do casal Simons ele praticamente arrancou a cabeça dele. Ele foi surpreendido por Violet e atirou-a do telhado, foi um ato de fúria, não combina com a personalidade perfeccionista que ele apresentara até então. Já com o policial ele foi cuidadoso, já retornara ao seu lado calmo e sistemático.

—Eu estou confuso.

—Vamos presumir que ele, no incidente da Chiltern, estivesse calmamente desovando o corpo. Daí Violet aparece, vê o que ele está fazendo e foge. Com certeza ele ficou tenso, nenhum perfeccionista lida bem com surpresas, ele não sabe o que fazer. A tensão costuma desencadear eventos psicóticos, daí a outra personalidade, esta violenta e mais prática, assume o controle. Agora ele sabe o que fazer, vai atrás dela, joga-a do telhado, daí veste-se de policial e leva-a ao hospital, assina com a mão esquerda para ocultar sua identidade, esta personalidade é destra.

—Certo.

—Agora pensemos no evento com o policial. Ele realiza todo seu plano calmamente, nada o interrompe ou surpreende, ele manuseia o canivete com a mão esquerda, mas esta personalidade é canhota, então ele faz habilmente seu trabalho.

—Mas eu já li que uma personalidade não se lembra do que a outra faz.

—E daí?

—Então ambas as personalidades são assassinas?

—A seu próprio modo, sim. A segunda e mais agressiva funciona como via de escape quando as coisas saem do controle, ele é como um cão raivoso, todo cão precisa de uma coleira, e a coleira é sua outra face, que é inteligente e manipuladora. — Sherlock encara o nada. — Isso é incrível...

—Não use termos positivos para esse tipo de coisa.

—Estou lidando com dois assassinos, John. — sorriu Sherlock. — Dois assassinos no mesmo corpo, isso é algo absolutamente inédito. E o melhor é que ambos trabalham juntos, são realmente uma dupla. Preciso agora saber no que eles discordam, saber diferenciá-los e descobrir qual personalidade é mais vulnerável.

—Normalmente pessoas nervosas são mais vulneráveis.

—Pensando logicamente essa seria a resposta, mas sinceramente não estou animado de enfrentá-lo neste estado.

—Por que não?

Sherlock junta as sobrancelhas, desconfortável.

—Fico pensando na cabeça quase arrancada de Elwood Simons. — os dois se encaram. — Ele fica mais forte quando furioso.

—Você nunca teve medo de enfrentar pessoas fortes e briguentas.

—A luta que tivemos com o Gollem mudou um pouco meu ponto de vista.

John levanta as sobrancelhas, lembrando-se daquele incidente desagradável.

—Faz sentido.

—Ao menos tenho certeza numa coisa: eles não pensam igual com respeito à Violet.

—Por que diz isso?

—Um quer matá-la. O outro não.

—Já sei, a parte violenta jogou-a do telhado, e a parte calma fica brincando com ela. Só tem uma coisa.

—O quê?

—Se a parte violenta quer tanto matá-la, ele a teria matado quando desceu do prédio e ela estava desmaiada na caçamba.

—Eu já lhe disse que o casal Simons estava na rua.

—Então por que ele não os atacou neste momento? Afinal não é o lado “cão raivoso” do assassino?

—É o lado “cão raivoso”, mas não o lado imbecil. Digamos que quando ele desceu, já vestido de policial, o casal já havia ligado para a polícia? Não seria inteligente atacá-los neste momento.

—Não, está certo.

—Mas ele aproveitou a primeira deixa para matá-los depois. Mais uma informação sobre essa personalidade, ele é raivoso, mas paciente. — Sherlock baixa a cabeça. — Sabe, John, após pensar nisso percebo que agora mais do que nunca precisarei de você.

—Por quê?

—Por que também somos uma dupla. Ele está pensando que está enfrentando apenas a mim, mas ele está muito longe da verdade. Somos dois contra dois. A pergunta é: ainda tem o sangue frio de soldado para me acompanhar?

John vira-se para Sherlock, e sua postura torna-se mais ereta. A postura de um militar.

—Tenho sangue frio suficiente para estourar a cabeça do desgraçado, seja lá qual personalidade for.

***

—Não se preocupe. Será feito.

Mycroft Holmes desligou o celular, um aparelho fino, largo e touchscreen, e quedou-se pensativo. Olhou o aparelho, abrindo um leve sorriso. Sherlock não quisera um aparelho daqueles, insistira em ficar com aquele celularzinho ridículo do tamanho de uma azeitona. Mycroft daria um para ele, mas ele não quis. A dúvida que ficara era o porquê da recusa, se era por que Sherlock gostava de seu aparelho velho ou se ele simplesmente não queria ter nada que viesse do irmão. O Holmes mais velho guardou o celular no bolso, rancoroso. Ele não recusara aquele casaco imenso...

Ele saiu andando por aquele corredor elegante, vasto e bem iluminado, observando cada detalhe incrustado nas paredes, nos quadros e nas mesinhas sobre as quais haviam pequenos enfeites fabricados por caprichosos artesãos. Seus sapatos bem engraxados chocavam-se contra o piso de mármore, ecoando um som claqueante que se espalhava através das paredes e retornava a seus ouvidos. Mycroft caminhava por aquele corredor cheio de portas fechadas, mas estas não o incomodavam. Ele sabia o que havia por trás de cada uma delas. Um informante russo. Um parlamentar viciado. Uma secretária ninfomaníaca. Um assessor infiel. Ele sabia os segredos de todos, e sabia como usá-los a seu favor. Ninguém lhe ocultava nada, e nem precisava, pois ele descobria tudo. Nada estava oculto de seus olhos escrutinadores.

Mas ele tinha um problema. Um ponto cego. E esse problema se chamava Sherlock. Seu irmão caçula. Ele nunca fora um exemplo de bom comportamento. Desde criança tivera a palavra “problema” como sobrenome. Ele se enfiava em dificuldades, e lá estava Mycroft para livrá-lo delas.

E mais uma vez Sherlock estava sendo causa para preocupação. Mycroft suspirou, irritado. Por que ele não podia simplesmente se comportar? Poderia ter aceitado trabalhar para o governo, levar uma vida tranquila e mediana, mas não, o garoto parecia extrair prazer de cada dor de cabeça que causava.

Ele ligou para sua secretária. Qual o nome dela mesmo? Ele não se lembrava. Não era importante. Desde que ela fizesse seu trabalho ele faria a bondade de não demiti-la.

—Silencie qualquer burburinho por parte da imprensa com respeito ao caso da Scotland Yard. Estou te mandando os dados agora.

Imediatamente.

Mycroft olhou novamente o celular. Precisava saber no que o irmão estava se metendo. Precisava tirá-lo disso. Não guardou o celular. Ligou-o novamente, desta vez discando para outro contato, este bem mais sigiloso.

Senhor?

—Quero que me passe todas as informações sobre Sherlock Holmes do último mês. Quero saber tudo, o que ele fez, por onde andou, com quem se comunicou. Quero tudo.

Imediatamente.

Mycroft desligou o celular. Gostava daquela palavra. Imediatamente. Encerrava a conversa rapidamente e denotava ação rápida e precisa. Voltou a caminhar, guardando o celular e exibindo um sorriso. Não qualquer sorriso. Seu sorriso. Aquele que zombava de todo o mundo.

Mycroft Holmes abriu uma das portas daquele longo e elegante corredor. Passou por ela. Fechou-a. Aquela era sua porta.

A única que ninguém sabia o que tinha dentro.


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