Pelos Olhos do Gavião escrita por Mayor Hundred


Capítulo 10
Pálido Ponto Azul




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O pequeno Nicholas cabia em suas mãos.

— Ele parece uma tartaruguinha. Bobbi, por que não chamamos ele de Donatello? — Passou o dedo gentilmente sobre o rosto do filho, e ele respondia abrindo e fechando os olhinhos azuis. Era a coisa mais linda que já tinha visto.

— Clint... — Foi só o que conseguiu dizer, contendo o riso.

— Olha só pra ele, amor. — Esticou os braços, levantando o bebê e o encarou, enquanto ele o encarava de volta, com seus pequenos olhos. — Ele daria um bom Donatello. Eu até daria um garfo pra ele lutar contra o crime.

Bárbara não resistiu. Riu, aproveitando o som da própria risada, por mais que a dor física lhe cobrasse pelo ato.

— Clint, não seja um idiota. Tartarugas são criaturas marinhas, ou de água doce. As Tartarugas Ninja não fazem sentido. — Ser casado com uma bióloga destruía sonhos.

— Eles vivem no esgoto — tentou explicar, mas ela devolveu um olhar como se não tivesse sido convencida.

— Você sabia que quem usa os “garfos” é o Rafael, né? — Foi a vez de Clint rir, e a sua esposa o acompanhou. O neném, entretanto, começou a chorar.

— Olha, meu “idioma de bebê” não é muito bom, mas eu tenho certeza que ele tá pedindo a mamãe. — Esticou o pequeno Nick até Bobbi, que o acolheu com os braços e rapidamente o fez parar de chorar. Os olhos azuis de sua esposa estavam fixos na criança segura em seus braços, mas então mudaram para lhe encarar. Sorria.

— Às vezes você é tão idiota — murmurou, revirando os olhos, mesmo que sua boca ainda estivesse sorrindo.

— Eu te amo. — E, de novo, antes que ela pudesse retribuir, fora calada com um beijo.

Falava pouco sobre a sua infância. Contou uma coisa ou outra para os mais íntimos. Mas nunca, nem mesmo com Barney, mencionava aquele último ano antes do orfanato.

Conhecia o seu avô materno, mas nunca trocou muito mais do que algumas palavras. Nas raras ocasiões em que se encontraram, o velho apenas abraçou os irmãos Barton e os olhou, medindo cada centímetro do rosto de Barney e Clinton.

Mesmo pequeno demais para entender, ele sentia.

Sentia o amor que emanava daquele olhar.

Conseguia se lembrar da exata sensação que percorreu todo o seu corpo quando, naquela manhã, um policial bateu na porta de sua casinha em Iowa e Barney deixou-o entrar. Ele tinha botas sujas e os olhos mortos, da mesma cor que a lama em seus calçados. Estava hesitante, mas finalmente contou, da melhor forma que pôde, sobre o acidente.

Clint se sentiu esmagado.

A tristeza, a raiva, a culpa.

Tinha brigado com o seu pai novamente na noite anterior, e ele o bateu. Seu rosto ainda estava marcado. Tinha ido para a cama bravo tanto com ele quanto com sua mãe. Ela havia visto tudo, tentou apartar o marido e acabou por receber alguns dos golpes também.

Quando o furor terminou, Clint pediu para que partissem. Fossem embora para nunca mais voltar.

Edith Barton balançou a cabeça.

E aquela era a última lembrança de sua mãe.

Barney segurou firme a sua mão, e o resto dos dias foram como névoa em seus olhos. Não sabia dizer quanto tempo passou desde a visita do policial até estar sentado ao lado de seu irmão, em um corredor cinzento e frio.

A cadeira era grande demais, o que lhe permitia balançar as pernas. Estava impaciente. Queria ir pra casa. Exceto que agora, não tinha mais casa.

Um homem calvo e com uma jaqueta velha saiu de uma sala e apertou a mão de alguém. Caminhou lentamente até os dois garotos, e se abaixou à altura deles, devagar e com dificuldades. Olhou pausadamente para cada um, reparando na expressão desanimada de ambos. Forçou um sorriso e puxou do bolso da jaqueta duas embalagens douradas. Chocolates. O meu preferido, pensou Clint.

Estava um tanto derretido e molenga, mas não se incomodou. O lado bom de ser criança era poder se afogar no gosto doce em sua boca e esquecer do mundo lá fora.

Shannon era um homem difícil.

Vivia do que vinha da terra. Pois do pó viemos, e ao pó voltaremos, recitava sempre. Barney gostava de tê-lo por perto, principalmente porque ele respeitava a privacidade e o jeito reservado do neto mais velho, mas Clint havia finalmente encontrado alguém tão turrão quanto ele.

Seu pai foi somente um velho bêbado e frustrado que o batia sempre que não conseguia ganhar uma discussão, mas Shannon era diferente. Inflexível, seu apelido entre os amigos era Senhor Rocha. E é claro que isso gerou conflitos.

Clint não concordava com coisas básicas, como o jeito que ele colocava a comida no prato, ou a cor que tinha comprado os seus sapatos. Discutia com o seu avô com tanta intensidade que às vezes encontrava a si mesmo gritando, enquanto Shannon nunca aumentava o seu tom além de um quase sussurro.

Entretanto, por mais que as suas discussões acontecessem todos os dias, Shannon sempre tinha uma canção nos lábios quando se sentava ao lado da cama de Clinton. Em outra vida, poderia ser um excelente cantor.

Por quase um ano completo, foram felizes. Vivendo na fazenda do avô os garotos encontraram um tipo de tranquilidade que não se lembravam de casa. Era, talvez, o primeiro lar.

— Vovô? — pediu atenção o pequeno Barney enquanto caminhava com o velho pela plantação.

— Sim? — respondeu prontamente.

— Por que você tem nome de mulher? — Em resposta, o avô riu baixinho e tocou os cabelos castanhos do neto.

— Acho que meus pais não sabiam que era de mulher. — Cambaleou, e quase tropeçou. Barney se assustou com o movimento brusco do homem. — Venha cá, ajude o seu avô. Acho que dei um mal jeito na perna.

— Você vai ficar bem, não é? — Tinha medo. Medo que o avô o deixasse, do mesmo jeito que os seus pais fizeram. E por isso a pergunta vinha com tristeza, mas também com um bocado de esperança. Em suas limitadas faculdades mentais infantis, acreditava que se seu avô prometesse tudo ficaria bem.

— Vou ficar ótimo, Charles — prometeu. O fez sorrir, e o sorriso do neto foi, de alguma forma, contagioso. Barney se colocou debaixo do braço esquerdo do avô, auxiliando-o na caminhada de volta à fazenda.

— Vovô, você não deveria ficar chateado com o que Clint diz. Ele briga o tempo todo com você mas é porque... é o jeito dele de dizer que te ama. — Por um segundo o velho precisou parar, e então sorriu e reiniciou a caminhada.

— Eu sei, pequeno, eu sei. — Mas não sabia. Por tanto tempo tentou ganhar o coração de Clinton Barton e acabou não percebendo que já o tinha.

É só uma dor na perna, e eu ficarei bem.

O médico, entretanto, não sabia se aquela afirmação que Shannon vivia repetindo estava correta. Decidiu por deixá-lo em repouso e fazer uma bateria de exames.

Não era só uma dor na perna. Entretanto, ninguém foi capaz de saber exatamente o que era. Nenhum médico, procedimento ou exame parecia ser capaz de diagnosticar o problema que o afligiu.

Primeiro foi a perna, e depois todo o tronco. Logo foram os braços e depois não conseguia sequer falar. Tiveram que lhe enfiar um tubo na garganta, para que respirasse. E foi nesse momento que Barney começou a perder fé na promessa do avô.

Tentou convencer Clint a visitá-lo, mas ele sempre tinha uma desculpa. Estava cansado, ou machucou a perna, ou tinha lição de casa, ou simplesmente não queria. Barney sabia a verdade. Seu irmão estava bravo, assim como esteve com sua mãe. Estava bravo porque o avô iria deixá-lo também, e aquilo doía.

Foram cuidados pela simpática dona Emma que morava ao lado. Clint nunca entendeu a razão pela qual ela chorava quando olhava para o anel dourado em sua mão direita. Ele a pegou fazendo isso mais de uma vez, sempre sozinha e à noite, quando achava que ninguém estava olhando.

Emma levava Barney para visitar o avô todas as semanas e era tortura para ela ver os olhos esperançosos do pobre Shannon brilhar esperando ver o pequeno Clint entrar pela porta de seu quarto frio de hospital. “Logo”, ela sempre dizia.

Foi numa manhã ensolarada que Clint acordou com preguiça de ir a aula. Como sempre, nos dias de terça e quinta, Emma bateu à porta e o convidou a se juntar a eles para visitar o seu avô. Sabia que poderia escapar da escola se fosse, e então aceitou. A moça sorriu como nunca quando ouviu.

Ficaram em silêncio no caminho.

Não conseguiu deixar de se assustar quando reviu o seu avô. Não era nada com o que se lembrava. Estava magro, pálido, careca e sem energia. O Shannon do qual se lembrava era corpulento, vigoroso, corado. Sentiu pena.

Estava dormindo, e ele quis acordá-lo. Emma, entretanto, lhe contou que ele estava assim fazia semanas, talvez demorasse para voltar. A mulher se aproximou em um canto da cama, enquanto Barney foi ao outro, e eles começaram a revezar histórias sobre o dia-a-dia.

— Ele nos ouve, fale algo, Clint — encorajou, tocando gentilmente as costas do garotinho.

Não sabia exatamente o que dizer.

Repousou a mão sobre a do seu avô, que estava ossuda e fina. Sentiu o mundo se afogar, mas eram só os seus olhos. Olhou para o homem, e então suspirou:

— Eu tô com saudade.

Ficou alguns segundos em silêncio, chorando. Sentiu os braços de Emma lhe envolvendo confortavelmente. Queria pedir para que não levassem o seu vô embora, mas não sabia pra quem dizer.

Limpou a lágrima dos olhos, desembaçando a sua visão. O avô vagarosamente despertava. Olhou diretamente para Clint por um longo tempo, sem reação, e então sorriu. “Você está aqui”, seus olhos pareciam dizer.

— Me dê um abraço — sibilou o velho. Não saiu som algum, mas não foi necessário.

O abraçaram, e ele fez o melhor que pôde para beijar a face da cada um, mas no máximo foi um roçar de barba na bochecha.

Não importavam os pesadelos, os monstros, os acidentes, as doenças. Não importava realmente nada. Tudo o que precisava estava ali. Todas essas coisas estariam esperando por eles lá fora. Mas ali dentro, uns nos braços dos outros, estavam seguros.

Clint abraçava o seu irmão, que, por sua vez, o consolava. A viagem de volta foi de partir o coração, para todos.

Mal desceram do táxi e notaram o telefone tocando incessantemente no interior da casa. Emma atendeu. Era o hospital. Shannon havia falecido, somente alguns instantes depois que eles foram embora.

— Você não precisa ficar. — Bobbi tinha meio seio descoberto, e o pequeno Nick já havia parado de reclamar pela fome. Clint sorriu com a imagem e tocou ternamente o rosto da esposa.

— Eu quero. — Sentou-se ao lado dela, e ficou a encarando, em perfeito silêncio.

Por muito tempo não teve nada, mas aquela cena o fez lembrar de uma Rocha obtusa. Agora, bem à sua frente, tinha tudo. E amava o que tinha. Nunca pensou ser capaz de amar tanto. O sono pesava a sua cabeça, mas gostaria de ficar acordado mais um pouco. Só mais um pouquinho, observando aquela situação. Contemplando.

O lento alimentar do bebê foi tudo o que ouviram, com exceção de suas próprias respirações.

E estava tudo bem.

— Cante para ele — sugeriu, cobrindo-se, e entregando a criança nos braços do marido.

— Gaviões não cantam. — Sorriu, mas ela estava séria.

Lembrou-se de um menininho no interior de Iowa. Não tinha os pais, e nem o avô. Estava sozinho com o seu irmão num orfanato. Tinha o mesmo nome e o mesmo rosto que aquele menino. Mas já não era ele.

Doeu em seu coração. Estava acostumado com despedidas, mas aquele não era o caso. Era uma saudação.

— Quando eu era criança, — iniciou, e percebeu a reação curiosa de Bobbi. Clint raramente falava sobre o seu passado. — fiquei com meu avô por um tempo. Eu e Barney. Ele me mostrou as músicas que minha mãe deixou para trás quando se foi com meu pai, e cantava uma delas quando eu sonhava com o acidente deles. Quando ele se foi, eu me encolhia nos cobertores velhos do orfanato e brincava com o meu próprio cabelo, cantando sozinho pra mim mesmo. Eu só queria um pai, sabe? Não é pedir muito. Eu fingia que meu avô ainda estava ali, sentado do meu lado e que cantava:

If I could make the world as pure and strange as what I see
I'd put you in the mirror, I put in front of me
I put in front of me

Linger on, your pale blue eyes


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Notas finais do capítulo

Em memória de “Senhor Rocha”.



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