Hastryn: Ascensão escrita por Dreamy Boy


Capítulo 10
Delírios


Notas iniciais do capítulo

"Perdê-lo para a morte nunca foi uma escolha. Jamais foi algo que cogitei que fosse acontecer. Sinto-me dividida, como se uma parte minha tivesse sido levada junto."
— Charlotte Wildshade



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Charlotte

Charlotte agradecia fervorosamente aos deuses pela vista de seu quarto não ser de frente para a Praça da Execução, pois se sentia mal a cada relato de morte que chegava a seus ouvidos. Daquela vez, foram muitos ao mesmo tempo e a princesa conseguia ouvir as agoniantes súplicas das vítimas carbonizadas.

Hazel era sua única fonte de contato para saber o que acontecia fora da torre onde se encontrava trancafiada. Quando ficavam juntas, podiam conversar sobre inúmeros assuntos que envolviam a realeza e a corte, e também relembrar os bons momentos ao lado de Elliot.

A ama confirmou que o garoto foi encontrado e morto pelo rei.

— Não me falaram nada sobre o que foi feito com seu corpo, mas foi garantido que ele não está mais entre nós. — Falava devagar, para não assustá-la mais do que já estava assustada. Hazel era delicada e sabia como lidar com a filha do coração. — Querida, eu realmente sinto muito!

A princípio, era difícil acreditar. A morte era algo engraçado. Charlotte havia perdido apenas a mãe, mas não era possível ter memórias de algo ocorrido quando era apenas uma criança recém-nascida. Entretanto, agora conhecia a grande sensação de perda e não desejava aquilo para ninguém.

A culpa havia sido sua. Sua audácia e intransigência de desobedecer às ordens de Lothar colocaram em risco a vida do garoto, provavelmente junto com a de sua família.

— Como estão seus pais?

— Fugiram a tempo, mas os homens do rei já estão em caça. Pode ser que não sobrevivam no caminho, portanto, devemos estar prontas para que o pior aconteça. Você será informada de qualquer notícia recente que chegar aos meus ouvidos, está bem?

— Lothar um dia pagará por cada crueldade cometida. Um dia, eu mesma serei capaz de matá-lo e tomarei o trono de Arroway para mim. Vou cuidar da nação como um ser humano deve. Como minha mãe teria feito se tivesse chance.

— Sem dúvidas teria. A Rainha Lucy era uma mulher maravilhosa. Mas não deixe que esses pensamentos ruins a dominem, pois se igualam aos dele. Levarão somente à sua própria ruína. Por favor, não tente fazer nada que coloque sua vida em risco. O rei não viverá para sempre e, quando cair, serão dias de glória para nossa nação.

— Ele acabou com meu único amigo verdadeiro... O dia em que estiver morto se tornará uma data comemorativa muito especial na vida de todos. Farei questão de oficializar isso e organizar um banquete para todos. Farei tudo o que puder para destruí-lo.

Charlotte era uma garota sonhadora.

Nos livros que a ama lhe trazia, encontrava inúmeras e variadas histórias baseadas em fatos reais e contos fictícios sobre muitas regiões de Hastryn em diferentes épocas. Em algumas delas, existiam pessoas que se conheciam durante a juventude e se tornavam um casal feliz no futuro. De acordo com o ponto de vista das moças, Charlie via em Elliot alguém perfeito para ser seu futuro marido, enquadrando o menino em todas as características que admirava. Mesmo contra a aprovação do pai e tendo pensamentos de que talvez não fosse possível, aquele era um de seus principais sonhos. Um sonho que fora arrancado à força de seu coração.

— Hazel, nunca me abandone, por favor. — Charlie deitou sobre seu colo, em aflição, como fazia desde que era uma pequena e indefesa garotinha. — Não há mais ninguém além da senhora.

— Eu nunca seria capaz de largar um presente concedido pelos nossos deuses. Você foi aquela que curou todas as minhas tristezas de meu passado horrendo.

Hazel a puxou para um abraço carinhoso, trazendo à princesa uma sensação reconfortante e protetora, o mais próximo de uma mãe que poderia ter. Agradecia aos deuses por ter alguém que a amasse tanto. Havia pessoas que nem isso conseguiam. Apesar da vida triste, Charlotte às vezes se considerava uma garota de sorte.

As duas tinham uma ligação muito forte, mas a criança ainda não conhecia o segredo por trás do tão misterioso passado da vida da mulher. Esperava que um dia a ama confiasse nela para conversar sobre. Estava pronta para esperar o tempo que fosse preciso.

...

Fechou os olhos e penetrou em um sono profundo.

Sonhou com um paraíso. Belas paisagens, locais que aparentemente nunca estivera presente, mas pareciam familiares de alguma forma. Aquilo não se assemelhava a Arroway, pelo menos não a Arroway em que estava acostumada a encontrar, pois não via sinal de nenhuma cidade.

O formato das árvores era diferente, pois eram muito mais altas do que o normal, de modo que não era possível observar o tamanho das áreas florestais que a circundavam. Incrivelmente, isso não a assustava e não alterava em nada a beleza do ambiente, que consistia em uma grande clareira semelhante à do poço, mas completamente vazia, com apenas o verde espalhado por todo o bosque.

Os campos pareciam não ter fim. Abriam espaços para vários caminhos conforme andava. As possibilidades de trajetos a serem seguidos somente se abriam, levando a diferentes lados e trazendo a sensação de dúvida sobre qual deles deveria escolher.

Arriscou uma das direções, que pelo seu campo de visão era a noroeste. Encontrou plantações de morangos a seus pés e, mais à frente, macieiras, mangueiras e laranjeiras. A árvore mais alta do pomar se encontrava um pouco mais longe, com folhas coloridas que pareciam compor um arco-íris vegetal. Nela, um balanço de madeira estava pendurado firmemente. Charlotte foi até ele e brincou, relembrando a infância por alguns instantes, como se os sentimentos de dor e tristeza não conseguissem dominá-la ali.

Quando se cansou, voltou a andar, como se soubesse exatamente por onde ia. Sentia uma vontade interminável de correr e passear pela região, mas começou a ficar exausta e precisava parar para descansar.

Avisou um riacho. Olhou ao redor à procura de pessoas que pudessem estar espionando, mas não achou ninguém suspeito. Aliviada, se despiu por completo, mergulhando nas águas tranquilas e doces.

Foi o banho mais gostoso de sua vida.

A calma presente naquele bosque sem fim era surreal, algo que nunca tivera a chance de desfrutar antes. De acordo com as histórias mitológicas, era extremamente semelhante aos céus.

“O paraíso divino é assim? Estou morta e não me lembro disso?”

A trilha a levou até uma casa construída à base de pedra. Curiosa, Charlotte subiu os cinco pequeninos degraus e bateu à porta de madeira. Ao ser ignorada, repetiu o gesto e concluiu que o morador não estava ali dentro. Entretanto, sua curiosidade falou mais alto e a princesa empurrou a porta, descobrindo que estava apenas encostada e sem trancos.

Adentrou a moradia.

Uma sala de estar confortante e bem decorada surgiu à sua frente. Havia pinturas de paisagens, um sofá de couro e uma pequena escultura na qual um soldado vestia uma armadura comum e erguia seu escudo para se defender de alguma ameaça maior. No centro, uma lareira se encontrava acesa, como se o habitante dali não tivesse saído há muito tempo e fosse voltar a qualquer hora.

Em uma das paredes, havia uma estante com muitos livros de capas com cores diferenciadas, como se fossem continuações de uma mesma linha do tempo contínua e eterna. Todos sem títulos. O único móvel que não estava limpo, onde os materiais estavam cheios de poeira e teias de aranha.

Um deles chamou sua atenção. Charlie abriu o exemplar, encontrando muitas figuras curiosas que fora capaz de reconhecer de imediato. Entretida com o mistério, sentou-se no tapete em frente à lareira e começou a folhear as páginas.

Aparentemente, muitas delas tinham sido arrancadas e impediam que a história fosse mostrada por completo. Interrompiam a compreensão direta dos relatos, mas isso incentivava sua vontade de decifrar aquele código que tinha parado em suas mãos. Gostava de um desafio e não descansaria até que o cumprisse com êxito.

A primeira imagem estava completamente negra, como se o mundo fosse uma eterna escuridão e nada mais do que isso. A seguinte mostrava a terra surgindo, sem plantações ou alguma vida animal. Aos poucos, a grama e as plantas apareciam, junto com seus determinados frutos. As variadas paisagens eram formadas pela figura divina central aos poucos de forma mágica e fantástica.

Depois de todo o cenário natural, vieram os animais. Criaturas de todos os tipos, envolvendo humanos, leões, coelhos, ratos, lobos, dragões, serpes, grifos, onças, tigres, sereias e muitos outros. Um verdadeiro reino animal, repleto de cadeias alimentares que organizavam a vida da época. Esse equilíbrio foi aos poucos destruído pela interferência humana, Charlotte reconhecia isto.

Concluiu que as páginas restantes falariam da relação do homem com Grimwerd, pois estavam arrancadas e as próximas já contavam com a presença de grandes vilas e construções de casas. Quando percebeu que estava tempo demais concentrada naquilo, decidiu ir até a prateleira e guardar o livro em seu devido canto, para conhecer mais daquele ambiente.

Só então reparou um objeto que estava ali o tempo todo.

Aproximando-se do espelho grande que parecia ter brotado magicamente, viu algo que a surpreendeu. Sua aparência estava completamente diferente. Pela altura e pelas feições mais evoluídas do rosto, estava mais velha e parecida com as moças que considerava bonitas no reino em que morava. Charlie não gostava de si mesma, mas quando a viu daquele jeito, foi inevitável não ser tomada por uma sensação de felicidade maior do que aquela cujo local já propiciava naturalmente.

Prestou mais atenção nas roupas que utilizava, decidindo que deveriam ser substituídas por outras mais limpas. Antes que o dono da casa chegasse, foi até o cômodo que aparentava ser um quarto e procurou o local onde as roupas eram guardadas. Encontrou trajes de ambos os sexos e de diferentes tamanhos.

Sem demorar muito, escolheu um vestido de coloração bege com mangas curtas e uma grande saia azul celestial. Não sentia vontade de vestir roupas extremamente exuberantes, contentando-se com tecidos simples e neutros o suficiente para que não fosse vista como um alvo de atenção dos outros.

Ouviu ruídos vindos do lado de fora. Voltando para a sala, encontrou um rapaz bonito. Utilizava uma vestimenta simples e tinha os cabelos castanhos cacheados até os ombros. Sua barba era serrada e os olhos a encaravam. O rosto se abriu num largo sorriso e, de súbito, ele correu para abraçá-la. O rapaz era Elliot.

— Querida, que bom que está de volta! Estava ficando preocupado. Pensei que estava metida em apuros ou perdida em alguma parte desconhecida das florestas.

Ele a beijou. Aquele beijo foi o suficiente para que a princesa se esquecesse de toda a loucura e do que realmente significava aquilo. Não se lembrava de como tinha chegado ali ou o que aconteceu na vida dos dois para que estivessem juntos naquele momento e naquele lugar. Mas isso não importava. Ali, Elliot estava vivo e os dois poderiam viver como um casal. Essa era a vida que Charlotte desejava no futuro. Nada diferente.

Apenas os dois em uma imensa felicidade e distância de todo o mal. Uma realidade existente somente nos melhores sonhos, aqueles em que as pessoas nunca desistem de querer viver um dia.

...

Abriu os olhos, percebendo que tinha dormido por um bom tempo e nada daquilo tinha sido real. Levantou e se dirigiu à janela maior, a tempo de observar o sol se por. Desde que ficou presa, passava horas lendo ou contemplando a beleza celestial e os bosques distantes. Era a única maneira de se distrair e fazer os dias passarem mais rápido.

Após o escurecer, Hazel subiu novamente as escadarias da torre e os guardas permitiram seu acesso. Entrou carregando uma bandeja de prata, onde havia o jantar da princesa. Ambas se sentaram à mesa para que tivessem a última conversa do dia após o toque de recolher.

— Tive um sonho estranho...

— Gostaria de conversar comigo sobre?

— Não sei como aconteceu, mas Elliot estava lá. — Respirava fundo, tentando enumerar todos os detalhes sem se atropelar na fala. — Estávamos mais velhos e morávamos em uma região que não conhecíamos. Parecia ser outra vida ou algo parecido. Foi muito confuso.

— Bom, de acordo com os livros que li sobre o estudo da mente, sonhos podem ser interpretados de diferentes modos. Normalmente possuem um significado importante em nossa vida, mas nem sempre isso acontece. Talvez deva descobrir se há algum significado neste.

Charlotte admirava a inteligência de Hazel. Desejava ser uma mãe e avó como a ama, contando e transmitindo os fatos e histórias para seus descendentes, formando a próxima geração com pessoas cultas e mais interessadas em leitura.

O sonho provavelmente fora um delírio de toda aquela vida entediante e triste que estava destinada a enfrentar. Uma junção das histórias lidas por Charlotte e dos seus desejos para a vida. Mas a realidade era algo diferente, algo que exigia sua força e a obrigava a mudar o pensamento.

— Parecia o paraíso. O paraíso descrito como o mundo após a morte para aqueles que são bondosos e dignos. Talvez nos encontremos nesse mundo, seja lá como ele for de verdade. Talvez os deuses se apiedem de nossa alma e nos abençoem.

— Pense mais sobre isso e reflita sobre cada acontecimento nesse sonho. Depois, converse comigo sobre o que houver concluído a respeito dele, está bem?

— Sim, mas preciso que me responda uma coisa. Recebeu notícias novas sobre a família de Elliot? Estão vivos ou os guardas ainda estão à procura deles?

— Nenhuma novidade, mas assim que souber de algo será a primeira a saber. Não fique pensando muito a respeito disso, pois não há nada que podemos fazer e isso pode fazer mal a você.

— Como se eu me importasse... Estou preocupada com a vida deles! A mãe dele está grávida, Hazel! Simplesmente não pode ser caçada e a criança morrer dentro de sua barriga. Não é justo que Lothar os encontre e os mate!

Subitamente, Hazel teve uma crise de choro. Permaneceu vários minutos chorando de forma agoniante, de um modo que Charlotte nunca tinha visto antes. Ficou calada e de olhos arregalados, esperando a senhora recuperar o fôlego.

— O que está acontecendo? Eu disse algo que a deixou mal?

— Não é nada, apenas um vislumbre do passado que veio à minha mente. Devemos esquecer isso, pois agora é hora de você se alimentar e voltar a dormir. Vou deixá-la sozinha para que possa pensar melhor a respeito de tudo. — Hazel se despediu, beijando sua testa e se apressando a sair do aposento.

Percebendo que falara algo que não devia, Charlie tentou pensar em todas as palavras e em quais delas poderiam ter magoado a ama daquele jeito. No entanto, não chegou a uma conclusão, provavelmente porque seus pensamentos não saíam daquela casa de pedra nos bosques intermináveis.

Recordava-se perfeitamente dos principais detalhes de tudo que envolvia o sonho, inclusive do misterioso livro que retratava figuradamente a história de Grimwerd. Em um dos exemplares oferecidos pela ama, a princesa descobriu o princípio do mundo e se interessou em aprofundar seus conhecimentos sobre a história, mesmo com poucos acessos às fontes da época.

Ficou refletindo também sobre Elliot estar vivo em algum mundo, algum universo diferente daquele em que viviam. Aquela ideia a deixava aliviada, trazendo a esperança de que o menino seria feliz em uma terra não afetada pela guerra e destruição.

Abraçou um travesseiro, pensando nessa hipótese.


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Notas finais do capítulo

Gostaram?
O capítulo não teve muita ação, mas falei um pouco sobre a história de Grimwerd. Espero que tenha ficado interessante e renda algumas teorias para os próximos o/
Digam a opinião de vocês!