Tetris escrita por Stefani Niemczyk


Capítulo 13
Eu começo!!!




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Levantei no dia seguinte e, como uma onda que te pega de surpresa no mar, os sentimentos da noite passada inundaram minha mente. Se dormi bem, não sei, pois fiquei triste e desmotivado com a vida por causa desta enxurrada de realidade.

Fui ao banheiro e lavei o rosto. Era engraçado como as gotas de água caíam do meu rosto como se fossem as lágrimas que eu sentia no coração. Escovei os dentes sem o menor esforço. Não conseguia focar meu olhar. Apenas olhava para o nada.

Escutava os meninos conversando e rindo, assim que acordavam também. Não sei qual era a piada, mas para quem tem amigos, isso não importa. Não é preciso uma piada para rir. Simplesmente o fato de estar com quem se ama já é motivo para gargalhar sem medo.

Sentei-me no sofá depois de levar meu colchão para o quarto. Já havia me trocado, assim como os meninos. O Léo começou a pegar pães, leite, margarina e mais algumas coisas na cozinha para a primeira refeição do dia.

Estávamos todos à mesa, comendo, quando o Dani me perguntou:

– Rafa, está tudo bem?

Eu não conseguia me motivar nem mesmo a fingir estar bem. O modo como eles estavam tranquilos me deixava inquieto por dentro.

Cada risada, cada zoeira, cada ajuda, cada palavra, cada gesto... Tudo me mostrava que eu havia perdido os melhores anos da minha vida. Tudo me mostrava que eu sempre fui um covarde e não soube lidar com isso, então culpei a homossexualidade.

Eu estava feliz por ter ido à Tetris e beijado pela primeira vez. Juro, estava mesmo. Mas sentia que ali, com aqueles garotos, não era meu lugar. Eles estavam anos luz à frente de mim em relação a relacionamentos, sexo, baladas, e toda esta vida que eu nunca tive.

– Está sim... Só acordei com um pouco de dor de cabeça...

– Eu tenho remédio! - O Léo levantou enquanto falava.

Consegui segurar o braço dele antes que se afastasse muito da mesa:

– Não precisa, vai passar.

– Você não dormiu bem? - Perguntou o Henrique.

– Dormi... Acho que foi o pavê.

Dei um sorriso pra tentar fingir que estava fazendo uma piada, mas não colou. E eu sabia que não iria. Eu estava muito triste para conseguir passar qualquer sinal de tranquilidade.

– Putz, que bad. - O Léo comentou, retornando a seu lugar. - Qualquer coisa avisa a gente... Se piorar e tal...

– Aviso sim, obrigado.

Eu não iria avisar nada.

Não iria avisar que estava me sentindo arrependido por ter deixado minha timidez me controlar por todos aqueles anos. Por ter colocado a culpa da minha falta de amigos na homossexualidade. Eu nunca havia parado para pensar que existem muitos gays que têm milhões de amigos.

Talvez foi isso o que me impediu de entrar na Tetris pela primeira vez. Eu via aqueles garotos na fila e sabia que, no fundo, eu me sentia frustrado. Por que eles tinham tanta facilidade para ter amigos e eu não?

Sim. Era inveja.

A sociedade de hoje demoniza a inveja como se fosse um crime, um pecado. Ok, eu sei que é, mas não sou religioso, então não vejo muito sob este ponto de vista.

Mas qual é o problema em sentir inveja? Todos sentem isso, por que negar? Ou então criar imbecilidades como "inveja branca" que, na verdade, quer dizer "estou com inveja, da mais obscura possível, mas vou falar que é branca pra parecer que sou feliz e seu amigo".

Eu estava com inveja de todas as pessoas que haviam aproveitado (e estavam aproveitando) sua juventude. Vivendo cada momento da vida mesmo. Tendo amigos desde a infância, dando os primeiros beijos aos doze (beijos por tesão, não por status, como eu), indo nas festinhas aos catorze, namorando aos dezesseis e tendo suas primeiras desilusões amorosas também nessa idade...

Nossa! Meu estado é tão grave assim que eu sinto inveja até de experiências ruins?!

Olhar para aqueles quatro garotos apenas me lembrava de tudo isso. Eles eram uma metonímia perfeita de todas as pessoas que aproveitavam suas vidas sem medo.

– Rafa?

Perguntaram. Nem consegui distinguir quem foi. Era como se eu estivesse me afogando e, nos últimos segundos de vida, uma mão me puxasse para fora deste oceano de dor e me trouxesse de volta à realidade.

Os quatro já haviam saído da mesa e eu nem havia percebido.

– Está tudo bem? Você não está comendo... - O Dani comentou.

– Sim, está sim! - Respondi, levantando-me da cadeira. - Não estou com muita fome.

– Tem certeza que está tudo bem? - O Vitor perguntou.

– Sim... Só um pouco de dor de cabeça... Acho que preciso descansar mais um pouco, só isso... - Respondi.

– Ah, então descanse bastante porque, na hora do almoço, vamos para o shopping e você vai sair de lá uma outra pessoa! - O Dani comemorou.

– Falando nisso, já decidimos qual será o filme que veremos no cinema? - O Henrique perguntou.

Os quatro começaram a discutir sobre os filmes em cartaz e qual deveríamos ver.

Apesar de ouvir, eu mal conseguia prestar atenção na conversa. Eu nos imaginava no shopping e me coração só doía. Não ia ser legal. Eu não ia me sentir bem. Teria que falar para eles mais cedo ou mais tarde.

Ansioso que sou, preferi que fosse mais cedo:

– Eu não vou.

...

Silêncio.

Os quatro olharam para mim sem entender.

– Como assim? - O Léo perguntou.

Eu estava relutante, mas menti:

– Estou com dor de cabeça, não estou muito legal...

– Então toma o remédio, menino! - O Dani brigou.

– Não, eu acho melhor não... Acho melhor eu ir para casa.

– Ué?! - O Henrique exclamou, sem conseguir se segurar.

– Vão no shopping, divirtam-se... Eu não vou aproveitar muito hoje...

Acho que essa foi a primeira coisa cem por cento verdadeira que falei a eles naquele dia.

– Imagina! - O Léo falou. - Nós vamos juntos!

– Relaxa, gente, não precisa. - Comentei. - Não quero estragar o sábado de vocês. O melhor pra mim será eu ir pra casa e dar mais uma dormida.

– Ué, dorme aqui. - O Léo disse.

– Ou está com saudadezinha de casa? - O Henrique falou com uma voz de quem fala com bebês, me zoando.

Reparei que o Vitor deu um cutucão discreto nele, como quem diz "isso não é hora, se toca!".

– Não é isso, é que eu realmente acho melhor que eu vá...

O Léo se aproximou de mim e falou:

– Ah, nós gostaríamos que você ficasse. Ia ser legal sairmos juntos. É uma pena, mas se você realmente quiser ir, não vamos te impedir.

– É, a gente pode ir em outro dia. - O Dani completou.

– Você tem certeza de que não quer ficar? Ou pelo menos esperar um pouco pra ver se a dor melhora? - O Léo perguntou.

Eles estavam sendo uns fofos! E isso me deixava pior ainda! Além de serem super bem resolvidos, terem amigos desde sempre, terem aproveitado a juventude, ainda eram super legais, sinceros e compreensivos.

Mano, nunca, nem em UM BILHÃO DE ANOS eu seria como eles. O máximo que eu conseguiria era chegar perto de fingir que poderia ser daquele jeito. E, mesmo assim, levaria anos.

Eles eram incríveis e eu realmente queria ficar ao lado deles se estes pensamentos não envenenassem minha cabeça. Tive que fazer o que achava melhor:

– Obrigado, gente, mas não vou ficar. Acho melhor eu voltar pra casa...

Ficamos em silêncio por mais um tempo enquanto eu pegava minha mochila.

– Bem, de qualquer forma, obrigado por vir dormir aqui! - O Léo abriu um sorriso, quebrando aquele climão que minha insegurança havia causado no ambiente.

Ele me abraçou e eu falei:

– Eu é que agradeço. Vocês foram muito gentis desde que nos conhecemos!

Me despedi dos outros enquanto o Dani falava:

– Mais tarde a gente marca outro dia pra sairmos!

Eu queria falar para ele que não queria mais vê-los, mas não conseguia. Eu pensaria numa desculpa depois. A única coisa que eu precisava era sair dali para não pensar mais em como perdi os meus anos de descobrimento...

Desci pelo elevador e fui em direção ao meu carro. Quando fechei a porta do automóvel, meu rosto já estava ensopado de lágrimas. Era muito triste ter que me afastar daquele ambiente tão bom que eles criavam.

Mas eu não conseguiria ficar bem ali. Só fiquei tranquilo na Tétris porque estava descobrindo um lugar novo, um mundo novo onde tudo era permitido no escuro. Agora que as luzes estavam acesas, eu enxergava a realidade.

Girei a chave, mas não saí do lugar. Eu estava sem forças emocionais para dirigir um carro. Para fazer qualquer coisa, na verdade.

Quando percebi, a Celina já estava massageando meus ouvidos. Me lembrei da noite em que fui à Tetris pela primeira vez. Eu estava fazendo exatamente a mesma coisa. No dia anterior eu estava tão feliz por ter mudado minha situação... Agora eu via todas as conquistas da noite em que fui na balada com os garotos indo por água abaixo.

Aquilo havia sido tudo uma mentira. Apenas uma euforia de libertar algo que estava preso em mim há muito tempo. Eu gostei muito, naquele momento, mas, agora, eu via que não era para mim.

Meu tempo de me descobrir e me acabar em balada havia passado. Eu não sabia nada sobre aquele "mundo gay" e era humilhante que garotos mais novos que eu me ensinassem. É algo que se aprende com a vida, não com aulas num shopping!

Que vida miserável! Eu estava condenado a ser sozinho e triste para sempre. Quando os garotos entraram na minha vida eu achei que era para mudar esta realidade. Mas agora conseguia ver claramente que eles foram uma mensagem da vida me dizendo "Não adianta tentar, viado. A sua vez já passou. Bjs".

– RAFAAAAAAAA! ESPERA! VOCÊ ESQUE....

Olhei para o lado e vi o Léo correndo igual a um doido com a minha travessa nas mãos. Droga! Eu nem lembrei da travessa onde fiz o pavê!

Tentei enxugar as lágrimas correndo, mas, ao limpar a última, percebi que ele já estava do lado do carro, olhando para mim com cara de surpreso.

– O-Obrigado... Léo...

Estiquei as mão para fora da janela. Gaguejei sem querer, por causa do diafragma que ainda estava pulando, resultado do choro.

– Rafa! O que aconteceu?

– Nada... É que a dor de cabeça aumentou e...

Não consegui. Me senti mais ridículo ainda por estar insistindo naquela mentira que ninguém acreditaria. Comecei a chorar novamente.

– Rafa, calma!

O Léo abriu a porta do carro que eu nem havia lembrado de trancar. Ele tirou a travessa do meu colo e colocou no banco do passageiro.

– O que está acontecendo?

– Não é nada...

– Por que você está assim? Nós fizemos alguma coisa que você não gostou?

– Não! Imagina! Não tem nada a ver com vocês!!!!

– Olha... Respira fundo. Vamos subir e lá em cima você toma um copo d'água. Ai quando você estiver mais calmo a gente conversa sobre isso, pode ser?

– Não, eu quero ir embora!

– Rafa, você está muito mal. Não está em condições de dirigir agora... É melhor você subir pra relaxar... Depois você vai.

Fiquei sem saber o que dizer. Eu não queria que nenhum deles me visse daquele jeito! Que droga!

O Léo tinha razão. Eu não conseguiria prestar atenção no trânsito no estado em que eu estava. Mas eu também estava com vergonha de demonstrar minha fraqueza. E não venha me falar que isso é bobagem porque isso é como a inveja. Todo mundo sente mas ninguém admite!

– Vamos lá, com calma.

Olhei para o rosto dele. Os olhos dele eram muito azuis e muito lindos. Ele estava com um leve sorriso no rosto, o que passava um semblante simpático e agradável. Me senti mais confortável ao ver a empatia dele.

Saí do carro e acompanhei ele até a porta do elevador. Subimos em silêncio e voltamos ao apartamento.

Quando entrei, os outros três se assustaram com meu estado. Eu não precisava de um espelho para saber que meu rosto estava vermelho, assim como meus olhos.

Fiquei parado em frente à entrada enquanto o Léo fechava a porta e pegava um copo de água para mim.

– Rafa, o que houve? - O Dani perguntou.

– Senta aqui! - O Vitor levantou-se do sofá, com expressão de preocupação.

Sentei-me enquanto recebia o copo d'água. Bebi tudo sem olhar para nenhum dos quatro. Que situação ridícula! Um cara de vinte e cinco anos chorando igual a um adolescente na frente de quatro garotos mais jovens. Bem, só na idade, porque na maturidade, eram BEM mais experientes que eu!

Eu estava no sofá, no assento da direita. Ao meu lado esquerdo, também no sofá, estava o Henrique. À minha frente estavam o Dani e o Léo, sentados em cadeiras que ficavam junto à mesa. O Vitor também estava numa dessas cadeiras, mas posicionou-se ao meu lado direito.

Terminei o copo e, imediatamente, o Henrique perguntou:

– O que aconteceu?

Eu não queria falar, mas estavam todos ali, verdadeiramente preocupados comigo. Era lindo pensar que eu realmente tinha amigos que me importavam comigo. Quando era sozinho, sempre pedia amigos para me ouvirem quando eu estivesse triste. Mas, na prática, era bem mais difícil se abrir.

– Rafa, desabafa, pode contar com a gente. - O Léo me encorajou, enquanto colocou a mão na minha perna, como sinal de confiança.

Fiquei um tempo em silêncio, criando coragem para começar.

– Eu... É que... Eu...

Senti meu coração apertando e as lágrimas aumentando e o sangue no meu rosto e meu desespero crescendo e minha insegurança tomando conta de mim e então falei de uma vez só:

– Eu estou me sentindo um bosta! Eu nunca tive amigos, nunca havia beijado, nunca namorei, nunca havia ido a uma balada e nunca fiz nada na minha juventude! Eu só ficava em casa jogando videogame e lendo quadrinhos enquanto todo mundo da minha idade estava descobrindo um mundo completamente novo de amizades, romances e risadas! Eu vejo vocês quatro tão novinhos vivendo tão bem, sendo felizes, fazendo o que gostam, tendo amigos de verdade, tão bem resolvidos na hora de pegar um cara, tão acostumados a ir em baladas, tão imersos na cultura gay, tão tranquilos com tudo, aproveitando ao máximo sua juventude... E tudo o que eu sinto é frustração! Frustração por não ter tido coragem de ter sido assim quando tive a chance! Agora meu tempo já passou e eu não fiz NADA por causa da minha timidez! Eu usava a desculpa de ser gay como um escudo para não ter que enfrentar esta verdade. Era muito mais fácil falar que eu não tinha amigos por ser gay, que eu não saía por ser gay, que eu nunca havia beijado por ser gay, que eu era inseguro por ser gay... Mas a imagem de vocês e de todos os outros meninos da Tetris me mostram que ser gay não interfere em nada! O problema não é ser gay, é ser COVARDE! É não ter coragem de entrar numa balada gay sozinho pela primeira vez! Sim, porque isso era o que eu estava fazendo naquele sábado! Eu havia ido lá para entrar na Tetris, mas, ao ver as pessoas na fila, me senti um bosta e amarelei! E eu sinto muito ter estragado o sábado de vocês e fazerem vocês perderem seu tempo com um babaca que não consegue vencer a própria insegurança!

Coloquei as mãos no rosto e chorei mais. Parecia que ia desidratar de tanto que escorriam mágoas de mim. Os garotos ficaram sem reação. Não sabiam o que dizer para me confortar. Por alguns instantes, tudo o que se ouvia na sala eram meus gemidos de choro.

– Calma... - O Dani foi o primeiro que se manifestou. - Não pensa assim...

– Você está enxergando as coisas de uma forma errada... - O Henrique comentou.

– Você estava tão feliz na Tetris... Onde está aquele Rafa? - O Léo perguntou.

– Ele não existe! - Respondi. - Eu estava daquele jeito porque tudo era novidade, porque realmente achei que, finalmente, começaria a ser aceito e querido por amigos e por um grupo... Mas, vendo vocês aqui, tão jovens... Eu percebi que a minha época de descobrimento já passou!

– Como assim, "já passou"? - O Vitor perguntou.

– É! - O Dani complementou. - Não tem essa de "época"!

– É claro que tem! - Respondi. - Todos os adolescentes tem aquela fase de começar com os namoricos, as paqueras e tal. Enquanto todo mundo da minha escola estava desenvolvendo relacionamentos, eu estava encostado numa parede, no canto da sala de aula! Porra, eu lembro de garoto de treze anos da minha escola pegando várias meninas enquanto eu só fui fazer isso com vinte e cinco anos! VINTE E CINCO!

– A idade não tem nada a ver! - O Léo falou, imediatamente. - Não existe uma regra para quando deve-se perder o BV!

– Mas você acha que eu só beijei agora porque quis? - Perguntei, misturando palavras com soluços. - Não! Eu sempre quis beijar meninos, desde que me aceitei, mas eu era cagão demais pra ir atrás disso. Era medroso demais para procurar amigos gays, para ir em festas gays e ficar com vários meninos. Ninguém sabe o quanto eu queria isso, ninguém sabe o quanto dói ver os outros conseguindo isso tão facilmente e você não...

– Veja pelo lado bom, Rafa! - O Dani disse. - Você conseguiu isso. Você pegou vários caras na Tetris, se jogou na pista, bebeu todas, realmente se divertiu como você sempre quis... E não tem problema que tenha sido com vinte e cinco anos! Não existe idade para ser feliz!

– Sem falar que você é só dois anos mais novo que eu! - O Vitor engatou na fala do Dani.

– Eu sei, mas é diferente! Você tem vinte e três mas já está vivendo com amigos, namoros e ficadas desde a adolescência! Eu não! Eu sou como um adolescente de doze anos que está descobrindo o mundo das relações agora! A diferença é que eu já estou velho demais pra isso!

– Não tem essa de velho demais. - O Henrique comentou. - Tem homem que só se assume depois dos cinquenta e vai curtir a vida.

– E tem mais! - O Léo disse. - Você é jovem e bem sucedido! Não importa se não teve amigos antes. Saiba que somos seus amigos agora.

– É, não adianta ficar vivendo tristezas do passado. - O Dani concordou.

– Isso é muito difícil, Dani... - Comentei, olhando par ao chão. - Isso é muito difícil quando o seu passado é, praticamente, constituído de tristezas.

– Ora, não pense assim! - O Henrique aconselhou. - Com certeza aconteceram coisas boas com você!

– Não, não aconteceram! - Retruquei. - Nem todo mundo é como vocês que sempre tiveram amigos, sempre foram felizes, que sempre foram bonitos, que sempre pegaram vários caras, que sempre tiveram um ombro pra chorar, que sempre tiveram vários amigos no aniversário, que sempre foram aceitos... - Meu coração apertou muito forte. - Nem meus pais eu tenho! Desde que me assumi eles passaram a me tratar como um estranho! Não conversamos por muito tempo. Sabe, uma conversa sincera, não por educação! Eu mal os vejo e eles nunca me visitam! Quando eu me assumi eu estava morrendo de medo de eles terem uma reação ruim. E sabem o que aconteceu?! EXATAMENTE ISSO!!!

Os garotos prestavam atenção preocupados comigo. Queriam ajudar, mas sabiam que, naquele momento, o melhor para mim era botar tudo pra fora. Por isso não me interrompiam. Continuei:

– Havia um gay na minha faculdade e, vendo aquele garoto se dar tão bem com todo mundo, pensei que poderia haver uma chance de meus pais acharem normal. Seria tão bom tirar aquele peso das costas!

Então, um dia, estávamos almoçando e começaram a falar sobre transexualidade na televisão. Logo emendaram para o tema LGBT. Eu já estava ensaiando há muito tempo e pensei que aquela poderia ser a oportunidade perfeita. Me preparei e falei:

– Mãe, pai. Eu... Eu quer conversar com vocês.

– O que? - Minha mãe perguntou.

– Eu... Bem, eu não sei como dizer isso... - Meu coração batia tão forte que chegava a doer no peito. - Vocês sabem que eu nunca tive uma namorada...

Eles olhavam sem entender aquilo. Ou entendendo e rezando, mentalmente, para que não fosse aquilo.

– Eu já vi algumas meninas bonitas... Mas... Mas nunca pensei em namorar com elas...

Minhas mãos suavam e meu rosto queimava. Meus pés estavam frios e alguma coisa no meu estômago não parava de revirar-se.

– Ah, relaxa, Rafa! - Meu pai falou. - Não fica preocupado com isso não. Você não vai morrer virgem. - Meu pai riu. - Eu só conheci sua mãe aos vinte e nove anos! Você ainda vai encontrar uma menina que você goste.

– Bem... É que... Eu nunca quis namorar com nenhuma menina, mas não é por isso... É porque... Eu... Eu não gosto de meninas.

UFA! Foi! Finalmente eu havia tirado da minha garganta a maior pedra que já havia se instalado lá.

– Ué? - Minha mãe riu para meu pai. - Se não gosta de menina, gosta do quê? De cachorro? Hahaha!

Ok, eu achei que, depois de ver uma matéria sobre LGBTs, isso seria bem óbvio. Mas tive que explicar bem claramente, como se fosse para uma criança:

– Não, mãe. Gosto de meninos.

Pronto. Foi o que bastou para a gargalhada da minha mãe aumentar. Ela ria como se tivesse houvido a melhor piada do mundo.

– AH! Agora eu entendi! Você viu a matéria dos travestis e quer brincar com a gente! Hahahaha!

Olhei para o meu pai. Ele estava sério. Olhava para mim e para minha mãe sem esboçar nenhuma reação.

– Marta, eu acho que ele não está brincando... - Meu pai disse.

– Imagina, Carlos! É claro que está! Hoje em dia essa coisa de ser viado tá tão comum que ele achou que iríamos cair nessa! - Minha mãe virou-se para mim e disse: - Mas eu te conheço desde que você nasceu, pilantrinha! Eu sei quando você está mentindo.

Ela pegou os pratos e saiu da mesa. Foi para a cozinha e ficamos apenas eu e meu pai na sala, onde havia uma mesa de jantar.

Meu pai ficou olhando para mim, sério. Ele não sabia se era verdade ou se era uma piada, como minha mãe achava. Lembro-me perfeitamente do bigode dele me encarando.

– Rafael, esse tipo de brincadeira não é engraçado.

– Pai... Não estou brincando...

Ele continuou me encarando por mais um tempo. levantou-se devagar e subiu para o quarto, sem falar uma só palavra. Eu fiquei ali, na mesa, sozinho, querendo me matar por ter saído tudo errado!

Nos dias seguintes, meu pai mal falava. Nem com minha mãe, muito menos comigo. Todos os dias minha mãe me via e me perguntava:

– E aí? Vai ficar nessa até quando?

Uma semana depois, ela ainda insistia:

– Você não dá o braço a torcer mesmo, não é?! Já perdeu a graça, Rafa.

Eu queria falar que não era piada. Mas, cada vez que ela tocava no assunto, eu só conseguia sair da vista dela para não enfrentar o problema. Nunca passei tanto tempo no banheiro quanto naquele período. Toda madrugada eu entrava lá, me trancava, sentava na privada com a tampa fechada, abraçava os joelhos e chorava. Chorava baixinho para eles não ouvirem.

Porra, demora tanto pra conseguirmos criar esta coragem. Demora tanto pra aceitarmos que somos assim, que somos pertencentes a uma classe que está destinada a sofrer. Demora tanto pra conseguirmos falar isso para nossa família, que é nossa base na vida. E dói muito ver toda esta construção ser jogada fora, como uma onda que desmancha um castelo de areia.

Na segunda semana, minha mãe já não falava mais sobre a tal ~piada~. Percebi que ela começou a falar cada vez menos comigo, como meu pai já estava fazendo desde aquele almoço.

O clima na casa havia ficado cinza. Só conversávamos o mínimo necessário. Cada um passava o dia em um cômodo, evitando contato com os outros. A única coisa que fazíamos juntos eram as refeições.

E foi numa dessas, num jantar silencioso, que, de repente, minha mãe parou de comer, bateu as mãos na mesa e perguntou:

– Rafael, agora chega! Eu não aguento mais isso. Seja totalmente sincero comigo: você é boiola?

Fiquei pálido. Logo depois o sangue no meu rosto me deixou vermelho. Depois verde. Depois azul. Depois amarelo. Depois todas as cores ao mesmo tempo. O que deixava mais do que na cara que sim, eu era.

– Não, mãe... - Me irritei com aquela palavra pejorativa que ela havia usado.

Senti que os ombros dela desceram levemente quando falei aquilo. Ela liberou a tensão que havia guardado por algumas semanas. Foi então que, num ato de raiva pela negação dela, pelo distanciamento do meu pai, pela falta de apoio deles e pela palavra usada por ela, completei com uma voz firme:

– Eu sou homosssexual. Gosto de homens sim. Gosto hoje e desde que nasci.

Em questão de segundos, os olhos tranquilos dela se tornaram rios que transbordavam. Ela começou a chorar escandalosamente, com a mão no rosto para esconder a vergonha de ter um filho ~boiola~.

– Por que? Por que comigo?

Meu pai a amparou, olhando com raiva para mim e brigando:

– OLHA O QUE VOCÊ FEZ COM SUA MÃE, RAFAEL!

Ele não estava bravo por eu ter feito aquilo com minha mãe. Ele estava apenas colocando a raiva dele para fora. Esta raiva que ele estava guardando há semanas, também.

Eles subiram e, mais uma vez, fiquei sozinho na mesa. Fui para meu querido banheiro e chorei. Mas não era um choro como os outros. Era um choro de tristeza e, ao mesmo tempo, orgulho. Orgulho por ter sido firme. Orgulho porque agora eu sabia que eles haviam entendido que não era brincadeira e não tinha como mudar aquilo.

Eu nunca havia falado nada disso para ninguém e, agora, esta que era uma das minhas mágoas mais íntimas havia sido compartilhada com aqueles quatro garotos. As lágrimas no meu rosto queimavam em lembrar esta tragédia. Falei a eles que meu pai parou de pagar minha faculdade depois daquilo.

– Eu não quero culpá-los... - Falei aos garotos. - Mas acredito que, se eles houvessem me apoiado, eu não teria me fechado tanto. Eles eram as pessoas que eu mais amava, as pessoas a quem eu confiei meu segredo mais profundo... A reação deles só fez com que eu me tornasse mais inseguro e com medo de tudo... É por isso que ver vocês tão bem sendo gays e expressando suas sexualidades desde tão cedo me causa tanta dor... Eu queria ter sido aceito assim como vocês... Pelo menos pelos pais...

Fiquei lá, chorando como uma criança, enquanto eles se entreolhavam.

– Rafa... Não é bem assim... - O Dani falou.

– Se assumir não é fácil para ninguém. - O Henrique complementou.

– Mas com certeza foi mais fácil para vocês! - Retruquei. - Ou então não estariam tão bem assim!

Mais silêncio.

– Rafa... Nós... Eu... - O Dani estava relutante em dizer algo. - Gente... - Ele falou com os outros garotos. - Eu estou realmente disposto a ajudar o Rafa e fazê-lo se sentir melhor... Eu vou falar para ele como foi o dia em que me assumi para os meus pais... Eu respeito a intimidade de cada um, claro, mas acharia legal se vocês também fizessem isso...

– Por mim beleza. - O Henrique falou.

– Olha, eu... É que... Não, beleza. Beleza, eu conto também. Se é pra ajudar ele, tranquilo. - O Vitor disse.

Nós quatro olhamos para o Léo. Ele estava quieto, olhando para o chão, mexendo no colar que usava.

– Léo, tudo bem pra você? Não precisa falar, eu, o Henrique e o Vitor já vamos falar...

Silêncio. O Léo olhava para o chão, sem dizer nada.

– Gente, obrigado, mas não precisa. Não quero que vocês exponh...

– Tudo bem. - O Léo me interrompeu. - Mas com uma condição...

Ele olhou para mim e finalizou:

– Eu começo!!!


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Notas finais do capítulo

E ai, bebês?

Como se sentiram em relação à história do Rafa?

E de qual garoto estão mais ansiosos para saber como foi "a conversa"???

Obrigada por lerem!

Beijo!



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