Tetris escrita por Stefani Niemczyk


Capítulo 14
Sexta-feira.




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Beijei minha mãe no rosto e fui em direção à porta. Ao sair de casa, ouvi um "se cuida" vindo da cozinha. Passei pelo portão e continuei andando, em direção à estação de trem.

De lá, eu pegava o metrô e ia até o centro de São Paulo. Não gostava de mentir para minha mãe. Mas eu não tinha outra opção.

Encontrava os meninos numa lanchonete onde comíamos alguma coisa. Não dava para cair na noite de barriga vazia. A Rosa, dona da lanchonete, até já nos conhecia. Quando não aparecíamos lá, ela estranhava. Várias vezes nos deu Halls de graça.

Saíamos de lá umas nove da noite e subíamos a avenida. Nós cinco íamos nos acabar em dançar, beber, namorar, fumar, rir, vomitar e lembrar de tudo ou quase tudo no dia seguinte, rindo mais ainda.

O que tem de errado nisso? Cinco adolescentes curtindo a vida como se o mundo fosse acabar. Isso existe desde que o mundo é mundo! Um tomando conta do outro pra não passar do ponto ou fazer besteira.

Voltávamos às seis da manhã e, com fome, passávamos num Habib's que havia ali perto. Nós e a balada inteira. A Rosa só abria às onze, então não dava para irmos lá.

Eu chegava em casa perto das sete e meia e caía na cama do jeito que estivesse. Só tirava os sapatos e a camiseta, nas vezes que voltava suja por cerveja ou vômito.

No sábado, dia seguinte, eu dormia o dia todo e minha mãe nem ligava. Só ia acordar lá pra meio-dia ou uma hora, com o som da panela de pressão anunciando o almoço. Só então eu tomava banho e me trocava.

Depois saía com a família ou fazia as tarefas da escola. Claro que, durante a noite, ficava no MSN conversando com os meninos sobre todos os vexames e conquistas da noite anterior. Sempre atento para fechar as janelas do programa caso ouvisse os passos de alguém no corredor.

A vida estava ótima. Sofrendo com fórmulas, gramáticas, nomes e pressão escolar durante a semana e, na sexta à noite, deixando todo este estresse sair. Meu dia favorito na semana, claro. Era a única coisa que me fazia pedir dinheiro para os meus pais. Eles nunca foram chatos com isso.

No terceiro ano do Ensino Médio eu já tinha colecionado mais PTs que notas vermelhas na escola. Eu não era um péssimo aluno, mas não estava entre os primeiros da sala. Apesar de toda a pressão "fim da escola e vestibular", eu estava tranquilo.

Não sabia o que seria interessante fazer na faculdade, nem se eu chegaria a fazer faculdade. Não pensava sobre isso. Eu vivia o momento. Minha realidade se estendia até a sexta-feira mais próxima. E, assim, eu fui vivendo aquele ano. Toda sexta na balada.

Aquela rotina era tão comum que eu nem me lembrava mais como cheguei a ela. Só sabia que toda a vergonha, medo e ódio que eu sentia na escola eu colocava pra fora nas vésperas de final de semana. Isso fez com que aquele local, aquele bairro onde eu descia do metrô, ia para a Rosa, para a balada, para o Habib's, me fizesse me sentir seguro.

Ali não tinha que me esconder, me policiar o tempo todo, reter meus gestos, prestar atenção na minha voz, não olhar aquele menino bonito passando por mim. Era o único lugar do mundo onde minha mente relaxava e deixasse que eu não explodisse de estresse.

Antes da balada abrir, todo mundo ficava do lado de fora. Fosse para fazer fila, esperar alguém ou só ficar caçando, a rua virava uma zona gay sem restrições. Não tinha por que tentar parecer hétero ali, já que sempre havia alguém "mais gay" que você. Eu me soltava e deixava meu verdadeiro eu aparecer.

Estávamos lá, nós cinco, certa noite, quando senti alguém pegar no meu braço e segurar forte. Olhei para trás e congelei por dentro quando percebi dois mundos distintos se colidindo numa fusão que não tinha como acabar bem.

Humilhantemente, fui arrastado até em casa por este homem que me puxou pelo braço por toda a rua, na frente de todo mundo. Chegamos em casa e ele, se lamentando de ter um filho como eu, contou tudo para minha mãe e meu irmão.

Ele sempre voltava mais tarde, bem depois de eu sair de casa na sexta-feira. Enquanto eu me acabava na balada, ele se acabava em bares. Aquela região era, sim, cheia de bares e botecos em volta, mas era muito longe de casa. Nunca imaginei que ele fosse passar por ali.

Bem, ficar se lamentando não adiantaria em nada. Não pude negar, ele havia me visto enquanto um outro cara agarrava minha cintura. Aquele dia foi um show de emoções. Minha mãe começou a chorar, meu pai ficou nervoso, falando os piores xingamentos e meu irmão parou de falar comigo.

Para um adolescente do Ensino Médio, isto é muita pressão. Nos dias seguintes, minha mãe sempre estava com olheiras, por passar a noite chorando. Agora, andava com um rosário nas mãos como se, a todo momento, pedisse a Deus que me curasse.

Meu pai não perdia a chance de vomitar sua homofobia sempre que podia. De xingamentos à agressões verbais, eu sofria calado, por serem eles a autoridade ali.

Meu irmão fingia que eu não existia. Se pedisse para que me passasse algo quando estávamos à mesa, ele continuava comendo como um surdo. Eu tinha que me levantar, dar a volta e pegar.

Não é de se espantar quando digo que saí de casa assim que me formei. Nos últimos meses do colégio, enquanto todos estavam se preparando para o vestibular, eu estava procurando um emprego e um apartamento para alugar.

Consegui depois de quatro meses sendo tratado como lixo no lar que me criou. Nunca mais nos falamos. No começo foi difícil, chorei muito. Mas estes garotos aqui estavam lá para me ajudar e fizeram tudo ser mais fácil. Até hoje fazem, apesar de que, agora, não sinto mais falta da minha família.

Aprendi, mesmo sendo do modo mais difícil, que não vale a pena se preocupar com quem não se importa com você. Muita gente fica espantada de eu falar isso sobre minha família, mas eu acredito que família é um laço de afeto que, não necessariamente, dividem laços sanguíneos. Se me perguntam, não digo que não tenho família, pois tenho sim. E ela está bem aqui, nessa sala, conosco!

O Léo terminou de falar com um sorriso no rosto. Minha expressão, porém, era de surpresa. Ele era tão bem resolvido, tranquilo e animado que jamais imaginaria que havia passado por tudo isso. Nunca havia parado para pensar o motivo de ele morar sozinho.

Eu estava me sentindo péssimo por ter falado tudo aquilo para eles. Julguei que tudo havia sido um mar de rosas para todo mundo e só eu era o coitado da vez. Além disso, me senti mais covarde ainda por ter passado algo que não foi tão ruim quanto a história dele e, mesmo assim, ter deixado meus medos me impedirem de ser feliz.

– Léo, desculpa, eu não sabia que...

– Não precisa se desculpar de nada, Rafa! - Ele falou, ainda com um sorriso no rosto.

Era muito triste saber que um menino honesto, divertido e sincero como ele havia sido maltratado pela própria família. Ele tinha um sorriso lindo e os olhos claros estavam maravilhosos na luz que vinha da janela.

O que o deixava mais admirável ainda era saber que, mesmo tão novo, ele já sabia o que era importante na vida e já havia aprendido que era jovem demais para sofrer. Sabia que ainda tinha a vida toda pela frente e havia tomado uma atitude para viver de acordo com o que achava certo.

Ele era tão novo e eu já sentia que era bem mais maduro que eu.

O ato de se expor assim, para um quase desconhecido como eu, mostrava mais maturidade ainda. Tratava de um dos assuntos mais tensos de sua vida com tamanha naturalidade que me provava que ele estava bem com isso. Ele aprendeu a ser assim. A ver as coisas pelo lado bom, por pior que pareçam. Eu queria ser assim um dia. Quem sabe, andando com eles, eu não aprenderia a ver as vida sob este ângulo?


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Notas finais do capítulo

Oie, chuchus! (afe, chuchu é ruim, foi mal!)

O que acharam da história do Léo???

Ah, e me digam mais uma coisa: ficou muito brusca a transição da fala dele para o pensamento do Rafa? Se ficou confuso, me avisem!!!

Obrigada por lerem!

Beijões!



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