O dia em que aprendi a voar e outros contos escrita por Ana Gabriela Pacheco


Capítulo 7
Amigos de Verdade


Notas iniciais do capítulo

Pra quem gosta de ler ouvindo música:
Already Gone - Sleeping At Last
Lullaby - Sleeping At Last.

Para todos aqueles que têm amigos de verdade.



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Meu nome é Charlie, eu tenho doze anos.

Quando eu era menor, tipo, quando tinha uns seis anos, me mudei. Naquela época não sabia muito bem o que estava acontecendo, mas acabei ficando triste e sozinho.

É difícil ficar sozinho, na verdade é meio chato. Você sente como se o mundo estivesse em movimento e só você estivesse parado, nem mesmo respirando. Minha mãe dizia que ficar sozinho tornava-nos responsáveis por nós mesmo, mas tornava-nos inúteis. Meu professor de literatura clássica, o Senhor Owen, dizia que minha mãe era maldosa comigo. Acho que ele fala isso por preocupação, afinal era o único garoto sozinho da sala.

Fiquei sozinho até meus oito anos, porque em um dia, na verdade no dia do meu aniversário minha mãe fez uma festa no quintal e convidou todos, mas ninguém veio. Depois que ela foi dormir, fiquei olhando pro bolo com as velas apagadas no quintal e três crianças colocaram a cabeça na cerca.

Eu realmente fiquei surpreso, três meninas pularam minha cerca e ficaram em pé, numa fileira. Mal sabia eu que elas se tornariam parte do meu ficar sozinho.

Realmente, depois dessas garotas descobri que ficar sozinho era questão de percepção. Se prestarmos bem atenção, todos nós estamos sozinhos, mas quando nos juntamos, ficamos menos sozinhos. Claro que não significa que ainda não estejamos sozinhos, pois estamos. Estamos sozinhos conosco, com a alma e pensamento, acho que são coisas que não se juntam, mas ainda sim, com elas, o meu eu sozinho se tornou menos sozinho.

Lembro desse dia até hoje, elas continuaram em pé olhando pra mim que estava de pé em um banquinho para a mesa alta do bolo. Eu provavelmente estava com os olhos bem arregalados e com o queixo caído.

Uma das garotas era ruiva, ela usava uma roupa escura de ninja e quando sorria suas bochechas subiam junto com as sardas, ela tinha uma espada de brinquedo azul pendurada nas costas. A do outro canto, usava um vestido branco e tinha uma coroa de flores no cabelo, lembro-me que depois de ter pulado a cerca, ela tirou do bolso do vestido um curativo da hello kitty e colocou no joelho, junto de outros curativos. A do meio, provavelmente a menor entre elas, estava com uma blusa preta com o morcego do Batman desenhado e um shorts que ela vivia puxando pra cima.

A ruiva e mais velha me disse no dia :'' Feliz aniversário Charlie. Meu nome é Kiara.''

A do meio que parecia ser a mais doce entre elas disse: '' É, feliz aniversário, mas não se anima muito não.''

E a menor fez um sinal de dois com as mãos e disse: '' Charlie, eu também desejo um feliz aniversário...Olhe só, eu sou a Alice e ela é a Violeta.''

Eu ainda estava surpreso, mas depois de tanto tempo desde que havia me mudado, eu sorri. Pela primeira vez, na frente de alguém. De três alguém. Sem contar quando sorri pro homem que vendia algodão doce, mas isso não vale.

Naquele dia sorri tanto que achei que minha boca ia cair. Elas se desculparam por não trazerem presentes e eu disse que estava tudo bem. O que eu não contei é que eu não precisava de presentes, já tinha elas.

Elas quiseram brincar e ficamos a noite inteira brincando, destruímos a pinhata, estouramos balões, jogamos bolo na cara um do outro e até mesmo bebemos refrigerante de cabeça pra baixo.

Kiara, a mais velha me ensinou técnicas ninja de fogo e da neve, o clã onde ela treinava. Violeta me ensinou a fazer coroa de flores, mas disse que se eu quissesse podia fazer de espinhos e machucar alguém. Alice, que tinha apenas seis anos, quis me ensinar a subir em árvores e ela realmente ensinou bem, eu nunca tinha subido em árvores, pequena e com facilidade, ela subia nos galhos mais altos e ficava de cabeça pra baixo e braços cruzados como se fosse um morcego, era engraçado.

Elas foram embora no amanhecer, perguntei onde elas viviam e disseram que era em um bairro do lado. Elas estudavam em escolas diferentes, mas os pais delas eram amigos. Além de tudo isso, elas o viram sozinho e decidiriam brincar.

'' Charlie, podemos nos tornar amigos?'' Disse a pequena Alice.

''Claro, claro, claro que podemos!.'' Eu sorria alegremente.

Ela me deu o dedinho dela e eu dei o meu, fizemos um juramento. Depois daquele dia, sempre depois da aula, brincava com elas no quintal ou no quarto. Quando minha mãe chegava do trabalho elas já haviam ido, pulando a cerca, eu contei pra minha mãe e ela disse que não havia problema desde que não entrassem no quarto e pegassem as coisas dela.

Foram estações maravilhosas; no outono, aprendi a subir nos galhos mais altos das árvores com Alice. Na primavera, fiz coroas de todos os tipos de flores que encontrava para Violeta e no inverno, fiz um iglu ninja de neve com Kiara.

Todas elas eram legais, minhas melhores amigas. Sempre foram. Sorriam comigo e sempre diziam que iam ser minhas amigas pra sempre, convidei elas pra irem na festa de fim de ano na escola, assim poderíamos brincar lá também.

Quando elas foram, conversamos, brincamos, mas as pessoas olhavam muito pra mim como se eu fosse louco. Acreditei que era porque estava andando com três meninas e por ser o único menino, provavelmente era meio deslocado.

No meu aniversário de dez anos, elas vieram também. Minha mãe veio conhecê-las, mas depois prefiriu ficar no quarto. Sempre pensei que era porque era o momento das crianças brincarem, mesmo depois de vê-la chorando na cozinha, dizendo meu nome baixinho, baixinho...

No ano seguinte, ela me levou para um médico. Ela disse que ele faria apenas uma consulta e que se tudo estivesse bem, eu não voltaria. Eu realmente estava bem, aliás bem demais, feliz e saudável.

Mas eu tive que ir durante o ano inteiro, o médico nunca tocava em mim ou me dava remédios, simplesmente conversava e perguntava sobre minhas amigas. Perguntava se eu podia trazê-las, se ele podia conhecer elas, era um cara muito chato, não levei elas lá.

No meu aniversário de dez anos, arranjei um amigo chamado Terry. Terry era diferente dos outros garotos, também tinha amigos em outros lugares, tinha acabado de se mudar e se sentia sozinho. Juntei meu sozinho com o dele, ficamos sozinhos juntos na escola.

Era divertido, eu contava pra ele sobre minhas aventuras com as garotas e ele ria comigo. Disse pra ele que Alice era a menor de todas, que Kiara era de um clã ninja do fogo e que Violeta detestava violetas.

No outono, Terry foi a minha casa e esperei Kiara, Violeta e Alice. Quando elas chegaram, Terry olhava e ria, mas logo depois que eu o enchi de perguntas como; '' Por que está rindo? O que tem de engraçado?''ele olhou pra mim como se eu fosse um louco, foi embora, mas depois de um longo tempo nos entendemos e dissemos que seríamos melhores amigos.

Nunca entendia esses sinais, mas ainda no inverno próximo do meu décimo aniversário, eu estava feliz. Brincava de guerra de neve com Terry e as garotas estavam na árvore, quando Alice escorregou e caiu.

''Alice!'' Eu gritava o nome dela desesperado, Alice era a mais nova e a mais engraçada, ela sorria por tudo e sempre fazia piadas, até mesmo com as coroas da Violeta.

Terry olhava em volta, perguntando '' O quê? O quê aconteceu?''

Alice estava parada, completamente bem. Ela até sorria;

'' Ei, Charlie. Está tudo bem, não precisa mais chamar meu nome.''

Eu não estava entendendo como ela tinha ficado bem mesmo depois de ter caído de tão alto.

'' Charlie, precisamos ir agora.''

''Oh, tudo bem, vocês irão vir de novo, não é mesmo?''

Eu sempre me odiei por dizer aquilo, por perguntar aquilo.

'' Não Charlie, hoje é nosso último dia aqui.'' Violeta disse cabisbaixa, tirando finalmente a coroa de flores, que ao colocada no chão, murchou rapidamente.

'' O que estão falando?''

'' Charlie, me desculpe, me desculpe mesmo, mas é assim que as coisas funcionam. Pra isso que existimos, pra você. Mas você completou sua missão.'' explicou Kiara.

''Que missão, do que estão falando?É uma brincadeira?'' perguntava, com lágrimas nos olhos.

'' Charlie, por favor, entenda... Precisamos ir.''

'' Me desculpe, vamos garotas.'' Kiara terminou e se virou.

''Espera...Por favor....Espera..."

" Charlie, não somos reais. Existimos por um único motivo; você. Você completou a missão e então precisamos ir.'' Violeta disse, sorrindo ao dizer que ele era a missão delas.

'' Alice acha que Charlie foi a melhor missão dela!'' Alice levantava os braços quando dizia. '' Foi por que Charlie precisava aprender, que Alice existiu.'' Ela terminou, chorando.

'' Vocês.... Nunca....Nunca existiram?''

'' Existimos se você acredita que existimos. Seremos amigas se você confiar na amizade ou seremos só lembranças se quiser deixar ir.'' Disse Kiara.

''Obrigada Charlie, pelas coroas de flores.'' Disse Violeta, que começava a se desfazer e virar pequenas flores roxas '' Eu odeio violetas..''

'' Obrigada Charlie, agora, procure seu clã.'' Kiara sumia logo após olhar Terry, num sopro de vento que soava como música.

'' Papai do Céu, obrigada por me trazer a Terra mais uma vez e me fazer conhecer o meu melhor amigo depois do Senhor.'' Alice estava com as mãos juntas e quando acabou veio até mim sorrindo. '' Charlie, pare de chorar. Tenho uma coisa a te pedir, por favor, não nos esqueça. Sou criança e posso não conhecer o mundo de gente grande, mas sei que quando eles ficam grandes não lembram de como eram felizes crianças.''

'' Não irei esquecer.''

'' É bom mesmo. Charlie, sempre que subir em árvores lembre de mim, pode ser? Ah, não se esqueça, somos os melhores amigos, pra sempre!.''

Ela levantou o pequeno dedinho perto de mim, eu não queria, mas acabei jurando de mindinho.Eu realmente jurei.

As três pessoas que mudaram as estações minhas estações, tinham sumido, elas eram importantes como os ossos do corpo. Demorei pra perceber que elas tinham sido enviadas por Deus, aquele Deus pra quem eu pedia toda noite que me enviasse um amigo e que na falta de um, me enviou três.

Ninguém mais às via, nem mesmo Terry. Nem mesmo minha mãe.

Aquele Charlie que com oito anos sorria tanto que ia quebrar os dentes havia sumido. O Charlie que via o mundo bonito, que dizia tudo ao Senhor Owen, sumiu por um longo tempo.

Mas eu estou aqui e estou bem, quando acordo todos os dias agradeço por tudo que me aconteceu. Sorrio todos os dias, torço pra não me lembrar de nada que me faça chorar, mas é isso. Eu não tornei elas minha lembrança, tornei elas o que de fato elas sempre foram, minhas melhores amigas.

Eu olho pras folhas do outono e lembro de Alice, olho pra Primavera e faço coroa de flores, deixando-as perto da cerca e no inverno sempre faço iglus, sei que elas estão lá. Elas sempre estarão aqui comigo.

Eu estou sozinho, mas estou sozinho com elas. Juntamos todo aquele sozinho e transformamos em um ''Estamos juntos!'', elas podem não ter sido verdadeiras, mas de fato, foram reais. Elas podem não existir, mas pra mim sempre existirão.

No final, o eu sozinho sempre achou que não era real. Sempre achei que eu era o de mentira e que elas eram de verdade. Eu sou o Charlie que nunca pensou em existir de verdade, que sumiu do repleto tudo, para o nada de todo dia.

Mas hoje, em dias como esse em que eu completo doze anos. Percebo que não foi uma fase, foi minha vida. É minha vida.

Estou olhando pra cerca nesse momento em que escrevo essa carta, a cerca continua com coroas de flores nela, continua sem que ninguém pule por ela. Mas eu não preciso disso, não preciso que elas estejam presentes para que as sinta.

Eu fecho os olhos e me vejo brincando, de olhos fechados lágrimas caem dos meus olhos, mas a música nos meus ouvidos ainda me diz;

'' Somos os melhores amigos, pra sempre!''


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