O dia em que aprendi a voar e outros contos escrita por Ana Gabriela Pacheco


Capítulo 17
A Fórmula da Organização


Notas iniciais do capítulo

Resolvi postar meu novo interesse por aqui, essas coisas que escrevo, diferente do que escrevia, mesmo que ninguém leia.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/577819/chapter/17

Tinha uma moça chamada Lívia, que uma vez me contou que tinha um jeito muito fácil pra ela de organizar a vida. Eu pensei que era bobagem, uma moça desconhecida no ônibus, no trajeto pra casa, me dar a fórmula pra resolver a vida. Eu perguntei qual era e ela me contou uma história dela, vou dividir com vocês.

Ela disse que era a mais nova de três irmãs. Não tinha mãe há anos e o pai trabalhava demais. A vida era um caos, assim como a casa. Para ela e para as irmãs, a casa tinha sido abandonada com a ida da mãe, que era o coração de tudo. Conforme ela ia contando eu já não tinha certeza se no tom que ela contava, ela queria dizer que a mãe não era o coração e sim a empregada da casa. Mas de qualquer forma, as outras duas irmãs, mais velhas e cheias de responsabilidades tomaram seus rumos.

Uma das irmãs namorava sério, era fiel a um relacionamento duradouro de anos. A outra estava noiva, fazia pouco tempo, mas tinha certeza em seu coração que seria uma esposa feliz. As coisas, que já eram bagunçadas na ótica da Lívia, se tornaram ainda mais bagunçadas quando Vênus decidiu dar uma volta por aí com os matrimônios. A irmã do meio, desmanchou o noivado onde seria a esposa feliz. A irmã mais velha deu um tempo do relacionamento duradouro de anos e as duas decidiram que era uma nova fase.

A irmã mais velha, que Lívia apelidou carinhosamente de Titi e falava como se eu conhecesse Titi há anos, foi em cartomante, igreja, centro de umbanda bater tambor e até tomar um passe no centro espírita pra ter certeza de que o “tempo dado” no namoro de anos era o correto. A casa ainda estava bagunçada. Para piorar o pai dela arranjou dois periquitos australianos, um amarelo e outro azul, que piavam o dia inteiro por conta do barulho da máquina de lavar. Quem limpava a gaiola era a Lívia.

A irmã desmanchou o noivado e surgiu com um gato. Não um homem gato, bonito e formoso no lugar do ex-noivo, mas sim um gato animal. Se chamava Gerônimo e era pequeno como um sapatinho de bebê. Tinha sido o último gato de uma ninhada de filhotes do gato do ex-noivo. Ninguém queria o Gerônimo e então a irmã do meio, a Fa, decidiu que ia levar ele para casa porque não poderia deixar uma coisinha tão bonitinha daquelas sem lar.

Acontece que todo mundo trabalhava, fazia da vida mais caos que era e ninguém tinha tempo para o Gerônimo. No fim, ele gostou da Lívia e aí, Lívia cuidava dele.

A casa era bagunçada, o sofá estava quebrado e cheio de nós quando se sentava. A televisão não tinha mais Tv a cabo, porque quem assistia era a mãe da Lívia, vendo novela. As plantas tinham morrido e elas ainda tinham uma cadela velhinha que estava começando a ficar cega, que não se deu nada bem com Gerônimo.

Os quartos pegavam pó. A estante de livros da Lívia não era limpa há meses, anos talvez. Nenhum livro ali era lido, doado, emprestado ou tocado. O caos era demais para se concentrar em qualquer literatura chupim e romântica das que Lívia gostava. E se o mundo já não era mais o mundo fofo que era quando ela era criança e os livros iguais podiam ser lidos em uma casa limpa e iluminada, Lívia começou a se perguntar onde seu gosto por literatura, ainda que genérica, foi morrendo. E a culpa, ela sabia, era do caos.

Os periquitos australianos piavam e a máquina lavava roupa. Gerônimo crescia, miava, subia até na pia de lavar louça. A cadela velha, que eu já não me recordo o nome, sentava-se no sofá cheio de nós e era sempre incomodada por alguém, mais especificamente o gato rebelde. As irmãs, ocupadas demais pra olhar em volta o local que viviam.

Lívia se sentou na mesa da cozinha e disse que fitou os pés no chão sujo. A Fa estava trabalhando e Titi fazia faculdade e estágio. As duas batalhavam para “sustentar” uma casa que ninguém vivia e cuidava. O pai de Lívia chegou e contou para ela que estava conhecendo uma pessoa no trabalho, uma adorável magricela, nas palavras dele que foram ditas para ela e consequentemente, pra mim num ônibus meio vazio, ainda que eu não conseguisse imaginar nenhuma das pessoas que Lívia tinha descrito pra mim absurdamente mal, muito menos a adorável magricela.

Ele não queria nada sério, depois da mãe da Lívia e de duas namoradas caóticas e absurdamente encrenqueiras. Mas ela era legal e o divertia, apesar de magricela, o pai de Lívia disse.

Pouco tempo depois, Titi chegou e contou que tinha baixado Tinder. Sentou-se do lado de Lívia, depois de dias sem diálogo e mostrava os rapazes que rejeitava ou aceitava. Mostrou com quem deu match, mas a determinada altura, nada daquilo era absorvido pela Lívia.

“Tá bom, Lívia, mas e onde entra a fórmula da organização?” Pensei em falar isso, mas ela contava a história tão certeiramente que eu sabia que o momento da fórmula mágica chegaria, só não sabia se antes do meu ponto.

Ela então me disse que a irmã, Titi, tinha sete encontros, um para cada dia da semana e chegaria tarde todos os dias. O pai delas não sabia e nem iria, pois ele era bravo com relacionamentos joviais e já não tinha concordado com tantas mudanças no relacionamento das duas filhas. Lívia disse para a irmã tomar cuidado e ela se vestiu de um vestido “preto assassino” para roubar o coração do cara com quem tinha dado o tal Super Like.

O pai desceu cheiroso, arrumado, vestido de terno e disse que iria trabalhar. Pego numa mentira mal feita, saiu antes que ficasse constrangido o suficiente para ver a expressão de Lívia que sabia que ele não ia trabalhar. Ele tinha acabado de chegar do trabalho. E só ia cheiroso para lugares que queria realmente ir cheiroso, porque não gostava de gastar perfume, nas palavras dela.

A casa estava um caos. Os periquitos piando, a máquina lavando, Gerônimo miando e a cadela roncando num canto do sofá. O pai sai, Titi já tinha ido. Fa avisa que arranjou outro namorado e ia na casa dele sovar pão, se é que você entende a ressignificação de sovar pão para os jovens solteiros.

Lívia não aguentava mais Fa contando do novo namorado padeiro, como uma adolescente de quinze anos com o primeiro amor, por semanas e semanas. Deixou que ela fosse e pediu para que mandasse mensagem caso acontecesse algo. Ela disse que não voltaria essa noite e não era preciso esperar por ela.

Lívia me disse que olhou os próprios pés e procurou o celular pra colocar uma música pra ouvir. Gostava de ficar sozinha, mas não gostava do silêncio. O caos da casa já era barulhento os suficiente aos ouvidos dela, mas ela queria barulho bom. Naquela bagunça, perdeu o celular e decidiu que ia ouvir música no rádio verde velho.

Ficou ouvindo música alta no rádio verde velho sentada na cadeira da cozinha, olhando o quintal que ficava na porteira perto do fogão e Gerônimo tentando derrubar a gaiola com os periquitos dentro. Olhava do outro lado e tinha um sofá solitário, cheio de nós, mas com nenhuma gente.

Lívia percebeu que a casa estava uma bagunça, mas que a vida dela e das pessoas a sua volta também estavam. Percebeu que a vida dos outros era fora dali enquanto a dela era dentro. Mais que isso, percebeu que não estava sozinha, que ela era sozinha. Era sozinha já fazia tempo o suficiente para se olhar no espelho e não reconhecer a própria forma. Tanto faz se o cabelo dela estava bagunçado e sujo e se ela não via gente normal ou diferente há 3 semanas consecutivas. Ela saiu de casa para comprar arroz há um tempo atrás e viu a atendente do caixa, no momento do “boa noite, obrigada” se sentiu satisfeita por um contato humano, mas ela estava sozinha.

E caos e solidão é como bebida e remédio. Lívia virou pra mim e disse; “Aí sabe do que lembrei?”

Eu fiz que não com a cabeça.  Não adiantava chutar, era bobeira. Estava entretida na história e não fazia ideia do que viria a seguir num caos tão eloquente.

Lívia sorriu e disse com um riso entre os dentes; “da minha vó.”

Minha vó também sempre dizia, como a vó da Lívia, que quando o guarda-roupa tá bagunçado, a vida também vai estar. Tinha alguma coisa interligado entre nossa vida e as roupas que vestimos causarem uma bagunça na nossa vida se elas estiverem bagunçadas no guarda-roupa.

Lívia prometeu para si que iria arrumar a vida dela assim que lembrou disso. O jeito de fazer isso era, obviamente arrumar o guarda-roupa. Ela abriu e jeans caíram sobre ela. Moletons velhos estavam jogados onde não deveriam e roupas amassadas estavam até o teto do guarda-roupa. Lívia se assustou.

O rádio continuava tocando, a cadela no sofá, os periquitos piando, Gerônimo miando na gaiola, a maquina centrifugando, a cozinha com muita louça e o chão sujo, os armários de potes sem tampa todo revirado e a geladeira imunda. Mas Lívia estava certa de que o problema era o guarda-roupa, afinal, lema de vó sempre é certeiro.

Separou pijamas, meias e colocou numa gaveta, todos dobrados. Passou roupas amassadas e colocou para lavar roupas que não estavam sujas, mas também não tão limpas assim. Arrumou tudo pacientemente e logo, o guarda-roupa estava arrumado.

 Eu estava ansiosa, porque imaginava que ali era o momento em que Lívia me diria qual é a fórmula de organização da vida. Lívia então ajeitou as sacolas dela no colo e disse que assim que arrumou o guarda-roupa, não se sentiu menos sozinha, muito menos que a vida tinha sido organizada. Não deixou de estar sozinha, porque todos estavam fora de casa, namorando. E a casa não deixou de ficar bagunçada.

Ela se levantou, apertou o botão para descer. Desceria no próximo ponto. O ônibus estava rápido e minha expressão era incômoda. “Afinal, qual é a fórmula?” era o que meu rosto dizia. Ela olhou no fundo dos meus olhos como se tivesse percebido que eu não havia percebido a resposta e ansiava por isso para organizar minha vida também.

“Eu saí de casa também, ué. Fui ver gente organizada como você. Aqui fora é tudo arrumado, do seu modo, do modo de cada um. É essa a fórmula.”

Ela desceu, a despedida foi sua resposta. Eu provavelmente nunca mais veria a Lívia, porque ela parecia ter saído de casa para ver gente, mas todas as “gente” que pudesse por aí antes de voltar e isso não me incluía novamente, porque aí então ela veria que não sou organizada.

Cheguei em casa, abri a porta. Não tinha ninguém, mas a casa tinha uma poeira leve de que alguém que vive ali limpou e foi embora já há algum tempo. Os cachorros latiam felizes no quintal. O Frederico, o peixe, pedia comida. Acendi um incenso. A minha irmã tinha saído. A mãe, também. O pai, divorciado da minha mãe, saído por aí. Silêncio e barulho, era caos.

Olhei para o portão e vi a rua, organizada.

Fechei a porta e fui arrumar meu guarda-roupa.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O dia em que aprendi a voar e outros contos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.