O dia em que aprendi a voar e outros contos escrita por Ana Gabriela Pacheco


Capítulo 18
Juiz da Narrativa




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Conheci um homem uma vez que era extremamente presunçoso. Não que eu também não seja, todo mundo é meio que pouco ou muito presunçoso. Acontece que o homem conhecia todo mundo e sempre tinha um comentário a fazer sobre a pessoa. Não sobre sua vestimenta, nem sobre a aparência da pessoa ou seu estado de espírito, nem tanto quanto o estado emocional de alguém. Ele não se importava, muito menos eu.

O comentário era, grande parte das vezes, sobre um julgamento ou pré-conceito que ele tinha sobre a pessoa, sua personalidade e obviamente suas ações. Ele se julgava vidente do mundo, como se sentar num banco e observar as pessoas passarem fosse o suficiente para desvendar os mistérios humanos. E se era fácil para ele entender o porquê alguém deixava outra pessoa; mais velha, mais bonita ou mais grosseira passar na frente, era fácil pra ele entender o porquê alguém soava tanto debaixo do braço perto de determinadas pessoas ou o porquê algumas moças falavam tanto sobre coisas – que ele julgava -  superficiais. Era fácil demais para ele entender o que um olhar de canto significava e o que uma pessoa que apertou as mãos de um desconhecido faria a seguir. Julgar sentado no banco, como plateia não participativa da comédia grega que é a vida, era fácil, fácil demais.

A presunção estava ali, na gota de suor de alguém que passava seus dias fazendo sua vida melhor que dos outros, ter boca pra falar dos outros já o mostrava ser melhor. Dia de chuva, ele sabia que quem não abria guarda-chuva porque não o tinha certamente era descuidado, não era precavido e certamente infeliz. Sabia que as pessoas que corriam tinham pressa para chegar em algum lugar e ser bem vista mesmo molhada, porque correr de uma chuva que iria te atingir de uma maneira ou de outra era inevitável. Sua presunção o fazia pré-julgar os outros e logicamente, pressupor algo sobre alguém, onde mesmo que não dito, ele estaria melhor.

Em dia de Sol, estava ele no banco a falar para quem se sentava, que o suor que pingava era mais que suor. Que aquele que aperta os olhos para ver algo escrito esconde um medo de não ver o que está a sua frente e aquele que acaba roubando toda a sombra no ponto de ônibus, no fundo, ou nem tanto, é um tremendo egoísta.

Aqueles que passam mais de uma vez, ele cria uma história. Era fácil pra ele criar todo um passado pra uma moça e o porquê de ela ser tão magra e permanecer cada vez mais magricela perto das amigas. O passado trágico ou anêmico dela era envolto numa trava novelesca que ele mesmo criava, com sua presunção tamanha que não poderia ser substituída por um sinônimo da mesma palavra ainda que eu quisesse.

Autor de tantas histórias, as pessoas cotidianas tinham dedos apontados cotidianamente e pré-julgamentos, só aí então superficiais, sobre sua escolha de roupa consequente a um óbvio e já explicado por ele (se você estava lá ouvindo nos outros dias) desolamento ou motivo do passado.

Sim, porque usar verde toda terça não era coincidência. Devia ser porque numa terça em que a moça usou verde ela foi promovida no trabalho, ou então a fita que segurava o crachá dela não teria mudado de vermelho para azul depois de uma terça-feira do dia vinte e cinco de Março em que ela usou verde. Obviamente o verde se instalou no subconsciente daquela pequena proletariado que acreditava piamente que o verde traria, de certa forma sorte e promoção, como já trouxera outrora. E ela seguia passando e ele, pressupondo sobre ela.

E as pessoas passam e nem olham ele, afinal, o homem presunçoso era na verdade só mais um homem comum como vários outros, que vez ou outra pagamos pelos nossos pecados ao se sentar do lado deles na fila de espera do hospital, no ônibus ou no caixa lotado do supermercado. E a matraca pretensiosa, pressupõe que você, diferente de todos os outros que são comuns, quer ouvir o que ele tem a pressupor sobre os outros. E você, aí de você!, você escuta.

E todos os dias, mais presunções de todos os tipos, os mais variados motivos, as mais variadas histórias, contadas, trabalhadas, no estilo trágico de conto de fadas. E se a vida real era uma novela ou se a novela copiava a vida real, então talvez ele não fosse presunçoso e sim sabido. E vez ou outra acertava alguma presunção que tinha dito.

E eu, que sempre tive a péssima mania de ouvir quem anda comigo, ouvi sobre o presunçoso e parei para ser seu ouvido. Ouvi, ouvi. Passei a ouvir todos os dias e então, escutei. A presunção tinha tomado espaço e eu, sozinha, me pegava fazendo uma peça de teatro sobre o açougueiro que cortava carne e murmurava coisas como se pensasse na esposa com quem tinha brigado.

Eu escrevia e pensava, pressupunha que talvez, alguém estivesse sentado ali antes de mim, também escrevendo. E como era trágico! Que talvez nem eu, nem o autor antes de mim, terminássemos o que estávamos querendo compor.

E por fim, sentada entre um longo espaço, eu e o presunçoso batíamos um papo. Ele dizia o lado dele, o que queria que acontecesse para um jovem escutando música, um adolescente. Eu, por não ser tão velha, nem tão sabida, pressupus com o coração e não com a ponta da língua.

No dia seguinte, as pessoas passam, as mesmas de sempre. Animada eu, por tanta presunção, preparada por mais um capítulo daquela novela esperada que é a vida, me sentei mais perto do homem e ele me disse, se referindo a um homem que passou:

“Essa pessoa ainda existe?”

E então, num relampejo mental, percebi que tinha dias que até mesmo o presunçoso com sua presunção tamanha, ficava sem criatividade para compor a vida dos outros e esquecia de suas existências e narrativas. Tão preocupado com outras vidas, algumas iam se perdendo e só existindo, se construindo, se realinhando em outras perspectivas. Pensei que talvez fosse a hora dele entregar alguns personagens para outras pessoas.

Passa uma moça, apressada e ele resmunga, surpreso:

“Nossa, essa moça ainda existe?”

E passa mais uma moça, outra moça, um homem, uma idosa, um rapaz com o cachorro....Vão passando, com a pressa da narrativa de novela nas pernas, com a vida entre os calcanhares.

O homem que tanto falava, tagarela que só, se cala. Já estava calado antes, quando a segunda moça passou. Olhei nos olhos dele, que presunçosos, não olhavam os meus.

“O quê está pensando?” Perguntei.

“Na minha vida.” Ele me respondeu, bem seco.

Olhei para ele no banco. Olhei para mim. Olhei para as pessoas passando. Todos ali, pensando muita coisa sempre, a todo tempo, pressupondo sobre os outros e vivendo seu momento. Acho que a presunção se colocou tão acima de todos, que o homem nunca tinha feito isso, parar de pressupor sobre os outros e olhar para quem ele era e que narrativa construía para si.

“E como é?” Perguntei, desajeitada no banco com tanto pensar.

“Como você supõe que é?”

“Suponho, baseado na minha vida, que você se pergunte como ainda existe.”

“Correto.”

Eu me levantei e fui embora, não fiquei para ver a expressão do homem, sua presunção e as futuras narrativas que usaria nos outros para poder viver sem sair do banco. Fui viver minha vida pensando o que sempre pensei de quem já conhecia e me preparando para pensar coisas de quem estava para conhecer.

A gente fala de quem conhecemos ou vamos conhecer, de quem julgamos conhecer,  daqueles que queremos conhecer, dos que invejamos conhecer, ou dos que amamos ou odiamos ter conhecido. Mas esquecer de uma suposição, que vem do resultado da existência de alguém, jamais.

Tive que passar naquela rua de novo, tempos depois e fazia frio. Não sabia se tinha sido muito ou pouco tempo depois do ocorrido, mas não me importava. Ajeitei minha touca e contei quantas pessoas estavam com as orelhas vermelhas e os poucos desavisados na rua sem blusa alguma. Não tinham visto o jornal, por desatenção, falta de tempo ou por não dar importância mesmo. Tinha também os super-humanos (ou como eu considerava quem não sente frio) que não sentiam e não se importavam com frio algum. E lá estava eu criando narrativas, talvez pensando que estava melhor por estar agasalhada.

Passei apressada para ver se me esquentava e vi um homem, já não sabia dizer se mais novo, mais velho ou se intocável pelo tempo, sentado num banco.

Me perguntei rapidamente; “Nossa, ele ainda existe?”

E continuei andando.


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