O dia em que aprendi a voar e outros contos escrita por Ana Gabriela Pacheco


Capítulo 16
Amiga Morte


Notas iniciais do capítulo

Para Tobi e Bisa, que agora estão junto do Biso.

E para todos aqueles que um dia viram a morte de perto, ou levar alguém. Para esses, minhas mais sinceras palavras:



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Quando eu era bebê, eu era muito próxima da minha Amiga Morte. Ela quis me levar antes mesmo de eu vir ao mundo. E quando eu vim, e logo depois de vir, e um pouco tempo antes de eu ser considerada alguém, ela quis me levar.
Quando criança ela estava sempre perto. Me incomodando, me dizendo que eu deveria voltar com os anjos. Eu repetia as palavras dela. E ela me fazia adoecer, preocupar os outros e sempre sussurrava meu nome. Eu nunca sabia quando era brincadeira ou verdade.
Quando eu fiquei maior ela se afastou de mim pra levar os próximos a mim. Me levou um senhor, que para ela era só mais um homem. Um homem no fim de sua vida. Quando fiquei maior que isso, me levou uma senhora, que para ela era só mais uma mulher. Uma mulher no fim de sua vida.
Logo, ela levava com o estralo da foice, pouco a pouco os que estavam próximos dela. Quando me dei conta, quão longe de mim ela estava e quão próxima de quem era próximo de mim ela ficou? 
Eu me tornei uma mulher, mais uma entre tantas outras que ela já havia levado, mas a minha amiga distante já não olhava mais por mim. Vez ou outra me adoecia, mas nada tão sério a ponto de sussurrar ou rir no meu ouvido. Minha amiga distante, próxima de um pequeno animal, que um dia já havia sido grande, estralava a foice cada vez mais perto como um aviso. Mas o meu pequeno animal nem sequer escutava o estralo. O pequeno animal já não tinha forças para levantar ou correr da amiga Morte, ou conseguir enxergar o momento de sua aproximação. 
O pequeno animal, que um dia foi tão valente, se contentava em sentir sua dor e um pouco de leite. E eu via de longe, longe porque já não sabia mais lidar com momentos assim.
Quando eu era ela, a amiga da Amiga Morte, era mais fácil de lidar com a dor. Ela me dizia pra chorar e então eu chorei quando me levou o senhor. Ela me dizia pra guardar e chorar então eu chorei e guardei quando me levou a senhora. Agora tão distante de mim, ela grita pra que eu me afaste, o pequeno animal não nos quer por perto, ele está valente ainda, então eu me afasto.
É quando o pequeno animal, com lágrimas caindo dos olhos aos potes de lágrimas, chora pra Amiga Morte, mostrando seus dentes com raiva, que ele se torna o mais valente dos animais que ela já havia visto.
Esse animal, quando grande, nunca havia chorado.
E suas lágrimas hoje representavam a coragem, a coragem da amiga Morte que ela nunca havia mostrado.
Ou vocês realmente acharam que pra ela era fácil levar mesmo mais um homem qualquer, uma mulher qualquer ou mais um velho animal?
Que trabalho difícil, amiga Morte.
Ela se afasta, fazendo que sim com a cabeça e um sinal de que existe saudade de mim em seu peito. 
O estralo da foice é distante e me soa como muitos anos de vida. Quando ela vier me buscar, não serei um pequeno corajoso animal ou mais uma de muitas mulheres. 
Eu ainda serei ela, como todos nós um dia fomos ou seremos, antiga e dando boas vindas, a amiga da Morte.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!



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