O dia em que aprendi a voar e outros contos escrita por Ana Gabriela Pacheco


Capítulo 11
Raízes Raivosas - Monstros Internos


Notas iniciais do capítulo

Suas raízes, o que elas sentem?



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Existem pessoas normais.Existem pessoas que andam tristes por todos os cantos. Existem pessoas amorosas e até mesmo as felizes de natureza.

E existem pessoas como eu, que em suas grandes raízes, são raivosas e rancorosas. Tem gente que acredita que é preocupação, tem outras que acreditam que é muito drama pra pouco, eu não acredito em nada disso.

O que eu acredito na verdade é,ou era,que as pessoas são como árvores, elas podem ser plantadas de maneiras diferentes e eu sempre fico com a impressão de que fui plantado de uma mísera forma, jogado na terra e não plantado. Isso, essa forma como me plantaram, semeou toda minha raiva do mundo.

Por que eu era tão esquentado? Por que tinha tanta raiva das pessoas que sorriam alegremente e pareciam ter sido plantadas de forma linda? Eu sabia desde o ínicio que o que eu sentia não era inveja, minha mãe me ensinou a nunca invejar o dos outros ou você não terá o que quer, ela disse que quando alguém tem algo, por mais banal que seja, você parece querer, mas não quer. O que quero dizer é que nunca fiz questão de querer nada dos outros, só que eu tinha uma raiva, uma fúria enorme do mundo, como se ele tivesse feito algo muito ruim pra mim.

Como se eu tivesse que soltar tudo uma hora, matando-o,gritando, se debatendo ou batendo.

E eu fui assim a vida toda.

Minha raiva do mundo,eu descontava em mim mesmo.Eu batia nos meus amigos da escola, eu gritava com as meninas, professores e as vezes até mesmo com meus tios e avós. Eu me debatia em tudo, chutava todos e tudo que encontrava quando irritado e aos três anos,um passarinho assobiando, morreu em minhas mãos.

Eu sinto remorso até hoje. Um passarinho morto em minhas pequenas mãos, certamente me dava mais raiva do mundo. A culpa era minha? Ou daquilo que eles chamavam de Destino? Ou melhor, daqueles que todos acreditam ter o nome Deus?

Se Deus existe,por que ele não me ajudou? Por que eu sentia tamanha fúria por ele, maior até do que eu sentia pelo mundo? Talvez fosse por que eu podia ver o mundo, pouco a pouco,só a minha frente, mas podia. Mas não posso ver Deus.

—Todos vocês! Vão à merda! Pro inferno! Apodreçam lá, seus vermes!- dizia quando era atacado com insultos de alguns colegas.

Colegas, se realmente o fossem,teriam que me ajudar. Minha mãe tinha me dito que aquilo era uma forma de me defender, pois eu tinha algum tipo de medo de me machucar e estando com raiva, as pessoas não iam se aproximar,não se aproximando, não me machucariam. Talvez ela estivesse certa, mas nesse dia gritei com ela também, só porque ela me achou fraco.

Um dia,depois da aula minha cabeça latejava de dor e eu resolvi tomar um ar em uma praça. Sinceramente, pouco me importava com as pessoas que ali estavam, mas minha fúria parecia ser tão aparente que elas sumiram como água evapora.

Sozinho em uma pequena praça, da minha pequena cidade. Raivoso e com uma dor tão grande quanto a fúria,não havia nada a dizer, nada a soltar, nada pra chutar, nada pra gritar e nem onde se debater.

Mas havia o que matar.

Em um ninho, pequenos filhotinhos de pássaros esperando por sua comida,mal abrindo os olhos, sonolentos, recém descobertos e recém descobrindo. Peguei um em minhas minhas mãos e lembro exatamente da voz brava e imponente atrás de mim;

—Saiba que depois que se toca em um, a mãe não volta para vê-los. Eles são abandonados.

Eu me virei e sinceramente, tive nojo da cena, quase deixei o pequeno bicho em minhas mãos cair.

Uma bola de pele enrrugada, com pernas e braços magros, ossudos e sarnetos, pequenos pelos eriçados nos dedos e orelhas dobradas;como se mordidas. Em seu rosto, olhos caídos porém sérios, lábios ressecados, suas bochechas pareciam esburacadas com sua pele enrrugada e caída e em sua testa com linhas de preocupação haviam pequenas bolas que se mexiam, ora pequenas, ora grandes, outras estourando.

—Mas que por...?

—Eu sei disso, sou um pouco nojento. Como toda raiva é,na verdade.

— O quê? Que porcaria é você?- Eu estava com mais nojo do que assustado, a reação de encontrar algo como essa, seria normalmente nojo e não algo tipo; '' uau, que mágico, selfie.''

—Fiz isso uma vez quando era mais novo, ia matar todos os quatro, mas desisti. Quando esperei pra ver o que ia acontecer, a mãe não voltou. Fiquei incerto, mas tive certeza de que elas não voltavam porque os toquei, na terceira vez.

—Você matou passarinhos?

—Não diga isso em um tom de repreenssão.Você ia fazer a mesma coisa.- Tossiu.- Pela segunda vez.

—Ora sua bola de pelo....-levantei a mão, mas ao olhar novamente o estado asqueroso do ser, me sentei.

—Muito bem, controlou sua raiva. Me controlar nunca é fácil, principalmente quando estou dentro de você e na sua frente.

—Você...É a raiva?

—Quem mais eu seria? Não tenho condições pra ser um sentimento melhor.- falou rindo.- Apesar de que tenho ficado muito calmo, não?

—Você é um monstro.

—Acha que eu não sei disso seu garoto retardado?- falou gritando, enquanto duas de suas bolinhas cresciam e estouravam.

—Eu...Eca, só quis dizer que é um...Monstro, sei que sabe, mas...

—Tanto faz, fique quieto logo.

Era assim que eu era, comecei a me tocar. A autoridade que ele tinha sobre mim era maior do que eu mesmo tinha. E era assim que a raiva era comigo,eu achava que era eu mesmo tendo autoridade em cima de todos, amigos, professores, tios e principalmente minha mãe, mas era a raiva que tinha autoridade sobre mim.

— O que está pensando?

— Eu tenho que te falar? Desde quando você pode se meter na minha vida dessa forma?

—Desde sempre, eu sou a sua vida. Me tornei ela desde que você perdeu seu pai aos três anos.

Eu fui novamente calado por ele, mas minha dúvida foi maior:

— Meu pai, o que sabe sobre ele?

— Você realmente quer que eu te conte? Sabe, ninguém me tem assim do nada. Tudo surge de algum lugar, de algum momento, de alguma pessoa, de alguma ação. Nada nunca vai surgir em nós por nós mesmos. Nem mesmo a alegria, nem mesmo a raiva, nem mesmo a tristeza. Acredite, pra realmente sentirmos esses sentimentos, necessitamos de alguém.

—Está dizendo que eu herdei essa raiva do meu pai?

— O seu idiota, não se herda sentimentos, diria que se planta eles. Seu pai meio que plantou a raiva em você, sem querer.

Era isso? Assim como as pessoas,os sentimentos também eram plantados e talvez eu tivesse sido plantado corretamente, mas a raiva foi semeada acima de mim. Talvez ela tenha tomado parte de minha terra ou se juntado com minhas raízes.

— Seu pai foi pra guerra quando tinha três anos, você estava bravo com ele. Ele tinha te dito que ia voar como os pássaros e logo estaria de volta em seu ninho. Claro que como criança era mais simples explicar assim, mas você, bravo consigo mesmo, acreditou que ele não voltaria. Algo como, tocaram em você e ele não vai voltar, que acontece com os passarinho.

—O quê?

—Calado, não me interrompa. O que quero dizer, é que você se sentiu tocado e logo depois abandonado. Matou um passarinho na hora da raiva e por que a imagem de um passarinho no ninho te assustava, já que era seu reflexo.Seu pai morreu na guerra, assim como os passarinhos morreram em sua mão. Sua mãe te contou isso?

Fiquei quieto porém assenti com um olhar sério, ela realmente tentou me contar, mas eu gritava dizendo que não queria saber do bosta do meu pai, pra mim, ele havia abandonado ela e era só isso.

— Sua raiva nasceu a partir disso, o fato de não ter um pai, de ter sido plantado abaixo do abandono e do isolamento,o fato de parecer tanto um passarinho.

Uma das bolinhas na testa dele diminuia lentamente.

— Você quer dizer que eu sempre tive raiva do meu pai,do mundo e de todos, por que ele foi pra guerra?

—Sim, calado. Ele morreu bravamente se quiser saber. Queria entender sua fúria, mas de outro lado a sinto com você. Você realmente odeia Deus? Só porque ele tirou seu pai de você? Seu pai amava você e sua mãe mais que tudo, abandonar a sementinha dele no ninho foi a coisa mais difícil que ele teve que fazer, deve ter sido doloroso até para Deus. De qualquer forma, você é um trouxa, um bosta retardado e acho que deveria parar de ser assim, você me incomoda, eu e minhas bolotas na cara. Inclusive, não abandone seu ninho.

Aquele monstro asqueroso pegou os passarinhos que ia matar e colocou embaixo dos braços, indo embora. Seus pelos eriçados e sua boca ressecada e saliente, eu nunca mais o vi.

Naquele dia, eu juro, todo o mundo mudou de cor. Todos mudaram de cor. As árvores, as ruas, as pessoas e o som das palavras saindo da boca. Naquele dia, sentei ao lado da minha mãe que via televisão e a perguntei como quem diz bom dia, se ela acreditava em Deus;

—Claro que acredito filho, Deus está em tudo que vemos ou que sentimos.

—Por que Deus tirou o papai de nós?

Foi a primeira e última vez que falei do meu pai pra minha mãe. Ela chorou nesse dia, ela me abraçou nesse dia, me mostrou fotos dele com ela e outras, poucas, comigo, não dizemos nada, só tomamos chá e depois disso fomos dormir.

Clara entende isso,ela também não pergunta sobre ele pra mim. Ela entendeu que eu tive uma fase muito ruim. Mas diferente dos outros, ela acredita em mim e sabe que não deixaria ela e nem o Luke.

Clara me ajudou a plantar o Luke e eu sempre vou estar pra ele, eu vou não vou? Meu ninho, minha pequena sementinha. Essa pequena coisa que Deus me deu.

Sei que meu pai morreu bravamente em uma guerra que nem sequer era pra uma pessoa como ele. Alegre, sorridente, em um lugar cheio de fúria e raízes raivozas, ele lutou lá, mas porque Deus quis.

Deus teve seus motivos, mas todos se tornaram melhores hoje por isso, não? Claro que sim, eu me tornei melhor. Me casei com Clara e plantei uma pequena sementinha, o Luke.

Luke, seja um bom menino, você não foi tocado, foi? Eu irei voltar.

Deus, fui convocado pra guerra.


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Notas finais do capítulo

Por favor, comentem ;3



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