O dia em que aprendi a voar e outros contos escrita por Ana Gabriela Pacheco


Capítulo 10
O dia em que Choveu no meu quarto - Monstros Internos


Notas iniciais do capítulo

Choveu, caíram muitas gotas, inundando a mim e a ela. Ainda, mesmo com meu desespero, ela estava calma e me olhava com o mesmo olhar que eu olhava para o espelho todos os dias;...



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Quando sua vida está ruim, todas as coisas que acontecem parecem não te atingir, só parecem. Uma ou duas coisas são guardadas na primeira vez, como se fosse só a vida lhe pregando uma peça, mas às vezes, a vida quer que você enfrente tudo junto e vai jogando, pouco a pouco, porém rapidamente, obstáculos.

Então, para que não te atinjam tanto quanto das primeiras vezes, você finge não se importar e vai guardando toda a mágoa possível, dentro de si. Ao chegar, você solta toda sua fúria com a vida em um travesseiro, em um urso, jogando coisas e chorando alto, mas num tom em que ninguém possa te ouvir.

Você continua a guardar toda essa tristeza pra você como se ninguém fosse te entender e então, existe um momento dessa história, que você para de chorar. Existe, não existe?

Sei que parece loucura, mas eu queria saber sobre você, é impossível que isso só tenha acontecido comigo. Guardando todas as mágoas, sobre todas as coisas, porque eu nunca conseguia parar? Aliás, a pergunta certa seria, por que a vida nunca parava de fazer isso comigo?

Um dia, voltando pra casa, eu estava completamente esgotada. Como se tivesse a energia sugada por alguma coisa ruim, todas as coisas ruins pairavam na minha mente e me faziam querer gritar, como se a qualquer momento eu fosse explodir. Havia noites em que a dor se tornava tão grande, que era como se ela estivesse no quarto, havia noites em que apenas chorar nunca parecia me satisfazer e me livrar da tristeza.

Nesse dia, eu entrei e cabisbaixa em meu próprio quarto, me sentei na cama. Olhando para o chão e imaginando como seria se eu não tivesse tantos obstáculos, eu seria alguém melhor? Talvez... Eu ainda não sei.

Meus olhos lacrimejaram e eu os semicerrei com força para que as lágrimas voltassem e que toda a dor sumisse claro, só aconteceu de algumas gotas caírem no chão, mas a dor permaneceu. Sei que as pessoas tristes me entendem agora, nem sempre é preciso contar o que está acontecendo pra ser compreendido. Sei que mesmo que seus motivos sejam diferentes, você deve estar triste por algo. Algo que considera ruim, ou importante.

Tirei meus sapatos e me deitei de barriga pra cima, encarando o teto. Branco, limpo, porém inquieto. Como algo puro, sem nada a esconder, mas que todos insistem em dizer que existe algo. Nada existe, nada teve que existir, nada além do branco.

Ainda olhando para o teto, respiro fundo na vã tentativa de não chorar. Mais lágrimas, eu estava cansada disso também. Recuperando-me lentamente de uma tristeza terminal, o último estágio que eu teria era não chorar, mas sim morrer. Tirei uma das blusas que eu usava, fazia um pouco de frio no dia, mas tirei-a já que estava aconchegada na cama.

Apenas olhando para o branco como se quisesse que existisse algo mais que apenas branco, nada, além disso, existiria ali. Não é? Um pouco afastado da cama, uma escrivaninha e uma cadeira, na qual eu usava apenas para terminar meus trabalhos ou desenhar coisas que apareciam na minha mente.

Nesta escrivaninha, nesta cadeira. Havia um monstro, exatamente isso que você leu; um monstro. Pra ser mais específica, uma monstra. Ela havia aparecido ali, de fato, do nada. Eu não tive reação, apenas fiquei chocada em minha cama. Eu, que olhava despreocupadamente para um teto branco me afundando em minhas próprias tristezas, agora tinha um monstro me encarando em meu quarto.

A monstra, que por sinal me olhava com pena, tinha pelos azuis por todo o corpo e em seus grandes pés, haviam unhas pretas, outras roxas. Seu nariz era levemente inchado e vermelho, como quem a muito estava resfriada. Ela era grade, meio rechonchuda, mas não alta. Em uma barriga, havia um grande S, suas orelhas eram meio pontudas como de um morcego e se balançavam com qualquer sinal de barulho. Seus olhos, grade e penosos olhos, me olhavam como se fossem me sugar de tanta pena e eu, olhava-os de volta, como se por um momento, o grande e estranho monstro, (estranho, não asqueroso.) pudesse me entender.

—Quem... É... Você?- Perguntei lentamente, sem nenhum movimento brusco, por dentro, eu estava assustada como uma criança que acha que existem monstros embaixo da cama, só pra dormir ao lado da mãe, neste momento existia um monstro, mas estava sentada na cadeira perto da escrivaninha.

—S-U-E. - disse letra por letra, com uma voz tão fraca que eu não ouviria se houvesse outro barulho.

—Sue? É esse seu nome?- perguntei me sentando adequadamente.

Ela apenas assentiu, olhando para o chão. Por um segundo, tive a impressão de estar olhando para um reflexo de mim mesma, falando baixo, olhando sempre para o chão, aquela parecia ser eu.

—O que você quer?- Outra pergunta. Era chato fazer isso, mas eu estava apenas ficando na defensiva, apesar disso, Sue não parecia ter a mínima vontade me esmagar ou algo assim.

— Deixar ir... A tristeza. Você quer que ela vá, não quer?- Ela devolveu uma pergunta, ainda dizendo lento e baixo, sem me encarar.

A pergunta fez um eco na minha mente por algum tempo; Você quer que ela vá, não quer? Você quer que ela vá... Sempre me perguntei que tipo de pessoa eu seria se não tivesse toda essa tristeza na minha vida, por que de certa forma, foi esse triste estilo de vida que formou minha personalidade sem graça.

—Eu... Eu quero.

De repente, do nada, começou a chover no meu quarto. Exatamente, uma chuva no meu quarto. Era como se tudo que eu já tivesse chorado na minha vida, fosse jogado de volta em forma de tempestade. Comecei a ficar maluca, me levantei rapidamente, tentando impedir a chuva de molhar coisas importantes.

Choveu, caíram muitas gotas, inundando a mim e a ela. Ainda, mesmo com meu desespero, ela estava calma e me olhava com o mesmo olhar que eu olhava para o espelho todos os dias; Insatisfação. Pena.

Eu nunca tinha reparado, mas se era esse o olhar que eu tinha para o mundo, chegava a dar uma dor no peito e ao mesmo tempo uma pontada de nojo.

—Você não quer se molhar com suas próprias lágrimas?- Sue me estendeu um guarda-chuva que tinha todas as cores do arco-íris.

Peguei e o abri. Ainda que eu tivesse o guarda-chuva, tudo a minha volta permanecia quieto, imóvel e acima de tudo, molhado. A chuva não desistia, não haviam nuvens, nem trovões, apenas chuva e mais chuva caindo do meu teto branco sem nada inexistente. Ou com algo, a chuva.

—Do que adianta ter guarda-chuva se tudo a minha volta continua molhado?

—Você está protegida desse mal temporariamente, isso de fato é o que adianta.- Sue disse em um tom mais alto, já que a chuva fazia estalos ao bater no chão do meu apartamento.

—O que tudo isso significa?- perguntei colocando a mão pra fora do guarda-chuva, percebendo que eram gotas geladas e que Sue estava embaixo da chuva, ainda com o olhar penoso.

—O que quer que signifique?- Ele devolveu a pergunta, pela primeira vez, encarando-me.

—Quero que signifique algo como..-Calei-me, não sabia oque eu queria que significasse, em silêncio, olhei-a.- Quero que seja algo como, se a tempestade passar, toda minha tristeza vai embora junto.

—No caminho pra casa, estava chovendo?-Ela ignorou o que eu disse e quando assenti, perguntou-me.- Quantos guarda-chuvas coloridos você viu?

—Hm,- pensei um pouco antes de responder.- Acho que nenhum. Mas oque têm?

—O que têm, que a vida das pessoas é como eu, escuras, cinzas, sem graça. As pessoas encaram a cor da tempestade se camuflando nela, assim se tornam cinzas como as nuvens, como a vida.

Girei o guarda chuva colorido, quando girava muito, sabia que todas as cores iam se transformar em branco, o branco que eu acreditava ser único e explicável, onde nada existente havia. Mas havia algo, haviam cores.

—Sua vida continua triste, continua cinza, você acabou se tornando parte da tempestade.

—Como faço pra parar? Pra sair dessa chuva?

—Abra um guarda-chuva colorido.- Sue se levantou e tristonha como eu sempre fui a vida inteira, foi abrindo a porta.

—Espera, Sue!

—Sim?- ela disse com sua enorme mão pegando na pequena maçaneta.

—Por que veio aqui hoje? Por que está chovendo em meu quarto? Isso é real?

—É muito real.- ela se aproximou de mim, molhada, tocando meu rosto.- Veja a chuva, me sinta tocar você. Eu sou real não sou? Estive todo esse tempo aqui, mas está na hora de ir.

—Como? Você esteve sempre aqui?

Sue assentiu e ainda sem expressão que me dissesse se sentia algo bom, foi-se.

Continuei naquela tempestade por dois dias. Sim, choveu no meu quarto o final de semana inteiro e eu, fiquei embaixo do guarda-chuva nesses dois dias. Eu não entendia o que estava acontecendo, não entendia o que Sue quis dizer, eu não entendia nada. Por que raios estaria chovendo no meu quarto? Por que havia uma monstra que sempre esteve ali?

No momento, a única coisa que eu conseguia pensar era em quantos guarda-chuvas coloridos eu havia visto na rua. Eu não lembrava de nenhum.

Sue havia dito que todas as pessoas se camuflavam na tempestade e de certa forma, isso incluía as pessoas felizes. Cheguei a conclusão de que apesar de todos se camuflarem na tempestade, todos encaram a dor de forma diferente, mas todas se tornam guarda-chuvas cinzas.

Eu precisava achar uma maneira de enfrentar a minha dor, precisava achar uma maneira de sair dessa tempestade em que eu estive presa a maior parte do tempo, sair completamente e loucamente abrir todos os guarda-chuvas coloridos que eu pudesse. O que significa? Eu não sei.

—Sue! Sue! Sue! Me ajude!- eu gritava o nome do monstro como uma criança machucada que grita pela mãe. Talvez por muito tempo, Sue realmente esteve lá e me ajudou, como mãe. Mal eu sabia que estava gritando uma ajuda exasperada à tristeza.

Sim, pra tristeza.

—Você está atrapalhando o meu momento de tristeza terminal, do que precisa?- disse Sue, sentada ''magicamente'' na cadeira perto da escrivaninha, que provavelmente estava podre de tanta chuva que tomou.

—Eu..Quero abrir um guarda-chuva colorido de verdade, mas não sei o que fazer, não sei como fazer e não sei exatamente o que isso significa.

—Você irá saber o que fazer quando a hora chegar, está ficando bem sem mim? Tenho sentido sua falta, mas você não precisa mais se preocupar, a tempestade está acabando.

Sue se levantou e olhou para o teto, segui os olhos dela e as gotas que caíam e embaçavam meus olhos, em segundos, sumiram. Quando olhei novamente, Sue também havia ido, nada restava, só branco e um apartamento molhado.

Semanas depois vendi o apartamento e metade dos móveis, o resto mandei pra casa de meu pai. Me despedi do emprego e com o seguro e a herança de minha mãe, fui pra algum lugar.

Exatamente o que leu, algum lugar, ainda não sei qual, apenas tenho ido. Não sabia que gostava disso, de sair, de viajar. Acampei em muitos lugares, fiz trilhas e quando nada havia pra fazer, eu apenas abria meu guarda-chuva colorido e saía andando por aí. As vezes o girava, tão rapidamente que o mesmo logo se tornava o branco existente.

Eu nunca mais vi Sue na minha vida, mas eu senti uma certa saudade. Ela era como a mãe que eu nunca tive, mas todo dia alguém que amamos vai embora, a maioria das vezes volta no fim da tarde, começo da noite, alguns não voltam. Sue foi esse ''alguns''.

Era como se por muito tempo, eu estivesse em um transe. Camuflada numa tempestade que não era minha. Muitas pessoas ainda estão presas nessa tempestade, mas acho que não precisamos muito mais do que apenas um guarda-chuva colorido pairando e te protegendo do mal.

É engraçado, pois guarda-chuvas nunca foram de fato um item interessante, mas quando se olha de outra maneira, eles guardam bem mais do que chuva e protegem bem mais do que pessoas.

''Que se abram guarda-chuvas coloridos em nossas vidas cinzentas.'' K.


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Notas finais do capítulo

Sue, por favor, vá....



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