Regis em busca de si mesmo escrita por Celso Innocente


Capítulo 6
Tudo é tão estranho




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Durante o jantar, onde todos reunidos diante da grande mesa na copa da casa me precavi, para não encher o prato com alguma coisa que, como no almoço, eu detestasse.

Como fazer isso? Bem: já sabia que arroz e feijão eu gostava. Coloquei boa porção; rodelinhas amarelas que foram fritas, como eu desconhecia, peguei apenas duas; outra coisa escura, que parecia também ter sido frito, cortei só uma lasquinha...

Uma vez o prato já preparado, comecei minha refeição, sendo observado por quase todos.

Percebendo os olhares curiosos, especulei com ajuda dos ombros:

— O que foi agora?

Minha mãe acenou negativamente.

— O que é? — Estava perdido mesmo.

— Por que você só pegou duas batatinhas, se você come um quilo? — Interferiu Letícia.

— Acho que estou sem fome! — Novamente os ombros ajudaram.

— Tá se vendo! — Riu meu pai. — Duas batatas, a gordura do bife e quase um quilo de arroz.

Minha mãe mesmo adicionou outro tanto das tais batatas e um bom pedaço de bife a meu prato. Fiz gesto de agradecimento a ela e ainda observado por quase todos, devorei praticamente tudo, deixando um pouco do tal arroz, já misturado ao feijão.

— Não é legal deixar sobras no prato — reclamou Luis. — Enquanto aqui você joga fora, do outro lado do mundo, crianças morrem de fome.

— É que a mãe pois muito!

— É! Colocou muita batata que não sobrou nenhuma!

— Acho que foi a mão do Regis que pois muito! — Riu Paulinho.

Forcei os ombros e os lábios tristemente por minhas falhas e depois pedi:

— Posso me levantar?

— Hum! Tá educado! — Riu Henrique — Nunca fez isso!

— Pode ir, Regis — autorizou minha mãe. — Já fez a tarefa da escola? Eu não vi.

— É que... eu perdi meu material.

— Você perdeu o material de escola? — Interferiu meu pai.

Comecei a chorar.

Como estava difícil de me reencontrar!

— Não precisa chorar! — Pediu-me minha mãe — Basta só lembrar onde você deixou.

— Eu não consigo, mãe! Faz tanto tempo! Tá tudo tão difícil!

Ela se levantou, me abraçou e também sem entender, me consolou:

— O que faz tempo, filho? O que é que tá difícil? Me diz o que se passa e eu vou te ajudar.

— Você não vai entender, mãe — neguei ainda com lágrimas. — mas aos poucos tudo vai se resolver.

— O que você tá falando? — Passou as mãos sobre meus olhos. — E por que me chama de mãe? Onde está o mamãe carinhoso que eu gostava tanto? Por que você está tão diferente? Fizeram alguma coisa com você?

— Estou tão confuso. Você quer que a chame de mamãe? — Dei leve sorriso.

— Não quero que se torne obrigação, filho — pediu-me ela com sorriso. — É que até esta manhã você sempre me chamou de mamãe. Mas me chame do jeito que pra ti seja natural.

— Mamãe... — tornei a sorrir — assim é natural.

Fui para o quintal dos fundos de nossa casa e voltei rapidamente admirado, chamando:

— Paulinho, venha comigo! Veja que estranho!

O caçulinha me acompanhou até o quintal, sendo imitado pelos demais.

— Veja! — Mostrei-lhe entusiasmado.

— O que foi, Regis? — Especulou-me ele estranhando.

— Não tá vendo! Não tem luz!

— O quê?

— A luz foi embora!

— Regis, é noite! — Esclareceu papai.

— Cadê o Sol? — Insisti.

Eles não entenderam nada.

Embora eu não me recordasse direito da Terra, algumas coisas eu sabia. O Sol por exemplo. Porém jamais me deparara com tal noite. Em Suster, quando uma estrela se vai, a outra vem. Não há períodos de escuridão. Kristall e Brina se encarregam de evitar isso.

Espero que meus pais não me internem em um hospício.

©©©

Ainda nem eram oito horas daquela noite e na sala, sabendo quem seria um de meus companheiros de dormitório, chamei:

— Paulinho, vamos dormir!

— Eu não owh! Ainda é cedo. Não é hora de dormir!

— Meus olhos estão com sono e eles não sabem a hora de dormir — enfatizei, embora desconfiado.

— Não vai brincar na rua não? — Especulou-me Leandro.

— Brincar de quê?

— Qualquer coisa! — Deu de ombros o mesmo irmão — Salva.

— Não sei brincar disso!

— Ih! — Girou o indicador sobre a orelha — Acho que você tá é maluquinho mesmo.

Aquilo acabou de me convencer a ir para a cama. Que se danasse que ainda era cedo. De fato meus olhos não conhecem hora e eles estavam até doendo de tanto sono.

©©©

Mamãe me acordou às seis horas da manhã. Espreguicei-me na cama, esticando todo o corpo e tentando permanecer mais um pouquinho por lá.

— Que foi? — riu ela — Tá parecendo gato.

— Gato? Eu? — retribui seu lindo sorriso.

— Pule daí! Tá na hora da escola.

Levantei-me e segui ao banheiro, onde me despi e depois de necessidades fisiológicas entrei para outro demorado banho.

Acho que era o momento mais gratificante da vida na Terra e como no anterior, só desliguei o chuveiro depois de já dentro do banheiro, que não fôra trancado, ser mandado por Luis.

Enrolei-me na toalha e segui pingando água pela cozinha, copa e quarto, onde me enxuguei e vesti uniforme escolar e um par de Congas azul e branco (se o que eu usava no dia anterior, tinha todo um jeitinho infantil, especial para conquistar crianças, este imitava um tênis adulto, apenas em tamanho menor), passando a seguir, enquanto penteava os curtos cabelos castanhos, me admirar diante de espelho do guarda roupas.

Puxa como eu estava lindo com aquele uniforme.

Claro que estava ansioso por aquele retorno à escola. Sabia que seria complicado, pois não reconheceria nem um de meus colegas, nem a professora e sequer o prédio e por isso meu coração batia de certa forma, assustado.

Depois do reforçado desjejum matinal, a base principalmente de pão caseiro, feito com carinho por mamãe, retornei ao banheiro, deixando-o aberto e diante de uma fileira de escovas dental, só me restou chamar:

— Paulinho!

Ele apareceu na porta.

— Duvido que você saiba de quem seja cada escova!

— Duvida é? — Riu ele.

— Quer dizer: Duvido que você saiba qual é a minha!

— Pensa que sou bobo é? A sua sempre foi a verde.

Pronto! A inocência dele me ajudou.

Apanhei tal escova e acrescentando creme dental, perguntei-lhe:

— Você sabe o que é um gato?

— Quem não sabe o que é um gato? — Deu de ombros o maninho.

— Eu não! — Disse com sinceridade.

— Você ficou atrapalhado?

— Posso te revelar um segredo? Você não conta pra ninguém?

— O que?

— Será segredo só de nós dois. Pode ser?

— Como detetives?

— É isso! Que tal?

— Tá! — Riu ele animado. — Eu não conto pra ninguém.

— Acho que estou com um problema de esquecimento — já estava com a boca cheia de espumas, do creme dental. — Não consigo me lembrar de tudo. Quando eu precisar posso contar com você?

— Pode.

Permaneceu ao meu lado, por um momento calado, depois advertiu-me:

— Sabia que sou seu melhor amigo! Ou você se esqueceu?

— Você se parece comigo! Meu melhor amigo e confidente.

— O que é confidente?

— Ah sei lá! — Dei de ombros, rindo. — Companheiro, eu acho!

— Você me chamava de carrapatinho...

— Por quê?

— Não sei!

— Mamãe me chamou de gato. O que é um gato?

— Gato?... É igual um cachorro. Quer dizer: quase igual. O gato é mais preguiçoso... só dorme no sofá e tem um rabo comprido...

— E o que é um cachorro?

— Você não sabe nada mesmo? Cachorro é o nosso Jerry! Lembra dele?

— Acho que não!

— Ele anda o dia todo dentro de casa.

— Ah! Agora eu sei. E carrapatinho?

— É um bichinho desse tamainho — mostrou com os dedos — muito feio enrugado e gosta de grudar na gente... e se grudar não solta mais. Sabia?

— Nunca vi.

Calou-se por alguns segundos, depois insinuou sério:

— Você me chamou de Arthur. Quem é ele?

— É um amigo meu! Um dia você vai conhecer.

— E por que você me chamou de Arthur?

— Você adora perguntar, hem maninho! — Já terminara com a bem feita escovação dentária e enxugava a boca com toalha de rosto — É que você se parece com ele.

©©©

Em frente ao portão de Beth, chamei-a pelo nome e em menos de cinco segundos ela apareceu. Usando uniforme escolar estava ainda mais bela.

— Arranjou outra bolsa? — Perguntou-me, percebendo minha tal bolsa, sobre os ombros.

— Mamãe arranjou esta bolsa provisória — expliquei enquanto iniciávamos a caminhada em direção ao grupo escolar.

— Parece mais como um embornal! — Riu ela. — O que tá levando aí?

— Só um caderno, um lápis e uma borracha — confirmei junto com os ombros.

— Poderíamos ter feito a sua tarefa ontem à tarde. Agora já foi!

— Será que a professora ficará brava?

— Você explica o que aconteceu e ela não ficará brava.

Quase trinta minutos de caminhada e adentramos ao pátio do gigante “Marcos Trench” aonde não entrava já fazia mais de cinquenta anos passados... quer dizer: mesma época, mas para mim, fazia cinquenta anos e eu nem me lembrava disto.

Estava diante de um monte de crianças desconhecidas, em um enorme prédio desconhecido, inclusive um monte de meninas. Eu praticamente não conhecia meninas, salvo Beth e minha irmã Letícia, que as conheci a menos de um dia. Mas elas eram semelhantes aos meninos, com exceção dos longos cabelos de algumas e o uniforme escolar. Enquanto elas usavam saias, nós meninos, usávamos shorts. Tudo bem que a Leandra em Suster, seja assim uma menina um pouco maior. Mas é idêntica a uma menina da Terra, com exceção dos seios: as meninas da Terra tem o peito semelhante à de nós meninos.

Já dentro da sala de aulas, fui o último a me sentar para que não cometesse gafe. Ficando apenas três carteiras vagas, arrisquei uma delas e com sorte, acho que deu certo. Porém, além disso, tudo continuava estranho. Eu deveria conhecer cada uma daquelas crianças que lá estavam, mas... embora todas me conheciam, elas eram completamente estranhas para mim. A bela e meiga professora, dona Regina, era como se nunca a tivesse visto.

Ela fez a chamada e depois corrigiu a tarefa do dia anterior, sem sequer perceber que eu não havia feito tal atividade.

Acho que continuava com muita sorte, ao perceber que a maioria de nosso material escolar permanecia em armário na própria escola. Dona Regina, apanhou nossos cadernos de Matemática e distribuiu entre todos, de maneira singular. Tais cadernos ficavam separados em grupos, tal qual, entregue à criança da primeira carteira de cada conjunto, esta apanhava o seu e passava para a criança logo atrás, até o último deles chegar a seu dono, no final da fila.

Curioso, passei a folhear o meu, desde o princípio. Não me recordava de que fôra eu mesmo quem escrevi de um jeito até que caprichado, todas aquelas mais de trinta páginas de tal caderno de brochuras com capa amarela.

Os vistos e parabéns, escrito pela professora em caneta vermelha, mostrava o quanto eu era um aluno exemplar. Mas, eu continuava perdido. Não com a matéria, que felizmente o que eu não sabia os demais também não. Éramos apenas crianças de nove anos de idade e estávamos aprendendo divisão por apenas um número na chave, multiplicação com dois números, sendo que a maioria dos colegas, ainda não decorara sequer a tabuada do quatro. Eu percebi que já sabia, embora tendo que pensar um pouco, todas elas.

One-shot: Um pequeno diálogo caipira para relaxar (Retratu di lubisomi)


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