A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 37
A Cavaleira de Balran


Notas iniciais do capítulo

"— Ei irmão — O Bandido apontou a adaga para onde estava Ghan’raudor. — Já está na hora de termos uma conversa em família." Damon, o Mercenário.



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Ghan’raudor avançou na direção da Loira num salto só, e ela defendeu a altura. Um golpe da Cavaleira bastou para arrancar outra vez o braço daquele que dizia ser Lars, mas nenhum urro de dor veio dele. Quando ela olhou para trás, não viu sangue jorrar, viu apenas o braço que ainda estava caindo flutuar de volta ao ombro do estranho. Mais um monstro!,ela pensou, enquanto voltava-se para ele.

— Lenta demais — já estava em frente à mulher quando ela havia terminado de se virar.

Ela suspirou, esbugalhando os olhos, surpreendida. Ghan’raudor ergueu o braço para mais um ataque, mas ela novamente foi mais rápida. Um movimento, e o braço foi decepado outra vez. E do homem veio apenas um riso debochado. A Loira voltou-se outra vez, a tempo de ver o membro voltar ao corpo.

— Você é divertida mulher — ergueu o braço recém-cortado, balançando os dedos.

— Se achou ela divertida, você vai me amar — Zen surgiu ao lado do homem como a sombra de um assassino numa noite de lua cheia.

Ghan’raudor olhou na direção da voz, mas ele já não estava mais lá. A sola de uma bota acertou sua nuca, e ele saiu voando. Mas não teve tempo de atingir qualquer coisa, pois no caminho estava aquele homem, com olhos cheios de ira e vingança. Damon, brandindo uma espada, pulou contra seu suposto irmão, gritando seu ódio. Baixou a arma, e o que antes era um Ghan’raudor transformou-se em dois, separado pela lâmina do Bandido.

Então o rapaz caiu de joelhos, largando a espada, em prantos. Escondeu o rosto com as mãos, enquanto gritava. Zen olhava para ele, incerto do que fazer, e Lillian estava tão perdida quanto ele. O Damon conhecia ele?,a Loira pensou e olhou para Zen. Ele respondeu com outro olhar, e ela não precisava ler mentes para entender que ele também não sabia.

— D-Damon? — ela perguntou, e ele permaneceu na mesma posição. —E-escute, eu não sei qual era sua relação com ele — disse receosa. — Mas o que você fez foi o certo.

Ele ergueu os olhos, o cenho franzindo, olhando com fúria para ela. — O certo? — disse, com dentes cerrados. — Eu não quero saber do que é certo, mulher. Eu quero vingança. — As palavras soaram quase como um rosnado.

Zen e Lillian encararam Damon, e ele encarou ambos. Uma tensão instaurou-se entre os três. A mulher engoliu em seco, apertando a mão na empunhadura da arma. Zen deu um passo adiante. A Cavaleira olhou para ele, e em seguida para Damon. O bandido permanecia na mesma posição, consumido por raiva. O Atormentado parou logo em frente a ele, encarando-o.

— Então, Damon? Vai querer esvaziar sua raiva em nós? — Zen botou a mão na empunhadura da espada, com uma expressão fria no rosto. — Eu não ligo se quiser lutar aqui e agora. Eu também estou querendo descontar minha raiva em alguém.

Os dois homens se encararam, e Lillian olhou para eles sem saber o que faria se ambos começassem um embate. Ainda não tinham encontrado Rey, e isso era o que a deixava mais preocupada. Se aqueles dois lutassem ali, não teria como impedi-los, e o resultado certamente seria a morte de um. Ou no pior dos casos, de ambos. Damon agarrou a espada do chão, levantando-a, sem tirar os olhos de Zen.

Então uma risada irrompeu do nada.

— Que maravilha! — disse o dono da risada, e todos olharam quem este era. E todos ficaram pasmos.

Sentado num trono de madeira, estava o Ghan’raudor. O que antes era um corpo partido ao meio no chão, agora era nada, pois já não existia mais. O único Lars, Ghan’raudor, chamem como preferir, que existia, era aquele sentado há uns cinco metros de distância deles. Um sorriso largo e sádico estava estampado em seu rosto, e sua cabeça pendendo levemente para a esquerda, apoiada no dorso da mão do homem.

— Aliados se voltando um contra o outro! Como é maravilhosa essa frágil e inconsistente união entre as pessoas que chamam de “amizade”.

— Está... Vivo? — Damon encarou perplexo, a figura sentada no trono. — Como?

— Eu? — mostrou-se intrigado, curvando o corpo para frente, apontando para si. — Eu não estou vivo. — Ele riu, abrindo seu sorriso novamente. — Você me matou lembra? Você me fez receber a culpa daquele roubo. — Seu sorriso desapareceu, Damon recuou um passo. — Lembra irmãozinho? Daquele anel?

— Cale a boca — disse baixinho o bandido.

— Seus olhinhos gananciosos o viram aquela manhã chuvosa. Era uma bela joia, não? — Lars recostou-se em seu trono, parecendo divertir-se.

— Cale a boca —repetiu, mais convicto.

— Você o roubou, sem saber quem estava roubando. E para proteger o meu irmãozinho, eu levei a culpa no seu lugar. — Ele fez uma cara de desgosto. — Eu morri no seu lugar.

— Cale a boca — Damon cerrou os dentes, apertando o punho da espada.

— Você partiu o meu coração, literalmente — ele balançou a cabeça, triste. Então olhou para Damon com um sorriso malicioso. — E se quer saber, eu te culpo — ele fez uma pausa, quase não contendo uma risada. —Dammy.

Damon saltou, era como uma fera selvagem pronta para dar o bote. Era um Leão Patarrubra, era um Fúria Negra, era a Morte encarnada. Seu salto cobriu toda a distância em um segundo, e no outro ele já ia atravessar Lars com sua espada. Mas para a surpresa de todos o homem se moveu mais rápido.

Esticou a mão e agarrou o pescoço de Damon, com a outra desviou o braço do irmão para o lado. Ele tinha um sorriso no rosto, e um Damon imobilizado em sua mão. Levantou o irmãozinho bem para o alto, levantando-se de seu trono.

— Vejam só, e eu achando que me matar uma vez era suficiente para você. Vejo que é um psicopata inveterado, que nem eu. — Zen surgiu ao seu lado, com seu instinto assassino a flor da pele. Lars riu.

Quando o Atormentado pensou em golpear, Ghan’raudor já tinha jogado Damon contra ele. Bandido e Espadachim se chocaram e voaram para trás, até bater numa parede de pedra. Enquanto isso Lillian se moveu, e estava abaixada em frente ao demônio em pele de homem, pronta para dar uma estocada com sua espada. Um chute no rosto a mandou voando para trás.

— Afinal, eu não estou entendendo. Por que estão tentando me matar tão avidamente? — Lars passou os olhos por cada um, com um sorriso no rosto. — Um forasteiro, com um passado sombrio, que cheira a sangue e morte. — Olhou para Zen achando graça. O homem fulminou-o com frieza. — O outro é um bandido, mercenário, que não se importa com nada além de si mesmo e de sua vingança. — Então olhou para Lillian, que ainda se levantava. — E você... A pior da trupe. A Cavaleira de Balran. — Bradou, erguendo os braços, enquanto descia de seu estrado, dando uma risada. — Aquela que traz a justiça. — Ele foi se aproximando de Lillian em passos lentos, enquanto ela ainda se recuperava do chute. Zen e Damon surgiram um de cada lado de Ghan’raudor, mas foi inútil. O homem deixou que um atacasse o outro, e então os repeliu de volta para as paredes com cotoveladas. — Aquela... Que determina o que é certo, e o que é errado. — Finalmente chegou a Lillian, seu sorriso foi substituído por uma cara de desprezo. — Então... Lillian. O que é certo, e o que é errado?

— Saia de perto dela — Zen levantou-se em seu canto, brandindo a espada. — Saia de perto dela seu desgraçado! — o rapaz avançou, urrando. Se estivesse em situações de luta normais, estaria sobre comando do Frio, mas as emoções falavam mais forte que qualquer habilidade mental. Lars achou graça, e fez questão de não desviar. A lâmina do Atormentado afundou em seu pescoço, e ele ficou olhando para Zen, com um sorriso no rosto.

— Espada interessante essa sua. Pertenceu a um mestre? Mas você não é um — agarrou o rosto de Zen com uma só mão, erguendo-o. O rapaz soltou a espada e agarrou o braço de Lars com as duas mãos. — Você está bem longe de ser um. — E então bateu ele contra o chão, e depois jogou de volta na parede. Arrancou a espada, e ela saiu seca, sem sangue algum. O buraco que a lâmina havia feito se fechou.— Como eu ia dizendo. — Damon surgiu por cima, brandindo sua adaga. Lars suspirou e saltou, acertando o punho na boca do estômago do Bandido. Ainda no ar, ele girou e chutou o irmão para o lugar de onde veio. — Isso é muito irritante da parte de vocês. Não veem que estou falando com a dama? — ele balançou a cabeça, e voltou-se para Lillian. Ela parecia estar voltando a si. — Como eu ia dizendo antes de ser interrompido de novo. Cavaleira, me fale. — Ele agarrou a mulher pelo pescoço, acordando-a de vez. Instintivamente, ela agarrou o braço de Lars. — Por que quer tanto me matar?

Por uns segundos, ela não respondeu, tentava retomar o fôlego. Ghan’raudor ficou olhando para ela com um sorriso falso e um olhar paciente que escondia seu desprezo pela mulher. Ela então disse.

— Por... Sequestro... E abrir a porta até então selada da Gruta. — Tentou se soltar da mão de Lars, mas era inútil. — E por... Atentar, contra a vida da Chefe da Guarda de Balran. Ghan’raudor, você... Está preso.

O sorriso do homem foi substituído por um rosto sério, parecendo considerar tudo aquilo que ela havia dito. Então deu uma risada, soltando a mulher, enquanto voltava para seu trono. Sentou-se, e ficou olhando para a Loira, que passava a mão no pescoço, arfando.

— É isso? São essas suas acusações contra mim? Eu pensei que você tinha motivos concretos, mas são apenas um bando de besteiras.

Ela encarou o homem, incrédula. Como ele pode estar falando isso?,pensou a mulher, levantando-se.

— Nega ter feito tudo o que foi acusado?

— Eu nego. — Ele respondeu, mantendo um rosto sério. Lillian teve vontade de soltar um impropério, mas conteve-se. Quando ia falar, Lars a interrompeu com um erguer de mão. — Você vai me acusar, e apresentar suas provas. Esqueça-as, elas não tem embasamento.

— Que merda... Você está falando? — Zen ergueu-se, apoiado na parede.

— Eu não fiz nada disso que ela falou. Eu não sequestrei nenhuma criança, elas vieram porque elas quiseram. Eu não abri o selo da Gruta, ele estava aberto quando cheguei. Eu não atentei contra a vida de ninguém, aliás... Foram vocês que atentaram contra a minha. Invadiram minha casa armados de espadas, e tentaram me matar. Eu apenas me defendi, sabe.

— Você sequestrou o Rey, porra! — gritou Zen, avançando na direção de Lars. O homem soltou um suspiro e balançou a mão contra o Atormentado. Lillian pensou ter visto uma espécie de vibração na realidade, e Zen pareceu ter visto o mesmo, pois desviou no último instante. Chegou em frente a Lars e moveu um punho fechado contra o rosto do homem, mas uma pressão em seu peito o jogou para cima, e com um movimento de dedo do Ghan’raudor, o jogou na direção de Lillian. Ele caiu rolando no chão.

— Eu sequestrei mesmo? — ele sorriu. — Rey, uns conhecidos seus estão me acusando de sequestra-lo. — E dito isso, o garoto surgiu de trás do trono do homem, como num passe de mágica. O menino vestia roupas limpas e intactas, e seu rosto não estava mais sujo, assim como seu cabelo. Em seu rosto, não havia felicidade por reencontrar seus amigos, apenas uma seriedade fria não habitual. — Eu te sequestrei?

— Não, senhor Ghan’raudor— respondeu tal qual responderia um soldado para seu general. — Eu vim por conta própria. — Ele olhou para Zen, em seguida para Lillian. — Me desculpem por ir embora sem avisá-los, não pensei que se importariam a ponto de virem atrás de mim nesse lugar.

Zen estava em estado de choque. Suas pálpebras tremiam, enquanto ele tentava engolir tudo aquilo que Rey dizia. Lillian, se não estivesse num estado igual, estava pior.

— Por que... Por que está falando isso Rey? —Lillian disse. — Isso não é uma brincadeira!

— Eu sei disso, senhora Lillian. — Disse o garoto. — Eu não sei como me desculpar com vocês.

Damon sentou-se, arfando com a mão na barriga. A dor era evidente em seu rosto, e sua mente estava atordoada. Enquanto isso, o Atormentado olhava com fúria para o Ghan’raudor.

— Sabe, acho que isso tudo foi um grande mal entendido. E quer saber? Já que vocês fazem tanta questão de levar o Rey, podem leva-lo. — Falou Lars, apoiando a cabeça na mão.— Isso é... Se ele quiser ir.

Lillian olhou para Rey, e o garoto olhou para Ghan’raudor. Ele nada disse, apenas seguiu caminhando em passos lentos na direção do trio. Os olhos de Lillian acompanharam os movimentos de Rey, e quando ele chegou rente a Zen, tudo pareceu se mover em câmera lenta. Ele olhou Zen nos olhos, e deu um pequeno sorriso, então deu um abraço no rapaz.

O Atormentado virou o Assustado, e então sorriu, pousando a mão na cabeça do garoto, abraçando-o por fim. O menino falou, baixinho.

— Me desculpe. — Disse ele.

Zen franziu o cenho, pronto para falar qualquer coisa, mas as palavras não saíram a tempo de sua boca. Seu rosto mudou de repente de uma expressão de alivio para uma de dor e medo. Uma adaga furava sua barriga, e ela era segurada pelo pequeno Rey. O garoto girou a lâmina e puxou ela fora da barriga do Atormentado. Ele imediatamente botou a mão no ferimento, tentando conter o sangue que já escorria aos montes. O espadachim olhou para Rey, com medo nos olhos, e então tentou falar algo, mas outra vez nenhuma palavra foi dita. Ele caiu de lado no chão, os olhos fechando a meio caminho.

Tudo isso não durou nem cinco segundos, mas aos olhos da Cavaleira, o tempo havia parado. Ela olhou horrorizada para Zen caído no chão, e em seguida para Rey, que segurava a adaga suja de sangue na mão. Nada parecia certo ali, ela tinha ficado louca? Havia sucumbido a insanidade da Gruta? Uma risada veio arrancá-la de seus pensamentos e fazer o tempo correr outra vez, a risada de Ghan’raudor.

— Incrível! Incrível! — ele gritou, rindo, com um largo sorriso no rosto. Quase caía de seu trono de tanto rir. — Você! Você realmente se superou moleque! — Ele voltou a rir.

Damon olhava coberto de ira para aquele que dizia ser seu irmão. Rey havia largado a adaga e voltava a caminhar bem devagar de volta para o trono. Zen continuava caído no chão e Lillian olhava para baixo, de olhos fechados. O demônio voltou a falar.

— É parece que meu garoto aqui não quer ir com vocês, não é?! — ele se levantou, recuperando o fôlego de tanto rir. — Bem, vocês não têm mais o que fazer por aqui eu acho! Por que não vão embora? Quer dizer, se conseguirem ir embora! — e ele voltou a rir. — Ai, ai, pelo Pai Céu, vocês realmente acharam que esse garoto iria querer ir embora com vocês?! Para voltar a ser um moleque de rua?! Aqui ele tem tudo que ele quer, por que ele iria voltar para junto de vocês?! Para passar frio e fome de noite, enquanto vocês dois se amassam numa cama confortável debaixo de um lençol de seda?! — ele olhou para Zen e em seguida para Lillian, que permanecia parada como antes. Levantou-se do trono e deu uns passos para frente.

— Vocês são um bando de retardados! Ele sabe que não é igual a vocês! Um é um assassino que mata a sangue frio, e a outra uma Cavaleira. Comparada a vocês, um mendigo de merda que nem ele não é nada lá fora. Mas aqui, esse moleque é o que ele quiser, e tem o que ele quiser. — Ele finalmente alcançou Rey, pousando a mão na cabeça dele.

O garoto manteve-se de costas para os três lá atrás, sem dizer nada, enquanto Lars falava sem parar. Ghan’raudor dizia tudo com um sorriso diabólico no rosto, e suas palavras eram cheias de ódio e malícia, palavras de um rato, palavras de uma cobra.

— Agora, se já entenderam, peguem este morto aí e vão embora desse lugar, embora dessa cidade! Porque agora, Cavaleira de Balran, essa cidade é minha. — Ele apontou com o dedão para si mesmo, e deu mais uma risada, olhando para o alto.

Então um frio instalou-se sobre o lugar. De imediato, Damon e Ghan’raudor olharam para Zen, mas o rapaz continuava caído, próximo da Cavaleira, que nem morto. Damon não entendeu de primeira, mas o demônio demorou apenas um segundo para perceber quem provocará aquele arrepio, aquele sentimento de medo sem motivo. Mas um segundo foi tarde demais. Quando olhou para Lillian, ela já não estava mais lá. Havia sumido, e Lars olhou para os lados, procurando por ela. Encontrou-a em sua esquerda, e também encontrou o punho da mulher, que atingiu ele direto no rosto e o arremessou contra a parede.

A força foi tanta, que quando ele encontrou a pedra lisa, ele afundou nela. O demônio recuperou-se em seguida e já avançou contra a mulher, pronto para desviar de qualquer ataque, mas o que viu o surpreendeu. Lillian estava abaixada, abraçando Rey. E seu abraço tinha tanto carinho, que parecia uma mãe abraçando um filho. Ela acariciava a cabeça do garoto, passando os dedos com leveza pelos cabelos do menino. E ele permanecia parado, não retribuindo o abraço. Lars viu tudo aquilo e ficou aturdido, sem entender o que estava acontecendo.

— O que — ele perguntou, depois de uns segundos de silêncio. — O que você está fazendo? O que raios você está fazendo?! — gritou Ghan’raudour, enfurecido. — Ele acabou de enfiar uma adaga naquele desgraçado, e você o abraça?! O que tem em sua cabeça mulher?!

— Calado. — Ela falou. — Eu não quero ouvir sua voz, eu não quero ouvir uma palavra sua. Suas palavras cheias de ódio e ganância, palavras de uma víbora que espreita a noite, aguardando para abocanhar sua presa indefesa. — Ela afastou o corpo, apoiando a cabeça na testa de Rey. Sorria, e lágrimas escorriam de seu rosto. — Rey não é um ninguém, ele tem para quem voltar quando sair daqui. Pessoas que aguardam para ouvir suas baboseiras, e para atuar suas brincadeiras sem graça junto daquele idiota ali. — As lágrimas escorriam ainda mais pelo rosto da mulher. — Ele pode não ter tudo neste mundo lá fora, pode ter que enfrentar uma vida dura. Mas enquanto eu estiver viva, enquanto Zen estiver vivo, nós iremos dividir esse peso. Então Rey. — Lágrimas caíram, mas dessa vez eram do menino. Ele cerrava os dentes, para não chorar, mas as lágrimas caíam. Ele olhou para a Cavaleira quando ela disse seu nome. — Volte comigo, volte com Zen. Vamos sair daqui.

O menino largou a adaga e abraçou a mulher, berrando seu choro. Ela o abraçou ainda mais forte que ele, com a mão fazendo um cafuné em sua cabeça, enquanto sussurrava palavras de conforto. E durante todo aquele tempo, Ghan’raudor ficou calado, assim como tinha ordenado a mulher. Mas não era pela ordem dela, ou era? Será que era? Ele tinha obedecido à ordem dela? Quando se deu conta disso, sua fúria explodiu de uma vez só, e suas palavras saíram juntas de seu grito de ódio.

— Voltarem juntos?! — ele gritou, sorrindo, dando uma risada. Uma ventania se despendia do homem. — Saírem daqui?! Vocês são idiotas, seus desgraçados?! — tudo começou a tremer, como se a terra fosse se quebrar a qualquer momento. — Este lugar vai ser o túmulo de vocês, e eu serei o coveiro! — ele se moveu mais rápido que antes, seu corpo foi apenas um vulto negro que cruzou toda a distância entre os dois em questão de um segundo ou menos. Só para encarar um olhar frio da Loira, e suas palavras.

— Eu disse que não queria escutar sua voz de novo. — E junto das palavras dela, veio um golpe que surgiu do nada e pegou Ghan’raudor desprevenido, arremessando-o contra seu trono, destruindo a mobília por inteiro.

Damon estava em pé, não mais enfurecido. Encarava o irmão com seriedade e bravura em seu semblante. Segurava uma adaga na mão direita, a mesma que Rey havia usado para esfaquear Zen.

— Ei irmão — O Bandido apontou a adaga para onde estava Ghan’raudor. — Já está na hora de termos uma conversa em família.

Lars ergueu-se, sorrindo como um louco. Ele riu e falou para Damon.

— Perdeu o respeito pelo seu irmão? — ele riu. — Acho que vou ter que te ensinar o que é isso outra vez. — E avançou, num pulo que mais parecia um voo.

Um chute interrompeu seu caminho bem no meio, jogando-o contra a parede lá no outro lado. Era Lillian a dona do pé que havia acertado Ghan’raudor.

— Desculpe eu me intrometer nessa briga de irmãos, mas tenho contas a acertar com esse desgraçado. — Ela sacou a espada, girando-a entre os dedos. O frio ainda manifestava-se ao redor dela.

O demônio levantou-se, sem ferimento algum. O impacto havia derrubado pedras sobre ele, mas elas só fizeram cobrir ele com poeira. Ele voltou a rir, ainda mais alto que antes.

— Vocês são engraçados! Vocês são muito engraçados! — ele gritou. — Não tem chance alguma contra mim, e ainda assim agem como se pudessem me derrotar! — ele mostrou as mãos, nuas. — Veem isso?! Nada! Nenhum ferimento! Vocês não podem me ferir! Seus golpes são como picadas de mosquitos para mim! Só fazem perturbar!

Damon avançou, antes que seu irmão falasse mais alguma coisa. Logo chegou em frente à ele e começou seus ataques. Um chute que foi desviado, um soco que foi defendido, e outro chute que mal passou perto. E enquanto isso, Ghan’raudor ria, se divertindo com aquilo. Ele resolveu atacar, de brincadeira, devagar o suficiente para que Damon desviasse, e assim que o irmãozinho fizesse, ele o atacaria com força, o suficiente para quebrar umas três costelas, e então o jogaria contra a parede para mostrar que não importava o quanto tentasse, era inútil àquela resistência.

E lá foi o desvio de Damon, e lá foi o golpe de Ghan’raudor. Mas algo estava errado, ele viu por uma fração mínima de segundos um sorriso zombeteiro que não se manifestou nos lábios, e sim nos olhos do Bandido. E quando percebeu, a lâmina da Cavaleira vinha logo atrás do desvio de Damon, pronta para decepar Lars. Mas o diabo era rápido, mesmo não percebendo a tempo, reagiu antes que a espada arrancasse a cabeça de seu corpo. Escapou com um salto, um corte na garganta que logo se curou sozinho. E antes que tivesse tempo para pensar, a adaga que o Bandido segurava veio voando, cortando o ar, direto contra ele. Ghan’raudor ergueu a mão e a lâmina pequena afundou em sua palma, não escorrendo sangue algum. Ele cerrou os dentes, a fúria o consumindo. Focou o olhar em Damon, e percebeu o erro que havia cometido por fazer isso. Procurou por Lillian, e ela já havia sumido.

Sentiu o frio surgir atrás de si, e quando olhou por cima do ombro, lá estava ela no meio do ar, pronta para parti-lo em dois com sua espada. O homem arrancou a adaga da mão e usou-a para bloquear o melhor que pode o golpe da Cavaleira, mas a força dela e uma ajudinha da gravidade o jogou longe, quicando várias vezes no chão antes de parar de vez. O homem levantou-se, um tanto aturdido, surpreso pela habilidade e sincronia que aqueles dois haviam adquirido de repente. Até pensou em rir, mas conteve essa vontade. Era inútil, ele pensava. Logo saborearia o medo no olhar daqueles malditos, enquanto são cortados lentamente por sua lâmina. Ergueu os olhos, buscando Damon e Lillian, e eles já haviam sumido. Antes que tivesse tempo de encontra-los com os olhos, eles o alcançaram. O Bandido pela sua esquerda e a Cavaleira pela sua direita, agarraram o corpo do demônio e o imobilizaram de vez. Ele cerrou os punhos e tentou se livrar, mas era inútil. A força que aquela dupla estava despendendo era absurda.

— O que estão fazendo, seus malditos?! Como pensam em me derrotar desse jeito?! — gritou Ghan’raudor, passando o olhar de um para outro.

— Não somos nós que vamos te derrotar. — Disse Damon.

— Você irritou o único no mundo que não deveria ter irritado. — Complementou Lillian.

E então Ghan’raudor entendeu, quando olhou para frente. Lá estava ele, em pé, segurando sua espada na mão direita, enquanto a esquerda estava na cabeça de Rey. O garoto abraçado a suas pernas chorava, berrava enquanto as lágrimas escorriam. O homem sorria para o menino, sem raiva ou dor, apenas sorria um sorriso melancólico, carregado de tristeza. Ele então desviou o olhar para Lars, e tudo que o demônio sentiu foi medo.

O frio que se manifestou ocupou todo o salão, a respiração que saia da boca deles ali, saia como vapor. O próprio tempo pareceu congelar, quando sua voz saiu.

— Você fez o Rey chorar. — E seu movimento foi rápido, mais rápido que Lillian, mais rápido que Ghan’raudor. O demônio nem conseguiu acompanhar, só entendeu o que tinha acontecido quando estava feito.

Zen, curvado em sua frente, brandindo a espada com as duas mãos, atravessava a lâmina direto no coração de Lars. O demônio olhou para os lados, e Lillian e Damon estavam imóveis, assim como Rey mais adiante. Literalmente, o tempo parecia ter parado. Ghan’raudor olhou incrédulo para Zen, que o encarava com olhos de assassino, brilhando num amarelo, enquanto suas pupilas negras haviam diminuído até um pequeno ponto. O demônio entendeu. Aqueles não eram olhos de um assassino, eram lobos de um predador. Olhos de Lobo.

— Desgraçado — Lars conseguiu falar, e o tempo voltou a andar.

E com o tempo, uma ventania bateu contra o corpo de Ghan’raudor como se uma enorme pedra tivesse sido jogada contra ele. O vento arrancou-o do agarro de Lillian e Damon, e da espada de Zen. Voou como uma flecha e explodiu a parede, fazendo um estrondo que remetia a uma explosão. Toda a parede de pedra desmoronou sobre o corpo de Lars, e se ele estava vivo ou morto eles não sabiam. Lillian e Damon olhavam, arfando para Zen. Suas mãos tremiam e doíam, pela forma bruta que Ghan’raudor havia sido arrancado deles. O Atormentado sorriu para eles, e então sentiu suas pernas enfraquecerem de repente. Os dois seguraram seu corpo, antes que caísse. Rey se aproximou, não chorava mais, mas ainda soluçava. Ele segurou a calça de Zen, e o rapaz sorriu para o garoto, visivelmente destruído pelo cansaço e pela dor.

— Rey, quer ir para casa com a gente? — perguntou Zen, e o menino não respondeu com palavras. Apenas balançou a cabeça, concordando, se contendo para não voltar a chorar. O Espadachim riu, esfregando o cabelo dele com a mão esquerda. — Certo, vamos embora.

Apoiado nos dois, e com Rey segurando a calça de Zen, os quatro começaram a caminhar em direção à saída. Lillian queria sorrir, queria rir. Estava alegre, e seu peito estava aliviado. Ela queria abraçar Zen, queria abraçar Rey, mas não podia fazer isso. Pelo menos, não ali, naquele lugar, naquela hora. Ela seguiu, com Zen apoiado nela, enquanto ele falava qualquer besteira usual dele. Tudo tinha acabado, os quatro estavam vivos, tudo tinha dado certo. Então escutou um barulho, que a fez gelar. Era uma pequena pedra que caiu do topo onde o corpo de Lars estava enterrado, mas algo naquele barulho a fez parar, e os três também pararam como se tivessem pressentido algo.

E esse algo se mostrou verdade. A grande montanha de rochas que servia de túmulo para o corpo de Ghan’raudor explodiu, jogando pedras para todos os lados, enquanto uma nuvem de poeira se espalhava pelo local. Damon olhava espantado, assim como Lillian e Rey. Zen olhava com um rosto sério. Então veio uma risada. Ela começou baixinha, apenas uns “há há há” soltos no ar, e então aumentou, até se tornar uma risada tão alta e cheia de maldade que manifestou-se fisicamente como vento, e dissipou a poeira. Lars, desfigurado por ferimentos, sangrando negro, com o corpo todo quebrado e remoído, um morto vivo, estava ali, olhando para eles com o único olho que havia sobrado. Ele ria, e sangue negro borbulhava de sua boca junto da risada.

— Vocês acham — ele conseguiu dizer, mesmo que não parecesse possível. Sua voz não era mais a mesma. Era como se várias vozes falassem ao mesmo tempo, como se não fosse apenas Lars falando, e sim centenas de pessoas. —Acham que venceram? Que vão sair daqui felizes e contentes? Que tudo vai acabar bem e vão tomar o chá da tarde? — ele deu um passo para frente, o braço esquerdo que estava como um “z” voltando para o lugar, estralando, assim como a perna direita que parecia ter sido esmagada. — Eu mando nesse lugar. — Disse. — Eu sou o dono desse lugar! — gritou. — E enquanto eu mandar nesse lugar, eu sou imortal! E vocês, vocês não são nada!— ele gritou em fúria.

E sua sombra ergueu-se como uma aura enorme, de uns dez metros de altura, quemantinha-se curvada. Era um enorme demônio negro, que olhava para os quatro com um sorriso maligno, ansiando devorá-los. Uma ventania começou a se despender de onde estava Ghan’raudor, enquanto o corpo dele ia se recuperando devagar. Zen botou o braço na frente de Lillian, empurrando-a para trás de si, ficando na frente dela e de Rey, enquanto Damon se mantinha ao seu lado. Rey estava amedrontado, horrorizado, e os três não sabiam mais o que fazer, estavam sem chão, e ainda assim, não pensavam por nenhum momento em desistir. Lillian, engolindo em seco, sacou sua espada. Zen sacou a sua e Damon puxou uma adaga, os três encarado o demônio negro que ria maliciosamente.

Então surgiu uma luz branca, que brilhou forte como um sol. A luz tomou conta de todo o antro. Era quente, mas também era fria. Parecia que dava para tocar, mas ao mesmo tempo não dava. Era reconfortante, e trazia uma sensação de paz. A criatura negra de sombras grunhiu de dor e se desfez ao toque da luz, e agora só restava um Lars ajoelhado no chão, que tentava proteger os olhos com o braço.

— Quem? —Ghan’raudor conseguiu dizer. — Quem está ai?! Quem és?! — ele gritou.

— Aquela Que Sonha — disse uma voz feminina. — A Mãe dos Viajantes, a Dona Das Mentes Avoadas, a Senhora da Gruta. — Da luz surgiu uma figura de aspecto feminino, totalmente alva e brilhante. Flutuava, as pernas esticadas para baixo e os braços para os lados. Estava nua, mas não se via nada de seu corpo, pois era dele que vinha toda aquela luz. — Você, criatura de trevas e sombra, que ousou corromper este lugar. Este que devia ser o refúgio para os sonhadores e os atormentados. Este que devia providenciar bons sonhos e lugares cheios de luz e paz. — Ela tocou o chão, e grama verde se espalhou onde ela pisava. — Você, que trouxe o terror e a loucura para minha casa, que trouxe o mal e o medo para meu Salão dos Pensamentos. — Sua voz estava carregada de ira, e à medida que falava a luz se intensificava. — Você, assassino daquele a quem dei meu coração. — Ela apontou a mão para Lars, e o corpo dele retesou no ar, rígido, imóvel.

— Você! — ele conseguiu gritar, com dificuldade. — Como?! Eu sou o dono desta gruta! Eu dominei você! Eu sou imortal! — ele gritou cheio de ódio, e a mulher respondeu seca.

— Você é nada. — Ela fechou a mão, e Ghan’raudor explodiu em luz, não deixando nada para trás. Então tudo começou a tremer outra vez, e a mulher voltou-se para os quatro, que olhavam tudo aquilo com assombro. — A Gruta está corrompida, suja, infestada pela insanidade e pela mácula negra dos Malkan. Este lugar, que por milênios existiu como um antro de paz e sonhos agora não passa de um poço de medo e ódio. Eu estou dando fim nesta Gruta, acabando com a existência dela.— Ela disse, e continuou. — Vão, saiam daqui, vão embora. Abandonem este lugar, antes que sejam tragados para a não existência.

Os quatro permaneceram parados por alguns segundos, e então entenderam. E começaram a correr. Não exatamente correr, porque Zen ainda não conseguia se mover muito bem, mas literalmente correram. Atravessaram a porta por onde haviam entrado anteriormente, e atrás deles vinha a luz daquele ser branco. Tudo tremia, como um terremoto. Rachaduras começaram a surgir pelas paredes de pedra, e rochas enormes caiam do teto. Entraram por outra porta escavada na pedra, entrando num corredor. Fizeram todo o caminho de volta da Pedrastrada o mais rápido que conseguiam. Atrás deles a luz os perseguia, consumindo tudo. Então Rey tropeçou, caindo no chão.

Zen olhou para trás, e então para o alto. Uma enorme rocha estava caindo, e iria atingir Rey em cheio, e não haveria futuro para ele se isso acontecesse. E antes que conseguisse fazer alguma coisa, Lillian já havia agido, e se jogara para abraçar Rey e o proteger. Zen só conseguiu dizer um não seco, e se jogou em seguida, abraçando os dois no chão. Damon olhou tudo e antes que ele mesmo conseguisse fazer algo, o chão onde estava cedeu e ele caiu, sabe-se lá se num abismo, ou num andar inferior. E enquanto tudo ia desmoronando, e pedra que estava a poucos centímetros de esmagar os três o atingisse, Lillian escutou alguma coisa. Zen havia falado algo, o que era? Ela não conseguiu ouvir tudo. Eu te... Eu te que? O que ele havia dito? Ela não teria tempo pra escutar o resto da frase. A pedra os atingiu.

Tudo ficou negro.

Era silencioso e escuro, ela sentia-se num enorme vazio, flutuando sem rumo. Não tinha noção do tempo ali, talvez estivessem passando segundos, talvez milênios, mas sentia algo quente. Como se a envolvesse, num abraço cheio de ternura. Estava viva? Experimentou tentar ver algo, e então percebeu que podia abrir os olhos. E quando o fez, estava de volta. Não havia pedra alguma, estava viva. E abraçando ela e Rey, estava Zen. Pessoas, centenas delas estavam de pé, atordoadas. Vestiam trapos, e não tinham noção do que estavam fazendo ali. O lugar em que estavam era literalmente uma Gruta, mas não profunda como a em que estiveram. A uns quinze metros dali estava a saída, e eles estavam encostados na parede no fim dela. Damon estava caído adiante, ressonando. Rey e Zen também, o garoto deitado no colo da Cavaleira e o homem abraçado aos dois. Ela sorriu, aliviada. Fechou os olhos e encostou a cabeça no ombro de Zen. Tinha acabado, eles haviam sobrevivido. Acho que naquele momento, Lillian pensou que dormir junto daqueles dois idiotas não teria problema.

Ela dormiu. Ela sonhou.

E tudo havia terminado bem.


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