A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 36
Laços de Sangue


Notas iniciais do capítulo

"— Eu sei o que você busca, e encontrará assim que atravessar esta porta, mas quero lhe dizer uma coisa: talvez você não queira ver o que há lá. Temos um impasse aqui, rapaz. Siga a palavra dela e se arrependerá para sempre, não siga, e o mundo sofrerá. O que fará?"



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"Acho que vou ficar aqui pra sempre...", pensou, deitado no chão. Seu corpo inteiro doía a vontade de se levantar era quase nula. Em algum lugar próximo de onde estava, água corrente deslizava pelo chão de pedra, produzindo um barulho suave e agradável, contrastando com o cheiro que impregnava o local, algo que se assemelhava à algum animal morto ou coisa pior.

Contra a sua vontade, levantou-se e tateou cegamente ao seu redor, encontrando com muita dificuldade uma parede para se apoiar. Seu estômago finalmente reagiu ao cheiro, aos golpes do seu encontro anterior e ao esforço de parar em pé, obrigando-o a se curvar quando o vômito subiu pela garganta. Permaneceu daquele jeito por alguns segundos, limpou a boca e olhou ao redor, ou pelo menos tentou. Não conseguia enxergar nada, mas conseguia sentir. Havia algo se aproximando, uma energia ascendente e fantástica, positiva.

Tudo se iluminou subitamente com algo que parecia ser algum tipo de poeira dourada. A explosão luminosa gerou o espectro de uma belíssima mulher, cabelos brancos, curvas generosas e um rosto amigável.

— E-Ei! — Damon tentou se afastar, mas a mulher avançou em sua direção sem hesitar. Lançou a mão em seu peito e firmou-a lá. Um bem-estar inimaginável se espalhou pelo corpo do caçador e ele fechou os olhos, extasiado.

— Laços de sangue causaram tamanho mal. Eu deveria aniquilá-lo em retaliação, mas vou conceder-lhe a chance de acabar com isso. Vá em frente e faça o que seu nasceu para fazer: matar. Não importa quem, não importa como, apenas mate-o, e não deixe que as emoções o dominem... poderá ser seu fim.

Um archote surgiu na parede oposta à que Damon estava perto e bem ao lado, uma enorme e estranha porta. No tempo que passou olhando para lá, a desconhecida mulher desapareceu. Respirou fundo. Seu corpo estava bem, não sentia dor alguma e o mal-estar havia desaparecido. Caminhou em direção à porta e girou a maçaneta de bronze, enchendo o ar com um rangido penetrante, mas antes que terminasse de abrir a porta, uma voz rouca e arrastada o fez olhar para trás.

— Tem certeza que deve confiar em alguém que nunca viu na vida? — riu o desconhecido, sendo interrompido por uma crise deplorável de tosse. Era, à primeira vista e com pouca iluminação, bem mais baixo que Damon, com uma elevação assimétrica e consideravelmente grande próxima ao ombro direito. Seus olhos eram esbugalhados e insanos, semelhantes ao seu sorriso escancarado de dentes podres e em sua maioria, inexistentes.

— Boa pergunta. Por que eu não deveria te matar aqui e agora? — Damon retrucou, de cara feia. Já estava farto de estranhos aparecendo o tempo todo e dizendo o que fazer ou não fazer.

— Eu sei o que você busca, e encontrará assim que atravessar esta porta, mas quero lhe dizer uma coisa: talvez você não queira ver o que há lá. Temos um impasse aqui, rapaz. Siga a palavra dela e se arrependerá para sempre, não siga, e o mundo sofrerá. O que fará? — começou outra risada, mas a tosse retornou com mais força. Damon virou as costas e seguiu pela porta entreaberta, ainda ouvindo a gargalhada falha e ecoante.

"Velho esquisito...", pensou, adentrando a escuridão tão densa que praticamente poderia ser cortada pela adaga que carregava na cintura. Ao que parecia, estava em um enorme corredor. Um feixe luminoso anunciava a saída, não muito longe de onde estava, por isso parou e esperou para ver se algo aconteceria para impedi-lo de chegar lá.

"Não pode ser assim tão fácil". Retirou a adaga da bainha e continuou olhando para o fim do corredor. Como se tivesse apertado um botão de ativação, o chão tremeu e nas paredes, seis pares de olhos vermelho-sangue surgiram.

— Só pode ser brincadeira... — Damon comentou, sarcástico. Seis armaduras vazias se colocaram em seu caminho portando lanças, espadas e clavas. Começaram a caminhar na direção dele em perfeita sincronia, como soldados em marcha. As armas estavam empunhadas perigosamente e o caçador recuou. Elas estavam em uma formação de três fileiras, dois em cada uma. Não podiam andar mais do que isso lado à lado, visto que o corredor era apertado e lutar ali seria tarefa difícil. Olhou para trás, cogitando voltar para o local anterior, mas a porta havia desaparecido. "Excelente", pensou, sarcástico.

— Ei! — começou ele, gesticulando com a mão livre. — Vocês não me deixariam passar, rapidinho? Eu volto e converso com vocês depois, é que eu tô realmente sem tempo e... — A primeira fileira, que estava apenas a alguns passos na frente dele, atacou. Espada e machado se cruzaram sobre sua cabeça quando se abaixou para esquivar, colidindo com as paredes opostas. Damon se ergueu rapidamente e golpeou o gorjal da armadura da direita, desprendendo o elmo do que seria o "pescoço" de alguém lá dentro, não fosse o fato de elas estarem vazias. A outra ainda tentava desprender a lâmina da parede quando o caçador fez o mesmo com ela também.

Recuou mais um passo e sentiu o antigo espaço da porta atrás de si, contra suas costas. Virou-se e viu que não tinha mais para onde correr, estava cercado. Balançou a cabeça, com raiva, e flexionou os joelhos, preparando-se para correr na direção das duas fileiras de inimigos que avançavam impetuosamente. Começou a correr até a única saída possível, e como era esperado, as armaduras atacaram. A que portava uma clava atacou. Damon saltou e pôs o pé na parede, impulsionando o corpo contra a armadura e usando o joelho para arrancar seu elmo. O inimigo caiu para trás pesadamente, enquanto o caçador chutava a junta esquerda atrás do joelho da outra que mal tivera tempo de se virar em sua direção.

As últimas duas, se fossem humanas, teriam recuado ao ver os pedaços espalhados das armaduras anteriores, mas isso não aconteceria. Era apenas um monte de metal enfeitiçado. Caminhou até elas e se esquivou dos ataques simultâneos, batendo com o cabo da adaga na que se preparava para perfurá-lo com a espada e redirecionando o golpe dela para o outro inimigo. Caíram ao mesmo tempo. Damon se abaixou, pegou o elmo de uma delas e finalmente atravessou a saída do corredor.

A luz que atingiu seus olhos o impediu de ver momentaneamente. Segundos se passaram, até que, piscando várias vezes, voltou a enxergar e pôde analisar o que tinha ao seu redor.

Havia todo tipo de riquezas ali. Armaduras esmaltadas, armas repletas de jóias em seus punhos, coroas, cálices, pedras preciosas, vestes caríssimas e mil outras coisas que Damon sequer conhecia, tudo isso praticamente ofuscado pelas montanhas de moedas e peças de ouro que tomavam conta do local. Um trono se erguia imponente sobre um enorme pilar de obsidiana. Outros quatro pilares iguais estavam espalhados em cada um dos cantos do local, cada um com um símbolo diferente entalhado no centro. Se iluminavam em vermelho, assim como os olhos das armaduras vazias, e aquilo provocou uma sensação terrível no caçador.

O trono também não era algo que alegrasse os olhos de quem o visse. O apoio para as costas era muito mais alto do que seria adequado para qualquer humano que se sentasse ali. O assento era de veludo, tingido de um rubro intenso. Parecia ser a combinação perfeita para a madeira quase preta que compunha a estrutura do trono. Havia alguém sentado lá, e Damon sabia que era ele o seu alvo, embora não conseguisse enxergar o rosto.

Trocou o elmo de mão uma ou duas vezes e então, arremessou-o na direção do trono. Colidindo com o chão e fazendo o barulho de metal ecoar uma ou duas três vezes, a peça parou aos pés de Ghan'raudor.

— É você que manda aqui? O dono do lugar? Temos negócios a tratar, sabia?! Uma mulherzinha estranha acabou de aparecer, me curou e disse que eu precisava te matar. Alguma objeção? Não? Ótimo!

Mesmo à uma distância considerável, Damon ouviu-o suspirar. Um zunido agudo invadiu os ouvidos de Damon e uma dor de cabeça terrível surgiu, subitamente. O rapaz sentia a pressão ao seu redor como se estivesse debaixo de uma carroça, tentando erguê-la nos ombros. Caiu de joelhos, tapou as orelhas com as mãos e gritou. Um grito de pura agonia, que expressava perfeitamente a dor excruciante que lhe afligia. Os efeitos cessaram.

Ofegante, olhou para a frente e deu de cara com seu adversário. Estava a menos de um metro dele, e por estar de joelhos, teve que olhar para cima para enxergar seu rosto. Sentiu como se o seu coração tivesse parado. O ar fugiu de seus pulmões e seus olhos se arregalaram, tamanha era a surpresa e incredulidade ao identificar o agressor. Abriu a boca para dizer alguma coisa, mas as palavras haviam fugido. Não era nenhum demônio maligno ou qualquer tipo de vilão das histórias que as princesas ouvem em seus castelos, era seu irmão.

***

— Ei, Damon! — Lars gritava para ele, de cima da árvore. — Se não consegue subir nem em uma árvore desse tamanho, como pretende me ajudar com as "arrecadações"?

— Cala a boca, eu consigo sim! — Damon desviou o olhar, com raiva. As bochechas estavam coradas e os braços cruzados. Não conseguia acompanhar o irmão, isso era fato, mas não desistia nunca. Agarrou-se em um pequeno sulco no tronco da árvore e utilizou-o para chegar mais alto, quando podia alcançar o galho mais próximo. Pendurou-se como um macaco e cruzou as pernas ao redor dele, ajeitando-se penosamente até conseguir se sentar. A partir dali, em poucos minutos já estava próximo o suficiente do irmão para que pudesse encostar nele, em seus pés.

— Você precisa ser mais rápido, Dammy. As fugas não permitem que você demore. Pense comigo: você, correndo de três ou mais guardas da cidade, entra em um beco sem saída e tem que escalar uma casa, ou um muro alto para fugir. Pediria para os guardas esperarem? Não! Você tem que ser ágil como um gato, ou como uma cobra, mas cobras não escalam. — Disse, sorrindo, mas seu sorriso não durou muito. Ele fechou a cara e completou, temeroso — pelo menos eu espero que não.

— Enfrenta guardas armados mas foge de uma cobrinha? — provocou o menor, abafando o riso.

— Pelo menos eu não molho a cama enquanto durmo! — respondeu Lars, com um ar vitorioso em suas palavras, mas este sumiu rapidamente quando Damon agarrou um de seus pés e o puxou para baixo, obrigando-o a saltar da árvore. Quando chegou no chão, efetuou um rolamento que absorveu a queda e olhou para cima, só para ver a expressão incrédula do irmão. — Viu? Eu sempre te surpreendo!

***

— Viu? Eu sempre te surpreendo. — Lars parecia calmo, calmo demais para um reencontro deste porte.

Damon se ergueu, furioso, e agarrou a gola das riquíssimas vestes do irmão. Seu coração batia forte e descontroladamente, bombeando com força o sangue que corria quente por seu corpo.

— Como?! — ele fechou os olhos, e quando abriu novamente, estavam marejados. — Como diabos você pode estar aqui, comigo? Como você pode ser real se eu vi você morrer, se eu vi você ser levado por aqueles caras depois de ter a garganta cortada? Por que, se você está vivo e bem, nunca procurou por mim? Eu sou seu irmão, droga!

— Mas Dammy, eu nunca disse que estava vivo. — A voz do que antes pensava ser o seu irmão estava agora impregnada com a zombaria. — Seu irmão era só um ladrãozinho inteligente e rápido demais pra escapar dos meus homens por dois anos seguidos. Mas uma hora isso acaba, sabe? E por isso ele não teve muito tempo para se despedir de você.

— Você... — Começou Damon, em uma mudança súbita de expressão facial. Da tristeza, havia passado para a surpresa e agora, raiva.

O ser que habitava o corpo de Lars gargalhou. Era uma risada insana, escandalosa e acima de tudo assustadora. Golpeou o estômago de Damon com uma joelhada fortíssima, obrigando-o a se curvar novamente. Antes que pudesse voltar a ficar de joelhos, recebeu um gancho de direita no queixo e foi lançado de costas ao chão.

— Não fique decepcionado, garoto! Seu irmãozinho era o único capaz de aguentar a energia que eu emano, o corpo dele era perfeito! Eu tentei com outros, mas a pele ia se corroendo toda e em uma semana já estavam inutilizáveis... Lars nasceu destinado a ser o hospedeiro de algo maior, mas você nunca entenderia... a única chance que teve de ver o Primeiro foi desperdiçada quando você e seus amiguinhos saíram correndo de Aileen!

Damon começou a se levantar, meio vacilante.

— Eu não sei quem você é, ou o que você é... — começou, apoiando-se nos joelhos. Cerrava os punhos com tanta força que os nós de seus dedos estavam brancos. Sua cabeça estava baixa, mas quando finalmente ergueu-a e olhou nos olhos daquele que exibia o corpo de Lars como uma roupa, eles expressavam a mais profunda e monstruosa raiva. — MAS VOU ARRANCÁ-LO DO CORPO DE MEU IRMÃO À FORÇA! — Berrou, à plenos pulmões.

— É isso! É isso que eu quero ver! — o demônio bateu uma palma, alegre, e sorriu. — Venha! Vamos ver do que você é capaz, quem sabe até não seja meu próximo hospedeiro? Afinal, esse aqui vai ser passado adiante e pensando melhor, se o Primeiro descobrir que eu usei o corpo antes dele, as coisas não vão ficar boas pra mim, então é melhor que...

Damon mal foi visto se movendo. Sua velocidade era tanta que havia acertado o rosto do oponente com um soco antes mesmo que ele terminasse de falar. O que Damon não esperava era que o demônio sequer se moveria, mesmo recebendo em cheio um golpe com aquela força. Recuou a mão e jogou o corpo para o lado, esquivando-se do contra ataque que veio em sua direção.

Afastou-se alguns passos e olhou ao seu redor, procurando sua adaga. Havia deixado-a cair quando tapou os ouvidos, sendo impossível segurá-la com a dor que tomara conta de seu corpo. Avistou-a próximo de onde seu inimigo estava. "Merda! Não podia estar um pouquinho mais perto?", pensou, irritado. Não teve muito tempo para pensar, pois antes que pudesse reagir, foi agarrado pelo braço e jogado no chão. Recebeu um chute no peito e uma dor penetrante se espalhou pela região atingida.

— Essa sua velocidade... — o demônio olhava para ele com uma expressão selvagem de interesse. — Você é realmente irmão desse aqui. Os dois são rápidos, embora você seja mais fraco, posso sentir. — Abaixou-se e agarrou Damon pelos cabelos, erguendo-o até seus rostos ficarem nivelados. — Infelizmente, vou ter que procurar outro corpo. Se você não consegue nem mesmo me afastar um passo, não serve para esta tarefa. Adeus, Dammy. — Afastou a mão direita e ela começou a fumegar. Uma pequena esfera flamejante brotou em sua palma e girava em seu eixo, veloz. Lançou-a na direção de Damon, os olhos fechados pelo prazer de matar.

Tudo aconteceu em um enorme caleidoscópio de ações. Um vulto acinzentado passou entre os dois e o caçador foi lançado para trás. A bola de fogo que Ghan'raudor estava prestes a libertar à queima-roupa nele foi desviada para uma pilha de moedas, que agora não passavam de uma cascata de ouro derretido. O demônio abriu os olhos e eles foram atraídos imediatamente para o coto fumegante que antes era o seu braço.

— Desculpe o atraso! — Zen olhava para Damon, com um sorriso sem graça no rosto. — Estive meio atrasado por causa de um carecão furioso e uma loira brutona. — Apontou para um enorme portal de pedra que dava espaço à um local repleto de jaulas. Lá na porta, uma mulher de enormes cabelos loiros e armadura completa de cavaleiro brandia sua espada, olhos fixos em Ghan'raudor.

— Zen! — Lilian gritou, de onde estava. Apontou para o adversário e os dois rapazes olharam para lá, imediatamente. A escuridão parecia ter se tornado sólida e fazia voltas em seu próprio eixo, deslizando pelo ferimento. A forma de um novo braço foi se tornando mais clara a cada segundo. Ele abriu e fechou os dedos várias vezes, como se o estivesse testando.

— Pois bem... — Ghan'raudor olhou para os três com um sorriso enlouquecido nos lábios. — Vocês estão encrencados.


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