A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 34
Sonhos Esquecidos


Notas iniciais do capítulo

"Cavaleiros... não só um, mas os três", pensou, após eles passarem. "A comitiva de algum membro importante da nobreza se aproxima".



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A chuva caía fraca do lado de fora. Alguns pingos colidiam com a janela quando tinham sua rota alterada pelo vento, mas na maioria das vezes, apenas se lançavam ao chão em linha reta. Frey apenas observava, com o olhar distante, aquele cenário melancólico que se construía ao seu redor. O silêncio era absoluto, ou pelo menos quase, já que hora ou outra Pete roncava lá de sua cama.

Estava sentado sobre uma enorme cômoda de uma madeira escura e bem trabalhada. Não conseguia dormir, preocupado com o irmão. Perguntava-se se o garoto havia sentido medo quando capturado, mas nunca chegara a abordá-lo com a questão. Não queria falar disso com ele, afinal, as vezes era melhor simplesmente "enterrar o assunto".

"Que merda de irmão eu sou?". Atravessou o quarto e abriu a porta devagar. Um rangido agudo rompeu o silêncio, mas o cansaço de Pete era tanto que nem mesmo se mexeu. Deixou o quarto, esfregando os olhos para afastar qualquer resquício de sono que houvesse em seu corpo.

— Tentando fugir, é?

A voz feminina e a aparição repentina de alguém quando pensava estar sozinho foram suficientes para Frey tirar as mãos dos olhos.

— Ah, é você... — sorriu para ela, e desviou o olhar.

— Decepcionado? — Anne retrucou, também sorrindo. — Acho melhor não responder, se quer continuar vivendo. — Puxou-o pelo braço até o seu próprio quarto, que não era muito diferente do dele. O assoalho rústico e gasto em vários pontos não ajudava em nada na tarefa de embelezar o ambiente, mas se havia algo que trazia certa graça a quem olhasse era a cama. Era enorme, imponente, e ocupava uma boa parte do quarto. O dossel branco, quase transparente, estava aberto e revelava cobertas de veludo avermelhado, lençóis limpos e travesseiros de pena.

— Cara, quanto teremos que pagar amanhã? — Frey exalava em sua voz um misto de preocupação e ironia.

— Já pagamos, não se lembra? — a garota ampliou ainda mais o seu sorriso de um modo travesso e descontraído. — Nosso anfitrião deve gostar de ruivas.

— Sei. — Resmungou o outro. — Mas a pergunta que não quer calar, por que você ainda tá acordada?

Anne respirou fundo e sentou-se na cama, encarando as próprias mãos enquanto brincava com os dedos, sem muito ânimo. Seus cabelos caíam sobre o rosto, ocultando-o sob sombras tênues. Colocou-os atrás da orelha direita e respondeu a pergunta de Frey, em voz baixa. Todo o ânimo anterior parecia ter desaparecido.

— Eu estou preocupada com o que vai acontecer conosco daqui pra frente, Frey. Comigo, com você, com o Pete, com todo mundo. Onde diabos está o Damon? Quem é essa tal de "Sarym"? O que a gente espera aqui nessa cidade, ao invés de prosseguir? E prosseguir pra onde, caso isso aconteça? Desde que nos juntamos, desgraças acontecem uma atrás da outra e isso meio que... mexe comigo. Pessoas estão se machucando por nossa causa!

Frey se sentou ao seu lado e segurou uma de suas mãos, interrompendo o jogo de dedos que ela fazia.

— Nós vamos salvá-las de algo pior, é por isso que estamos aqui. O Flagelo... nós vamos impedi-los, embora eu não ache que isso será fácil. Eu vou fazer o que for preciso e... bem, eu não sou tão inútil agora, né? Aquilo que eu fiz pra salvar o Pete... eu acho que tenho uma chance contra algum deles. Não é possível que sejam tão fortes assim.

"E também, nós temos você.", guardou os pensamentos para si. Recordava-se todos os dias do momento em que Anne perdeu a consciência e o fogo se dobrou à sua vontade.

— E quanto ao Damon... — Frey continuou, cauteloso, embora se sentisse irritado por ter que falar sobre esse assunto. — Você realmente acha que ele faz alguma falta? Digo, ele não se importava com nenhum de nós e provavelmente atiraria uma flecha em todo mundo pra atrasar o Flagelo, que ia se ocupar arrancando nossas tripas enquanto ele fugia à cavalo, pronto para encontrar outro grupinho pra participar.

Já estava em pé, olhando para a janela. Anne colocara uma das mãos sobre o peito e olhava para ele, os olhos marejando.

— Eu... eu só... — começou, mas o outro a interrompeu.

— Deixa pra lá, só queria que pensasse um pouco melhor sobre tudo isso. As coisas andam acontecendo em um ritmo muito... alucinado? Não sei se essa é a melhor palavra, deixemos ela aí. — Respirou fundo e voltou a se sentar na cama. — Só queria ir pra casa, sabe…? Deixar tudo isso para os outros resolverem e viver a minha vida e...

Não pôde continuar a frase. Arregalou os olhos quando sentiu os lábios de Anne se unirem aos seus. Seu coração acelerou e passado o momento de surpresa, pôde retribuir o beijo de um modo mais natural. Permaneceram daquele jeito por algum tempo, até que por fim, Anne se afastou, sem jeito.

— P-Por que...? — questionou Frey, que não estava entendendo nada.

— Não sei como te agradecer por tudo que fez por nós, então... talvez isso sirva, né?

— Espera... faz silêncio. — Disse, de súbito.

— Ei, Frey! Também não precisa ser assim, né...? — começou a garota, o rosto ficando levemente corado pela irritação.

— Não, sério, faz silêncio! — insistiu, em tom de urgência.

Lá fora, mais alto do que o barulho da chuva colidindo com o chão e as estruturas de Balran, cascos trovejavam pela rua principal. Frey avançou até a janela rapidamente e olhou na direção da origem do som. Três cavaleiros cortavam a distância até o castelo em alta velocidade, equipados com magníficas armaduras negras como o breu, delineadas por um vermelho selvagem. Bainhas pendiam semi-soltas em suas selas, exibindo espadas mortalmente encantadoras. Os rostos ocultos pelos elmos que proporcionavam, no máximo, um pequeno vislumbre de seus queixos. A sombra reinava em suas feições, ocultando-os até mesmo do melhor observador. Os cavalos eram tão ameaçadores quanto os homens que os montavam. Verdadeiros cavalos de batalha, enormes e bem tratados.

"Cavaleiros... não só um, mas os três", pensou, após eles passarem. "A comitiva de algum membro importante da nobreza se aproxima".

***

A noite estava quente e abafada quando Frey finalmente foi liberado do trabalho. Decidira forçar um pouco mais as coisas na construção do Porto de Bravia, afinal, quanto mais rápido aquilo acabasse, mais rápido receberia e poderia descansar por um bom tempo. As ruas de Bravia à essas horas eram vazias e a lua iluminava o seu caminho, dispensando a luz fraca e vacilante dos archotes ao seu redor. Seguiu direto para casa, e como era de praxe, encontrou a porta da frente da pensão destrancada. A Senhora Lyana sempre a deixava assim para que Frey entrasse em casa depois do trabalho sem fazer barulho, e confiava no rapaz, que sempre a trancava depois de entrar.

Subiu as escadas da forma mais suave que conseguiu e só houve um pequeno rangido quando atingiu o penúltimo degrau. ”É sempre você que range, né, maldito?", pensou, amaldiçoando o degrau mentalmente. Parou de andar por um momento ao ouvir a voz de Pete que pelo horário, já deveria estar dormindo.

— Pai... e a mãe também... sou eu, Pete. Penso em vocês todas as noites, sabiam? Você é o herói que eu quero me tornar, papai, e embora não tenha sido capaz de proteger a mãe, eu... eu teria feito o mesmo se tivesse perdido alguém que eu amasse muito. Eu vou me tornar um grande cavaleiro, igualzinho ao senhor, sabia? Bem, quer dizer, eu ainda não tenho uma espada para treinar, mas assim que os novos recrutas forem chamados, eu vou tentar ir também... quem sabe eu não seja um deles, né? Vocês ficariam orgulhosos? Eu vou proteger até o Frey!

A visão de Frey se tornou completamente embaçada quando as lágrimas invadiram seus olhos e escorreram por suas bochechas. Seguiu direto para o quarto, a passos rápidos, e fechou a porta atrás de si. Sentou-se na cama e afundou a cabeça entre as mãos, uma dor excruciante perfurando o peito. "Por que você teve que morrer, pai? Era um dos melhores cavaleiros do Falcão, e mesmo assim você nunca mais voltou para casa, só esse maldito colar!".

***

— Ei! — Anne balançava uma das mãos à frente de seus olhos, buscando sua atenção.

— Desculpa... eu me perdi nos pensamentos. — Coçou a nuca, meio sem jeito. — Eu preciso ir, tá? Vou tentar dormir um pouco e... bem, depois a gente se fala. — Virou-se e saiu do quarto às pressas. Voltou para o seu, encontrando Pete acordado e extremamente eufórico em sua cama.

— Frey! Cavaleiros! Você os viu? Eram enormes, e os cavalos maiores ainda! O pelo era brilhante, e a armadura deles, e as espadas, e os elmos, e também...

— Ei! Calma lá! Eu também os vi, não precisa ficar tão deslumbrado! Eu só fui ver se estava tudo bem com a Anne, então, como tudo está em seu lugar, vamos dormir.

— Mas eu já... — começou Pete, na esperança de sair lá fora para ver os recém-chegados no castelo.

— Vamos... dor-mir. — Finalizou o assunto, impedindo os próximos pedidos do irmão.

Jogou-se em sua própria cama e permaneceu olhando pro teto por alguns instantes, pensando no que havia ocorrido no quarto de Anne. "Ela me beijou... por "tudo que eu fiz"?", pensou. Um sorriso bobo surgiu em seus lábios. Virou-se para o lado e fechou os olhos, mas a cena permanecia vívida em sua mente.

"Talvez as coisas melhorem um pouco daqui pra frente", refletiu, esperançoso. Naquele momento, mesmo que não soubesse, o destino ria de seus devaneios.


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