A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 35
A Dama e a Árvore


Notas iniciais do capítulo

" Seu cabelo era branco, tal qual suas vestes, e parecia ter luz própria. Mas não era velha, seu rosto era de uma moça que havia acabado de sair da juventude. Estava sentada, encostada numa árvore que fazia uma confortável sombra para a mulher. E de seu pulso, pendia uma corrente, que ficava presa ao chão da ilha. Seus olhos estavam fechados, e um pequeno sorriso repousava em seus lábios. E tudo isso, Zen viu com um só olhar. " O Contador de Histórias



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O Atormentado corria pelo túnel escuro que havia surgido em sua frente, pouco tempo atrás. Os fantasmas dos mortos se erguiam para arrastá-lo para o além-vida, mas o rapaz os cortava com um golpe ou dois de sua espada. A luz que antes havia iluminado seu caminho retornara, e brilhava como Fogo Feérico. E forte como a luz estava sua vontade de salvar Rey, e a força com que balançava sua lâmina demonstrava isso.

Enfim alcançou o fim do túnel, chegando a um lugar amplo, com o pé direito passando dos trinta metros. Pé direito? Você é burro moleque? É a altura do chão até o teto. Olhou para cima, e viu uma enorme esfera azulada brilhante. O pequeno foco de luz que o acompanhava flutuou até essa enorme esfera, e perdeu-se lá dentro, fazer parte do grande Sol que iluminava tudo ali. E por tudo, refiro-me a um enorme lago nego, com uma pequena ilha no centro. Na ilha, estava uma mulher.

Seu cabelo era branco, tal qual suas vestes, e parecia ter luz própria. Mas não era velha, seu rosto era de uma moça que havia acabado de sair da juventude. Estava sentada, encostada numa árvore que fazia uma confortável sombra para a mulher. E de seu pulso, pendia uma corrente, que ficava presa ao chão da ilha. Seus olhos estavam fechados, e um pequeno sorriso repousava em seus lábios. E tudo isso, Zen viu com um só olhar.

O Atormentado correu, e quando adentrou mais a pequena extensão de terra antes do lago, sentiu os passos mais leves, sentia-se como uma pluma, sentia-se como o vento. Saltou como nunca havia feito antes, e alcançou a ilha num único pulo, cruzando toda a extensão do lago. Quando seus pés tocaram o solo outra vez, já estava com a espada embainhada.

— Não, não, isso não pode ter sido real — olhou para trás, um tanto aturdido. — Ninguém conseguiria pular essa distância, nem mesmo a Lillian me caçando por fazer alguma besteira.

— Tem alguém ai? — disse uma voz branda e calma. Era quase musical.

O Atormentado virou-se, e viu a mulher, que continuava de olhos fechados. Não havia mais um sorriso em seus lábios, e sua expressão demonstrava a mais pura curiosidade. Afinal, o que estaria um visitante fazendo em sua ilha? Bem, aquele não era um mero visitante, mas ambos não sabiam disso até aquele momento.

— Não tem ninguém, volte a dormir — respondeu Zen, tirando um sorriso dos lábios dela. Sentia-se enormemente confortado quando via aquele sorriso.

— Se não tem ninguém, então quem está falando comigo? — dessa vez foi o Atormentado que sorriu.

— Você está falando sozinha, está louca, louquinha, assim como todos aqui dentro — ele se aproximou da árvore, escorando-se nela, no lado oposto da moça.

— Acho que já falei sozinha por tanto tempo, que saberia reconhecer minha própria voz — Zen sentiu que quando ela dizia tempo, não estava se referindo há apenas alguns anos. Seres tal qual aquela, só podiam ser dos contos e lendas, seres místicos que vivem por milênios. — Qual é seu nome, voz que escuto, mas não vejo?

— Essa voz não carrega mais o próprio nome, é apenas a sombra de um passado perdido. — Respondeu ele.

— Pobre voz, que perdeu o nome — disse ela, verdadeiramente triste. — Se não tens nome, como podes ser viva e falar a mim? Todos precisam ter um nome, até mesmo aqueles que o perderam uma vez. Fale-me voz, qual teu nome? — e a resposta saiu da boca dele, antes mesmo que pensasse no que falar.

— Zen — disse ele, e completou —, chamo-me Zen. — Por que eu falei meu nome? Ela me perguntou, mas por que eu respondi meu nome? — E qual é teu nome? — olhou na direção dela, mesmo sem vê-la.

Ela ficou em silêncio, por um pequeno instante que duraram alguns segundos, ou quem sabe, apenas pareceu ser alguns segundos para Zen, pois ele estava remoendo em seus pensamentos sua resposta inconsciente a pergunta da mulher. Voltou a si quando ela então respondeu.

— Laen’tharael, se és um Elfo e falas a mesma língua que o rio e os pássaros. Para os nobres Anões, chamo-me Maranin. Mas quando nasci me chamaram Lucine — disse ela, sorrindo.

— Lucine — olhou-a de soslaio, mesmo sem vê-la —, como Lua em arshan?

— Você fala arshan? — ela levantou levemente a cabeça, parecendo surpresa.

Era arshan a língua que dominava o mundo no Antigo Império, em milênios antecessores ao nosso, em tempos com menos luz e mais trevas. Vocês crianças não estão na idade para ouvir as histórias sobre aquela época, pois não existiam heróis que salvam princesas, nem vilões que são derrotados no final. Quem sabe um dia quando tiverem barba no rosto, vocês retornem até mim, e eu contarei quantas histórias vocês estiverem dispostos a ouvir sobre aqueles tempos, mas por enquanto, vamos voltar a nossa história.

— Meu mestre me obrigou a aprender arshan — disse Zen, desencostando-se da árvore, caminhando até o lado da moça, sentando-se no chão com as mãos atrás da cabeça. — Ele era um pé no saco, eu vivia fugindo das suas aulas, mas ele sempre me achava e arrastava de volta. Literalmente arrastava, porque eu não queria ir.

Lucine riu, levando a mão livre à boca. O Atormentado sorriu, então baixando os olhos para a corrente que prendia a mulher pelo braço direito ao chão, nisso seu sorriso sumiu. Misteriosamente, ela percebeu isso, e então falou e disse.

— Não tenha pena de mim, é minha punição esta corrente que me prende ao chão — disse ela, ainda sorrindo —, é o meu pecado.

— Um pecado tão horrível que você tem que ficar acorrentada nessa ilha, dentro dessa gruta, sem nunca mais ver a luz do dia? — questionou Zen.

Ela balançou levemente a cabeça, sem romper seu sorriso, sem derramar uma singela gota de lágrima pela tristeza que afligia seu coração. E o Atormentado percebeu isso, pois ambos agora dividiam o mesmo sentimento, culpa.

— Eu, que deveria cuidar eternamente daqueles que entram na Gruta, que deveria dedicar minha vida a proteção deste pequeno paraíso, fiz o que jamais deveria ter feito. E isso me custou muito mais do que a liberdade — ela disse. Zen, com um olhar triste, ia dizer algo, mas foi interrompido por Lucine. — Você está buscando por uma criança, não está? Aquela que foi traga aqui para Ghan’raudor. Ele trouxe a criança aqui, sabendo que viriam atrás.

— Rey?! Você sabe onde ele está?! — moveu-se ágil para frente dela, ficando de joelhos, agarrando os braços da mulher — ela balançou a cabeça, confirmando.

— Ghan’raudor o trouxe aqui para dentro sabendo que viriam atrás dele — o sorriso da mulher desapareceu. — Se enfrenta-lo, irá morrer. Aquele homem também tentou uma vez, e seu destino foi à morte.

— Quem? Quem lutou contra este tal Ghan’raudor e foi morto? — perguntou Zen, nnão largando os braços dela.

— O homem que um dia eu amei; a razão de meu pecar — ela baixou o rosto, abrindo um sorriso melancólico. — Ghan’raudor o assassinou e me prendeu aqui. E matará todo aquele que interferir em seus planos.

— Ele nunca conheceu alguém como eu, se acha que poderá me atrair aqui para dentro e me matar — ela balançou a cabeça.

— Ele pode, e o fará. Ele controla esta Gruta da maneira que ele desejar, ele roubou este poder de mim — falou a mulher.

— Se ele controla esta Gruta, então... — Zen recolheu as mãos, atônito, baixando a cabeça. — Então não há como vencê-lo.

— Existe — o Atormentado olhou para ela, esperançoso. Ela abriu seus olhos, prateados, mas eles não enxergavam nada, e mesmo assim, Zen sentiu que ela olhava diretamente para ele. — Você deve me matar.

O espadachim ficou encarando ela, sem expressão alguma no rosto durante alguns segundos. Então franziu levemente o cenho, e logo tinha uma expressão de raiva no rosto.

— O que?! — ele gritou, não estava compreendendo, ou não queria acreditar no que havia escutado. — Não!

— Sua única chance é me matar. Se fizer isso, Ghan’raudor perderá seus poderes, e será apenas mais um homem qualquer. Então todos estes perdidos poderão ir embora — ela falou, sem medo algum na voz.

— Eu não vou fazer isso! Deve haver outra maneira! — ele gritou mais uma vez, ela simplesmente balançou a cabeça.

— Não há, se você quer salvar o pequeno Rey, está é a única forma — ela sorriu para Zen. — Não tenha medo, minha existência nesse mundo não tem mais sentido. Minha vida já devia ter acabado muito tempo atrás — e então voltou a fechar os olhos.

Ele não disse nada, levantou-se, desembainhando sua espada, olhando firmemente na direção dela. Apertava com força a empunhadura da espada, tanta que até mesmo tremia. Uma gota de suor escorreu pela sua testa, despencando de seu rosto para o chão da pequena ilha. Ela escutou a espada cortando o ar, e então se preparou para respirar pela última vez. Mas não foi o barulho da lâmina a atingindo que ela escutou, foi um barulho de ferro contra metal.

— O que? O que você fez? — ela ergueu a mão que estava acorrentada, e sentiu que não estava mais presa. — Como? Por quê?!

Da mão de Zen saia uma fumaça branca, a lâmina estava brilhando em vermelho. Ele tinha os dentes cerrados e uma expressão de dor no rosto. Caminhou até a beira da ilha e enfiou a espada no lago. O calor da arma entrou em contato com o frio da água e ambos se transformaram num vapor branco. Na palma de sua mão a marca da empunhadura gravada numa queimadura.

— Podia ter me dito que a corrente estava enfeitiçada com alguma magia estranha — reclamou, enquanto voltava na direção dela, sacudindo a mão. — Mais uma cicatriz para a contagem.

Lucine estava espantada. A parte da corrente que segurava sua mão evaporou, e ela esfregou seu pulso. Balançou a cabeça, não acreditando naquilo. Sua boca se abriu e fechou algumas vezes, tentando encontrar algo para falar. Então disse.

— Como? Não deveria existir lâmina no mundo capaz de cortar essas correntes — ela mostrou o pulso, livre de qualquer prisão.

Zen olhou para sua lâmina, vendo seu reflexo nela. Deu um sorriso verdadeiramente triste, e então disse as palavras que ouviu tanto tempo atrás.

— A lâmina usada para defender o puro jamais se partirá tal qual o rio que jamais muda seu curso. — Embainhou a arma, olhando para a mulher no chão.

Estendeu a mão, e mesmo sendo cega, ela pegou na mão dele. Zen ajudou-a a ficar de pé, o que ela fez com certa dificuldade, mas o fez. Largou a mão do Atormentado e olhou para seus pés tocando o chão. Voltou a focar no rosto do espadachim.

— Por quê? Enquanto eu estiver viva, você jamais poderá derrotar Ghan’raudor.

— Ninguém merece morrer por amar alguém, nem mesmo você. O único que merece a morte é o desgraçado que pensa que pode brincar com a vida dos outros — Zen olhou-a com seriedade nos olhos. — Ele não me vencerá, mesmo que eu morra, eu irei derrota-lo. — Ele sorriu. — E além de tudo, eu não estou sozinho. Eu sinto que eles também estão aqui dentro, os bravos heróis que não descansarão enquanto houver injustiça. Com eles do meu lado, meus joelhos jamais tocarão o chão.

Lucine o abraçou, encostando o rosto contra o peito de Zen. Ele era pelo menos dois palmos maior que ela, e pousou a mão na cabeça da mulher que agora chorava como menina. Deu um pequeno sorriso, balançando a cabeça. Então ela explodiu levemente, numa poeira dourada, que foi levada por uma brisa e sumiu no ar. Uma voz distante alcançou seu ouvido, falando algo que ele não compreendia, mas sentia a gratidão da palavra. Um barulho irrompeu de seu lado direito, e quando viu, uma porta havia surgido no outro lado do lago, na parede da caverna.

Seu sorriso aumentou, e ele deu um breve aceno de cabeça.

— Obrigado — e virou-se na direção da porta que havia surgido.

Correu, e novamente sentiu seus passos leves. Seu salto pareceu um breve voo, até tocar o solo do outro lado. Caminhou vagaroso até a porta, a mão na empunhadura da espada.

Abriu.

Em sua frente, outra caverna, só que nessa, havia construções. Jaulas, gaiolas, celas, dezenas delas espalhadas presas na parede. E dentro de cada uma delas, crianças. Pasmo, deu um passo adiante. A porta fechou sozinha e evaporou, assim como Lucine.

As crianças estavam imóveis, talvez dormindo, talvez pior. Zen desejou que estivessem apenas dormindo. Furtivo, se aproximou de uma cela qualquer, onde uma garotinha loira e suja dormia encostada à grade.

— Ei, pirralha — sussurrou. O Atormentado cutucou a menina, ela murmurou alguma coisa. — Acorde você é uma criança jovem e cheia de energia, eu que devia estar aí dormindo.

— Uhm? Já é de manhã? Onde está a comida? — ela abriu seus olhinhos, esfregando-os com suas mãozinhas pequenas. Olhou para Zen — quem é você, moço? É o nosso novo amigo?

— É eu sou seu novo amigo, quer sair daí para brincar? — a menina acenou com a cabeça. — Certo, vou soltar todos aí vamos todos brincar de siga o mestre, certo? Eu sou o mestre, minha ordem é que se escondam e esperem pelo meu retorno. Agora, onde estão as chaves?

A menina franziu o cenho — as chaves? Elas estão com nosso antigo amigo, você não pegou elas quando pegou o lugar dele?

— Antigo amigo? Quem é esse? — perguntou.

E sua resposta veio na forma de um urro gutural, que tremeu toda a caverna. Uma luz de tocha surgiu longe, iluminando parte das paredes. Uma sombra projetou-se segurando a tocha, um humanoide gigante, cujos passos poderiam ser ouvidos a dezenas de metros, de tão pesados que eram. E o tal ser não fazia nenhuma questão de ser furtivo enquanto se movia.

— O nosso antigo amigo chegou — disse a garota, sorrindo.

Uma figura albina de mais de dois metros de altura surgiu na visão de Zen. Não tenha um fiapo de pelo no corpo, e o Atormentado viu que havia alguns cortes em seu corpo, recentes, que já haviam parado de sangrar. Seus olhos logo captaram a presença do Atormentado, e ele não relutou em sacar a espada.

— Menina, é melhor falar para o seu amigo, que eu também sou um amigo — disse Zen, invocando o frio.

— Ele não gosta nem um pouco que tenhamos outros amigos, moço — ela disse, fazendo um beicinho. — Então ele leva todos os novos amigos que aparecem embora, e eu sempre escuto eles chorarem por terem que ir.

— É mesmo? Que maravilha — ele deu uma risada nervosa.

Aquilo não seria uma simples batalha. Zen havia enfrentado muitos monstros antes, batalhado milhares de vezes, mas aquela luta seria difícil. Primeiro porque a Gruta estava mexendo com seus sentidos desde que ele entrou dentro dela. Segundo; o espadachim não conseguia sentir essência alguma de vida saindo daquele gigante estranho. Sabia que o único golpe efetivo naquele ser, seria o de misericórdia.

Deu um sorriso. Preparou-se para atacar, o frio dominando-o por completo. Seus olhos amarelados focaram apenas o gigante. Seu pé moveu-se ligeiramente para o lado. BUUMP, recebeu um punho direto na boca do estômago. Sentiu o café da manhã, almoço e jantar subir pela garganta. Foi arremessado pelo ar, e seu corpo encontrou a parede da caverna de barreira. Caiu no chão, com a mão onde foi atingido. O que foi isso?! Eu mal vi ele!

O frio havia ido embora, mal chegara a existir. Zen levantou-se, com a espada empunhada, mas logo teve que abaixar, para desviar de uma perna da largura de uma tora, que vinha em sua direção. Quando se abaixou, viu uma oportunidade adiante. Moveu a espada e abriu um enorme talho na outra perna do gigante. O sangue jorrou, mas teve que desviar de um pé que veio descendo do alto com força para achatá-lo no chão.

Não fez efeito nele?!, cerrou os dentes, recuando o máximo que pode da criatura, que ficou parada, olhando na direção dele. Firmou os pés no chão e segurou a espada com as duas mãos. Outra vez, invocou o frio. Esse era o maior problema daquela habilidade, para usá-la, você tem que ficar parado por um tempo que poderia custar sua vida numa batalha contra um oponente habilidoso. Mas misteriosamente, aquele oponente habilidoso em especial ficou parado, olhando para Zen enquanto ele fazia isso. E ele fez.

Seus olhos amarelos voltaram a focar no gigante estranho, excluindo o resto do mundo de seus pensamentos. Sua respiração, que antes estava agitada, voltou gradativamente ao normal. Sua mão queimada, já não doía mais. O mundo havia escurecido para Zen, resumindo-se a três seres. Ele, o seu oponente logo adiante, e sua espada. As três últimas coisas do mundo.

Nesse meio tempo, o gigante permaneceu parado, parecendo analisar o que aquele estranho estava fazendo em sua casa. Era o segundo naquele dia que havia enfrentado que conseguira desviar de seu golpe, e ainda mais, feri-lo. E isso não o agradava nem um pouco. O motivo para estar parado, não era apenas para observar Zen. Ele estava acumulando raiva. No seu íntimo, um fogo vermelho brilhava intensamente. Ele cerrou os dentes, e veias saltaram em sua testa. Então deu um urro, e avançou na direção do espadachim. O punho direito e esquerdo como suas armas.

Zen não relutou, avançou ao mesmo passo que o de seu alvo, porém não fez um barulho. Avançou bem curvado, segurando a espada rente ao rosto, a lâmina perpendicular à face. No meio do caminho, seu passo o impulsionou para o lado direito. O gigante acompanhou com o olhar, mas não mudou de direção, estava intrigado. “O que ele está fazendo? Vai fugir?”, foi provavelmente o pensamento que veio em sua cabeça, mas logo percebeu que não era algo tão simples quanto uma fuga. Outro passo e Zen parou seu movimento, bem ao lado do gigante. Flexionou a perna que deu o passo e então pulou, num salto mortal para trás, passando por cima do albino. Pousou do outro lado dele, e então golpeou. Sua lâmina cortou um palmo ou mais para dentro do tronco dele, a altura da cintura. O sangue jorrou e ele caiu no chão.

Tudo isso, numa fração de três segundos.

Ele soltou o ar, que prendeu durante todo esse movimento. O frio foi liberado, e o alívio veio junto, e então o enjoo do golpe que tomou na boca do estômago. Correu para um canto na parede e vomitou o que havia comido no dia anterior, ou foi naquele dia? Acho que já tinha passado da meia-noite, não lembro. Bem, já devia ser mais de meia-noite, então foi no dia anterior. Ficou com a mão esquerda na parede, apoiado de olhos fechados, enquanto arfava.

Uma mão tocou seu ombro.

Reagiu de imediato, quando percebeu quem era, já tinha a espada no pescoço dele. Ou melhor, dela. Era Lillian, e ela reagiu tão rápido quanto ele, pois quando olhou, a adaga de Lillian estava encostada em sua virilha.

— Eu posso até morrer, mas acho que você não aguentaria viver sem isso aí — ela disse séria, e Zen suspirou aliviado, baixando a espada.

— Por um momento — ele riu —, achei que fosse um inimigo. Mas inimigos não são tem rostos tão bonitos. — Um punho o jogou ao chão, o de Lillian.

Ela estava em pé, os punhos fechados, encarando ele. E ele estava caído, sem entender nada, com a mão cobrindo a bochecha. Ela cerrou os dentes e tentou chutá-lo, mas ele bloqueou o chute. Tentou acertá-lo mais uma vez, e ele desviou sem grande dificuldade.

— Ei, ei! Foi um elogio, não uma piada! — ele levantou-se, desviando de outro golpe qualquer, sem muita força. — Pare com isso!

— Seu desgraçado, maldito! Seu maldito! O que passou pela sua cabeça em entrar aqui dentro sozinho?! Você acha que pode chegar e resolver tudo sozinho, de uma vez só?! — ela lançou um soco, mas seu golpe verdadeiro foi um chute nos pés de Zen, que o derrubou. — Você não consegue nem mesmo seguir ordens! Eu disse que iria procurar por Rey, e mesmo assim você me ignorou! Como quer salvar alguém, se não é capaz de seguir ordens?!

— Ordens, ordens! Para que servem as ordens, se as pessoas morrem quando se segue elas?! — Zen gritou.

Pela primeira vez, Lillian o viu enfurecido. Viu seu punho apertar tão forte, que parecia que sua mão ia sangrar. Percebeu que falaria algo a mais, mas decidiu não dizer. Apenas levantou-se, aproveitando que a Loira estava atônita. Embainhou a espada, balançando a cabeça.

— Eu sabia, eu não deveria ter me metido nisso desde o começo. É sempre assim, eu me intrometo, e as coisas começam a dar errado. E lá vou eu lutar até quase morrer para salvar alguém — caminhou na direção do albino gigante caído no chão, remexendo seus bolsos.

Tirou um molho de chaves e abriu a cela da menina. Assustada, ela o olhava, mas uma palavra qualquer de Zen a fez sair.

— Liberte os outros e espere num lugar sozinho. Você conhece algum aqui dentro? — ela balançou a cabeça, e Zen voltou a falar. — Ótimo, leve-os para lá.

— Será que devemos ir procurar Damon? — uma voz diferente chamou a atenção de Zen. Quando olhou, era um homem vestido em roupas de nobre falando com uma mulher que carregava uma enorme espada nas costas.

— Acho melhor, alguém magrinho e fracote que nem ele deve precisar de nossa ajuda — ela respondeu.

— Vocês dois! — Zen gritou, e eles se assustaram, olhando na direção do rapaz. — Vão juntos dessas crianças, as protejam ou eu acabo com vocês. — Ordenou, e não havia um pingo de ameaça em sua voz, era uma afirmação. Ele realmente faria o prometido se os dois não protegessem as crianças.

— E quem você pensa que é para nos dar ordens, ô desgraçado?! — a Megera gritou de volta, levando a mão a empunhadura da espada nas costas, mas o levantar de mão de Lillian a conteve.

— Façam o que ele está dizendo — ela olhou os dois de soslaio. — Ou então, nada de limpar a ficha de vocês dois.

Eles se entreolharam, engolindo em seco. Então acenaram com a cabeça um para o outro. Aproximaram-se da menina, ficando um de cada lado dela, ambos olhando para Zen. A menininha estendeu a mão pequenina, segurando na da Megera. Ela franziu o cenho, raivosa, olhando para a pequenina que sorria em resposta. Grunhiu qualquer coisa, e então voltou a olhar para o Atormentado, murmurando.

— Eu detesto crianças — foi o que ela disse, e Zen fingiu não escutar.

— Libertem todas e deem o fora daqui. Ela vai guia-los até o lugar seguro que ela conhece. Protejam-nas até que eu volte.

— É, é, não é como se tivéssemos muita escolha — respondeu o Azarado, dando de ombros. A menina puxou a beira de seu casaco, e ele olhou para ela intrigado. — O que foi?

— Você é nosso novo amigo? — ela sorriu, causando espanto ao Azarado.

Depois de um ou dois segundos pensando, ele deu um sorriso e respondeu.

— É, eu e a Megera aqui somos seus novos amigos — ele estendeu a mão para ela e ela agarrou. A Megera deu outro grunhido. — Agora vamos liberar os outros e ir embora, tá bom?

— Tá bom, moço! Mas qual é o seu nome? É só moço? — ela curvou levemente a cabeça para o lado.

— Meu nome? — ele olhou para a Megera, que também o olhava intrigado. Então olhou para a criança de novo — pode me chamar de Tio Thynnus, e essa é a Tia Brutamontes.

— Sou o que ô desgraçado?! — ela gritou, pondo a mão na empunhadura da espada outra vez.

— Chega! — Zen gritou mais uma vez, assustando os três, contando com a criança. — Vão logo, vocês estão perdendo tempo aqui!

A Megera, contrariada, soltou a mão da espada, pegando a chave da mão de Zen, enquanto murmurava qualquer coisa para Thynnus, que o Atormentado entendeu ser algo como “depois acertamos as contas”. Foi abrindo cela por cela, jaula por jaula, gaiola por gaiola. Em questão de dez minutos, uma multidão de crianças estava rodeando Megera e Azarado.

— Tirem eles daqui, levem-nos para o lugar seguro que a menina conhece.

— É por ali! — disse a garota, e Megera e Thynnus começaram a levar o grupo de crianças na direção indicada.

A menina, antes de acompanha-los, se aproximou de Zen e disse.

— Eles levaram um dos meninos que estavam aqui, lá para o Salão de Festa — ela disse, e Zen deu um sorriso para ela, abaixando-se até a altura da menina.

— E para onde fica essa sala? — a menina apontou para o lugar de onde havia vindo o albino. — Muito obrigado — ele ajeitou uma mecha de cabelo que balançava na frente do rosto dela. — Agora vá junto de seus outros amigos, está bem? — e então sussurrou só para ela. — É que você tem que tomar conta deles, para que não se machuquem. Aqueles dois lá? — olhou na direção de Megera e Azarado —, é melhor uma criança cuidando do que eles.

Ela acenou com a cabeça, dando uma risada, e saiu correndo atrás do mutirão de pequeninos. Logo eles entraram todos por uma fenda na parede e sumiram. Voltaram a ficar Zen e Lillian sozinhos, um de frente para o outro em silêncio. O Atormentado com a mão pousada na empunhadura de sua espada, e ela com os braços cruzados. Ambos se encaravam, ambos tinham o cenho franzido, ambos não queriam ceder, mas um tinha que fazer isso. Foi ele.

— Certo, me desculpe — ele suspirou, fechando os olhos. — Eu fui imprudente, e não devia ter entrado aqui sozinho. Mas é isso que eu sei fazer de melhor, está bem? Jogar-me de cabeça no meio de uma batalha para salvar alguém, mesmo que isso custe minha vida.

Ela o encarou em silêncio durante alguns instantes, mantendo o semblante austero. E então cedeu também, abrindo um sorriso e balançando a cabeça em negativa.

— Não, a culpa também foi minha — ela disse. — Percebi que ando negligenciando muitos de meus deveres, e é por isso que isso tudo está acontecendo. Se eu tivesse feito meu serviço direito, essa bagunça toda teria sido resolvida há mais tempo.

— É verdade, a culpa é toda sua, me pague uma bebida e uma mulher quando sairmos daqui como pedido de desculpas — recebeu outro soco de Lillian, curvando o corpo, mas dessa vez deu uma risada em vez de um urro de dor.

— Não comece a se achar, ô desgraçado! — imitou a fala da Megera, arrancando outra risada de Zen.

Então seu semblante tornou-se sério mais uma vez. Ergueu o tronco, olhando na direção que a menina havia apontado. Então desembainhou a espada, apoiando-a no ombro.

— Daqui para frente vai ser muito perigoso, talvez seja melhor que você aguarde com aqueles dois lá atrás — ele disse, e ia falar mais alguma coisa, mais um urro o interrompeu.

Olhou para trás, e viu aquele albino gigante se erguendo atrás dele, o rosto da criatura carregado de ira. O braço estava erguido, e parecia pronto para arrancar a cabeça de Zen fora, e ele sentiu que não conseguiria desviar daquilo. Mas antes que pudesse piscar uma última vez na vida, viu um risco de luz prateada cortar o ar, e os olhos do gigante se esbugalharam. Ficou imóvel, tentando baixar o braço contra o Atormentado, mas não conseguia. Olhou para baixo, e viu Lillian, olhando-o direto nos olhos. Segurava uma espada que atravessava diretamente seu coração. Tentou balbuciar uma última palavra, mas não teve forças. A Cavaleira girou a espada dentro do corpo dele, e arrancou-a para fora, saindo junto um jorro de sangue. Ele caiu de costas, dessa vez, morto.

A Loira pegou o manto de Zen e o usou para limpar sua espada, enquanto esse a olhava, assustado. Ela olhou para ele, intrigada.

— O que foi? O medo é tão grande que perdeu seu ego? Acho melhor você ficar lá junto dos dois — e embainhou a espada, depois de limpa.

Zen ficou mais um instante pasmo, e então abriu um sorriso, fechando os olhos. Voltou-se outra vez para a direção que a menina havia indicado.

— Eu iria mata-lo, só estava pensando na forma mais heroica de fazer isso — ela ia responde-lo, mas ele a interrompeu. — Agora! — apontou a espada na direção do Salão de Festas. — Vamos fazer uma visitinha a esse tal de Ghan’raudor.

— Quem? — Lillian o olhou, uma sobrancelha erguida.

— Não importa, vamos! — ele avançou, e Lillian foi atrás.

E de longe, uma figura alva observava os dois, com um singelo sorriso nos lábios.


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