A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 3
Sonhos Estranhos


Notas iniciais do capítulo

"O cheiro de guerra impregnava o ar, o cheiro de morte e fracasso. Frey sabia onde estava: Sarkon."



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Vocês, moleques ranhentos e com a vida toda pela frente provavelmente não entenderam o porquê do rapaz ter anunciado que ia abandonar o irmão, certo? Errado. Vocês já escutaram essa história vezes demais para que isso não entrasse em suas cabeças ocas e disformes. Vamos, pela centésima quarta vez, viver na pele de Frey, descobrindo o quão forte ele teve que ser para que seu irmão, mesmo na pior hora, tivesse tudo o que fosse preciso para ter uma vida confortável.

Podemos começar explicando como o rapaz trabalhava duro na cidade de Bravia para alimentar o pequeno e indefeso Pete.

Todas as manhãs, Frey estava de pé antes mesmo que o sol aparecesse. Costumava acordar e já descer para a cozinha, preparando algo para comer, algo que lhe desse energia suficiente para enfrentar o dia de trabalho que viria nas próximas horas. Tinha que suar para sustentar a pensão em que viviam, pois o casal de velhinhos que os abrigavam não tinha condições de realizar nenhum tipo de serviço braçal capaz de render um bom salário, ou seja, o rapaz trazia dinheiro e em troca, recebia todo o conforto que precisava: um lugar para chamar de lar.

Neste dia em específico, Frey acordou com a testa franzida. Havia tido um sonho na noite anterior, um sonho diferente de tudo o que já vira antes. Ele sabia que não se tratava apenas de imagens aleatórias reunidas em uma sequência ilógica, mas de algo real, profético. O rapaz estava caminhando cautelosamente num ermo caótico, desprovido de árvores e repleto de focos flamejantes espalhados aleatoriamente pelo capim ressecado. Sangue era o que mais se via no local, manchando a vegetação e jorrando dos menos favorecidos que se encontravam mutilados ou perfurados por flechas, caídos no chão em números tão grandes que continuavam até onde Frey conseguia enxergar. O cheiro de guerra impregnava o ar, o cheiro de morte e fracasso. Ele sabia onde estava: Sarkon. A cruzada criada pelo Rei de Adria para impedir que a corrupção se espalhasse pelo continente havia falhado miseravelmente. Milhares de famílias estavam hoje desprovidas de seus líderes, milhares de homens estavam hoje apodrecendo no local onde suas vidas foram ceifadas e milhares de covardes hoje se culpavam (ou agradeciam) por não ter ajudado na batalha contra o desconhecido.

Um arrepio percorreu a espinha do rapaz. O colar em seu pescoço queimava, e isso fez com que levasse a mão até lá e apertasse os dedos ao redor do pingente perfeitamente esculpido: um pequeno punho prateado, com mínimas e praticamente invisíveis marcas de ferrugem nos cantos. Simbolizava a resistência de Adria para com os seres sobrenaturais de Sarkon. Passara a usar o acessório desde o dia em que sua mãe desistira da vida, sendo o terceiro da família a carregá-lo. Não considerava-o como um amuleto da sorte, tampouco como algo que trouxesse azar, usava apenas para honrar a memória de seu pai e daqueles que tiveram a bravura para proteger sua terra natal. Isso bastava para que sentisse orgulho em exibi-lo no pescoço.

Continuou sua caminhada, o sinistro cenário ainda acelerando as batidas de seu coração. Viu algo se mover no canto de sua visão e recuou a perna para que se virasse mais rápido, mas seja lá o que fosse, já havia desaparecido. Outro movimento, agora do outro lado. Virou-se novamente e obteve o mesmo resultado. A raiva e o medo subiram por sua garganta até serem despejados abruptamente em um grito.

— APAREÇA! — o som de sua voz ecoou pelo local por vários segundos, sem que nada acontecesse. Seus músculos estavam em evidência por baixo da camiseta branca e surrada que usava para trabalhar. Escutou um estalido na grama seca e seu olhar foi atraído imediatamente para a direção do som. Alguém, ou melhor, algo estava ali, fitando-o por de trás de uma máscara que possuía a maior parte de sua superfície na cor branca, tendo apenas um traçado duplo de linhas rubras que percorriam o espaço destinado ao olho esquerdo até o canto de onde supostamente estava a bochecha do indivíduo. À primeira vista, Frey havia pensado que aquele ser estava trajando um sobretudo que o cobria da cabeça aos pés, mas após um olhar mais atento e demorado, percebera que era o próprio corpo daquilo que o encarava. Sombras se desprendiam da silhueta humanoide como um manto esvoaçando, dando uma aparência etérea e completamente sobrenatural para a criatura. O rapaz deu um passo atrás, cerrando os punhos.

— Não tenha medo, garoto. — A voz por trás da máscara era ecoante e grave, como se o seu portador estivesse falando do fundo de um túnel para que o outro lado escutasse. — Não irei machucá-lo, apesar de ambos sabermos que eu poderia fazê-lo facilmente se esta fosse a minha vontade. — Abriu os braços e baixou as mãos espalmadas, um sinal para que os ânimos de Frey se acalmassem. O irmão de Pete respirou fundo e o espectro, aproveitando-se do momento, lançou-se na direção dele com uma velocidade que nenhum humano saberia descrever com suas simples palavras, e talvez nem mesmo os elfos em suas florestas densas e verdes ou os anões em seu paraíso montanhoso pouco convidativo. Tocou sua testa com o indicador e o médio, criando uma sequência abstrata de flashes.

Imagens percorreram a sua mente em extrema velocidade. Mostravam desconhecidos, pessoas que Frey nunca vira e agora, especificamente neste momento, pretendia nunca encontrar. Uma ruiva foi mostrada correndo de criaturas rastejantes, um rapaz magro e aparentemente não muito forte segurava uma espada toda enferrujada, enquanto um encapuzado roubava maçãs e as levava para os pobres, alimentando todos os dias aqueles que não eram capazes de conseguir a própria comida. Uma mulher loira estava junto à uma fileira de soldados, não como espectadora, mas marchando junto com eles. Um outro rapaz estava junto aos que foram resgatados nos navios em Sarkon, enquanto o próprio Frey fora mostrado trabalhando arduamente com um machado, cortando lenha em troca de algumas moedas de metal velho. Por fim, a última imagem revelou a silhueta de um jovem garoto magricela de costas, virando seu rosto para a luz, mas a imagem sumiu antes que Frey pudesse ver quem era.

Guardiões...

Sete...

Sarkon...

GUERRA!

As quatro palavras surgiram repetidas vezes em sua cabeça. As três primeiras eram sempre sussurradas, ao passo que a última era sempre um grito furioso, uma voz grave e raivosa. Frey acordou quando "guerra" fora pronunciada uma última vez, sugando todo o ar que conseguia, como se estivesse sufocado anteriormente. Suor encharcava os lençóis de sua cama, fazendo os fios de seu cabelo grudarem uns nos outros e seu pescoço roçar umedecido contra a gola de suas roupas de dormir, provocando desconforto.

Seus olhos se ajustaram à escuridão do local. Ergueu o torso e olhou ao seu redor para ter certeza que estava no quarto, suspirando aliviado após confirmar que sim. Saltou de sua cama e saiu porta a fora, em direção ao quarto de seu irmão Pete. Girou a maçaneta com agilidade e precisão e deu de cara com o garoto abraçado com o travesseiro, enquanto um filete estático de saliva percorria do lábio inferior ao canto do queixo, criando uma minúscula mancha escurecida no local em que apoiava a cabeça.

Que diabos aconteceu comigo?, pensou. Levou a mão até a testa e deslizou os dedos pelo local, refletindo sobre o maldito sonho que tivera minutos atrás. Era uma profecia envolvendo ele e mais outras seis pessoas que não fazia ideia de quem seriam, mas sabia que precisava encontrá-las. Guardiões, sete, Sarkon... As palavras haviam sido jogadas livremente para que Frey tivesse sua própria interpretação, pondo sua inteligência à prova para resolver um enigma completamente ilógico.

Os primeiros raios de sol se infiltraram na pensão através das janelas mal fechadas. Franziu o cenho e saiu do quarto de Pete, voltando ao seu para se vestir e ir correndo para a construção do ponto de comércio nas docas. O Sr. Winston ficaria furioso pelo atraso, obviamente, mas não se importava muito. Se as imagens mostradas em seu sonho se provassem reais, teria muito mais para se preocupar do que erguer algumas paredes de madeira. Pulou a parte do café e correu pela porta da frente sem fazer barulhos, evitando acordar os outros com a sua pressa.

Havia pouca gente nas ruas, o dia na cidade de Bravia não começava muito cedo. Comerciantes preguiçosos e taverneiros sarnentos dormiam até que suas costas doessem, o que significava na abertura das lojas somente após o sol estar lá no alto, torrando as cabeças geralmente insignificante dos cidadãos. Enquanto corria, passava por diversas casas sem cor, feitas ou de palha ou de madeira. Raras eram as moradias feitas de pedra, estas eram reservadas a quem possuía maior poder aquisitivo, pois sua construção requeria, além de muita mão de obra, valores absurdos para assentar os pedregulhos e planificá-los, para que tudo ficasse em perfeito estado.

Mal havia posto os pés nas docas e já escutava a voz rouca e arrastada do Gordo Winston. Ele era chamado assim por causa de sua enorme barriga, arqui-inimiga dos botões de sua camisa branca e dos suspensórios que impediam suas enormes calças marrons de escorregarem por suas pernas inchadas e feridas devido ao peso excessivo. Passava a maior parte do tempo sentado, reclamando da demora de seus operários em finalizar as construções que ele administrava por toda a cidade. Esta demora era praticamente inexistente, visto que o homem desejava que as obras fossem realizadas em uma velocidade impossível para qualquer humano, e para os não humanos também, afinal, ele andava escravizando elfos do deserto secretamente, acreditando que eles teriam técnicas melhores e desenvolveriam um estilo novo que impressionaria a todos. No fim, eram só construtores comuns e acabaram tendo um trágico fim, mas ninguém sabia ao certo o que havia acontecido com os pobres homens.

— Está atrasado, Frey! — berrou ele, cuspindo para todos os lados enquanto as palavras jorravam de sua boca pútrida e mal-cuidada. — Seu salário vai ser uma pilha de pedras se não cumprir a sua meta diária ainda hoje! VÁ TRABALHAR!

— Sim, senhor. — Acatou as ordens em tom sombrio. Fazia aquilo para que Pete vivesse bem, por mais ninguém. Havia uma dezena de bons empregos para ele, mas aquele era o que mais lhe dava lucro, o que criava uma prisão econômica para o rapaz. Se quisesse ganhar bem, tinha que aguentar aquele desgraçado do Winston todos os dias. Mas nem tudo era ruim, afinal, havia Jenny.

Entendam, Jenny não era namorada de Frey, mas dava muito mole para o rapaz. Ele poderia ficar com ela se quisesse, mas ter um sogro como aquele estava fora de seus planos. Talvez, se Winston morresse hoje, a primeira coisa que ele faria seria agarrar a garota em seus braços e levá-la para ser sua esposa. Ela com certeza aceitaria, pois seus olhos brilhavam quando ele chegava para trabalhar.

As horas se passaram e seus braços doíam por ter que carregar tantas toras de madeira junto com seus companheiros para erguer a fundação da obra. Semanas se passariam até que estivesse completa, e isso significava mais e mais falação por parte de Winston. Bufou e deslizou o antebraço pela testa para secar o suor com a manga de sua camisa velha, usada apenas para trabalhar. Possuía outra para ir à taverna com o irmão, levando-o consigo quando ia beber, mas sem deixar que ele ingerisse nada do gênero. O sol já estava quase se pondo, e sem dizer nada, largou as ferramentas e saiu de seu expediente. O chefe já havia ido embora há horas, então não seria problema.

Um garoto desgrenhado esbarrou nele e sem nem pedir desculpas, continuou correndo. Deu uma olhada atenta, e se impressionou com o que estava vendo. Bem à frente, quase cem metros de diferença de onde estava no momento, havia uma silhueta franzina com um enorme livro em mãos fugindo à toda velocidade que suas perninhas permitiam. Atrás dele, além do maldito garoto mal-educado, mais cinco o perseguiam. Eram garotos de rua, estes quatro que criavam arruaça e disseminavam o caos atrás do jovem menino. Frey franziu o cenho e foi atrás deles, andando rápido.

Viraram em um beco sem saída, perto do Açougue do Buck. Escutou gritos, mas ainda não havia chegado no local, então, apressou o passo para apartar a briga e dar um jeito naqueles moleques desgraçados. Quando finalmente chegou no lugar em que a bagunça toda estava acontecendo, as feições de Frey se contorceram de raiva.

Pete estava caído no chão, todo encolhido, protegendo o livro que segurava anteriormente. Um grandalhão fedorento o chutava com todas as forças, fazendo o irmão de Frey suplicar para que parasse. Os outros cinco vigiavam para que ninguém interrompesse, mas era tarde demais. Quando viram Frey, deram um passo atrás, mas ele não estava nem aí para o que poderia acontecer com esses pirralhos. A hora do troco havia chegado. Correu até o mais próximo deles, lançando o punho direito em seu rosto e erguendo o esquerdo em um gancho praticamente ao mesmo tempo. O olheiro caiu no chão, nocauteado. Outros dois vieram pra cima dele ao mesmo tempo, mas isso não era problema para alguém com o porte físico do irmão de Pete.

Ergueu-os pelo pescoço e bateu um contra o outro, jogando-os contra as paredes. Os golpes fulminantes de Frey foram suficientes para que os outros dois arruaceiros tentassem fugir, mas mesmo que corressem à toda velocidade, estavam em um beco estreito e sem saída. Eles não tinham escapatória. Avançaram contra ele em uma tentativa falha de agredi-lo, mas assim como a dupla anterior, estes também não seriam um grande desafio. Ergueu a perna com velocidade e força, acertando o primeiro deles no estômago e obrigando-o a se abaixar. Agarrou seus cabelos loiros ensebados e o fez olhar em seus olhos, efetuando uma cabeçada massiva logo em seguida. Os olhos do garoto reviraram nas órbitas e em seguida, ele apagou. Jogou seu corpo na direção do outro que vinha correndo, o qual preferiu ficar no chão e fingir-se de morto para que Frey não batesse mais nele. Não funcionou.

Aproximou-se à passos largos e chutou-o na têmpora esquerda, criando um estalo violento que deixou um clima sinistro no ar. O grandalhão que chutava Pete já se encontrava no fundo do beco, tateando a parede atrás de si enquanto pedia pelo amor dos deuses para que não tivesse o mesmo destino de seus companheiros. Novamente, não funcionaria. Frey socou-o com toda a força que conseguiu reunir e sangue jorrou de seu rosto, tanto das bochechas quanto do nariz. Cortes haviam sido feitos por causa das técnicas impactantes do rapaz na hora de golpear seus inimigos.

Ameaçou o líder do grupo e ele acenou, choramingando, afirmando que havia entendido e nunca mais chegaria perto de Pete. Frey deixou-o fugir, pegou o irmão e após verificar se ele estava bem, foram pra casa. Lá, retornaram às suas atividades de sempre e se prepararam para dormir. A lua já estava em evidência entre as nuvens quando se dirigiu até o quarto do garoto, pronto para lhe dizer algo. Seu coração estava apertado e o pesar o dominava, mas não havia como fugir de seu dever. O punho de prata do seu colar queimou contra seu peito.

Conversou um pouco sobre o livro pelo qual Pete se arriscara, lembrando enfim que era o mesmo que a mãe lia todas as noites para ambos. Deu um sorriso triste, voltando aos bons e velhos tempos em que seus pais estavam vivos e sua família tinha tudo o que precisava para ser feliz, porém, havia chegado a hora de dizer ao garoto o que tinha ocupado sua mente o dia inteiro.

— Amanhã, eu vou embora.

A reação do garoto não poderia ter sido outra. Ele olhou fundo nos olhos de Frey e então, riu. Pensava se tratar de uma brincadeira, o que tornou tudo ainda mais difícil. Antes que ele perguntasse se aquilo era verdade, Frey o interrompeu e continuou.

— Não estou brincando, Pete. Irei embora pela manhã, espero que não me siga. Se trata de uma viagem à negócios, tudo bem? É pelo Winston, ele vai me pagar bem e vamos ter uma vida melhor assim que eu voltar! — era mentira, obviamente. A viagem a que se referia era pelo sonho que tivera, e apenas ele sabia disso. Quanto menos detalhes houvessem, mais fácil seria para que seu irmão aceitasse.

Pete fitou-o com os olhinhos arregalados, e as primeiras lágrimas brotaram. Encolheu-se, soluçando, e gritou para que o irmão fosse embora. Não queria ver aquilo de jeito nenhum, mas tinha que ser assim. Foi até o seu próprio quarto e começou a preparar as coisas para a viagem, e ele não fazia idéia do que poderia enfrentar.

Passou a madrugada inteira organizando ferramentas e roupas para que sua jornada não fosse ainda mais dificultada. Seu irmão, provavelmente, estava dormindo quando ele saiu pela janela com a mochila de couro gasto nas costas. Seus cabelos castanhos esvoaçaram violentamente pelo vento matinal, os céus estavam levemente nublados, indicando que uma possível e breve chuva podia estar a caminho. Ótimo, pensou ele, sarcástico. Sentia-se idiota por estar abandonando seu irmão em troca de uma jornada por causa de um sonho, mas seu instinto dizia que estava certo em fazê-lo. Prosseguiu.

Tinha um longo caminho para percorrer.


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