A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 17
Noite de Recrutamento


Notas iniciais do capítulo

"— A diferença você percebe na hora de contar os dentes que vão ficar grudados no chão, ô desgraçado." A Megera de Ferro



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Damon não estava brincando quando ameaçou o goblin, crianças. Entendam, ele era um cara muito vingativo, mais do que qualquer um que vocês podem ter o desprazer de conhecer. Se você dava um tapa na cara dele, ele provavelmente não faria nada no momento, mas depois de alguns dias, ele ia te dar uma flechada no mesmo lugar. É, soa um pouco psicótico, mas esse é o Damon.

— Por que ele é assim, Senhor Contador de Histórias? — a pergunta partiu de um garotinho tão pequeno quanto Pete. Tinha enormes olhos castanhos que esperavam atentamente a resposta do velho. — O que aconteceu para ele ficar desse jeito?

— Ah, pequeno Tom... essa é uma pergunta que não poderei te responder agora, estragaria a história, que por sinal, estou tentando lembrar. Essa é uma parte que ainda tem controvérsias, sabe? Eu preciso relembrá-la três vezes mais do que as outras e ainda refletir à respeito, porque até hoje eu tento entender o que aconteceu direito.

— Não é agora a parte em que o mercenário vai encontrar a...

— Sim, é agora, mas fique quietinho para não dizer o que não deve na hora errada, certo? Continuemos, pessoal! — o velho se ajeitou na cadeira, pigarreando. Aquele era o sinal para que o taverneiro trouxesse mais uma caneca de cerveja, e seu pedido foi atendido rapidamente. Bebeu um enorme gole, limpou a boca com as costas da mão e voltou-se para seus ouvintes.

Desamarrou o cavalo e montou em seu dorso novamente. Já parara de escutar os barulhos do goblin desajeitado fugindo, então, começara a se preparar. Obviamente, Damon conseguiria invadir o acampamento dessas criaturas facilmente, mas e depois? Salvaria Pete novamente e entregaria para Frey? Não, de jeito nenhum. Agora faria as coisas do seu jeito, e o seu jeito não era algo muito sutil.

Balançou as rédeas, incitando o animal a galopar. Seus cascos tocavam o chão sem fazer barulho, abafados pela grama e pela terra que eram violentamente jogadas para trás após serem pisoteadas. O capuz estava abaixado sobre sua cabeça, impedindo que vissem seu rosto, embora a noite já o fizesse por si só. O sol se punha bem longe, no oeste, lançando sombras que engoliam as árvores de forma rápida e voraz, ocultando o interior da floresta em um abraço silencioso e assustador composto puramente da mais impenetrável escuridão.

— Não deve estar longe... — guiou o cavalo de volta para a estrada, mantendo o ritmo acelerado para não perder tempo. Se a noite chegasse, sua jornada seria bruscamente interrompida por vários motivos, mas o primeiro e mais importante deles era: cavalgar de noite é uma das coisas mais difíceis que existe. Calculava que a luz solar ainda duraria cerca de meia hora e devia chegar ao seu destino antes disso. Bateu os pés nas laterais do cavalo e incitou-o a correr ainda mais.

***

Balran se ergueu imponente à sua frente, fria e cinzenta como sempre. Lar, doce lar. Um sorriso se abriu em seu rosto. Os boatos de que a cidade era a casa de todos os ladrões percorriam todo o reino, o que incluía Damon, obviamente. Se daria bem ali se precisasse ficar por um bom tempo, mas não era esse o caso. Havia outros rumores que precisava confirmar à respeito do local e pra isso, não podia perder tempo, afinal, a noite era a melhor hora para isso.

Entrou em Balran sem resistência alguma por parte dos guardas. Estavam em um número bem menor do que imaginara, indicando que havia algo maior acontecendo na cidade ou que já havia acontecido, e provavelmente a segunda opção era a mais provável. Algumas casas tinham telhados despedaçados e, Damon percebeu, uma delas tinha duas paredes destruídas e uma terceira danificada, todas elas alinhadas. "O que diabos atravessou essa casa?" perguntou-se, meio surpreso. Deu de ombros e voltou a caminhar.

A cidade ficava bem mais lotada à noite, como esperava. Prostitutas ficavam em pé na porta dos bares, dando "amostras grátis" de suas pernas para os transeuntes mais próximos. Tinham expressões faciais de desejo, embora Damon soubesse que eram apenas para atrair a clientela; tinha experiência com esse tipo de mulher. Um enorme letreiro pintado de vermelho que exibia orgulhosamente os dizeres "Seja bem vindo ao Poço do Prazer, onde o seu dinheiro será a passagem para um mundo de devaneios!". Damon deu um sorriso sarcástico.

— Sério? — caminhou em direção ao estabelecimento. — Eu ainda não acreditava que ia te encontrar em um lugar como esses... "tão forte quanto a Cavaleira e talvez até mais bela". Me sinto enganado.

E foi com esse mesmo sorriso sarcástico que o mercenário empurrou as portas duplas do bordel e atravessou o seu corredor principal. As paredes eram de uma madeira qualquer, camufladas com algum tipo de aromatizante pois em aparência não estavam nada boas. Mais mulheres lá dentro, obviamente. Faziam sinais com a mão para Damon, tentando chamá-lo para perto, outras apenas deslizavam a língua pelos lábios e tentavam uma abordagem mais subjetiva. Ignorou-as, mantendo o ritmo da caminhada. O estabelecimento era enorme por dentro, embora do lado de fora desse outra impressão.

Ouviu um grito e olhou na direção do som. De trás de uma enorme cortina composta aparentemente por seda, um homem foi arremessado ao chão. "Aí está você", Damon pensou, e já começou a caminhar pra lá. A vítima ainda tentava se arrastar com as costas coladas ao chão, empurrando com as pernas e com os braços quando seu algoz finalmente saiu do cômodo. Carregava uma enorme espada, quase dois metros de puro metal enferrujado. Seus cabelos eram completamente pretos, amarrados em um rabo-de-cavalo que lhe tocava a cintura. A pele acobreada finalizava a descrição, que batia perfeitamente com a dos boatos pesquisados pelo mercenário. Seus olhos se cruzaram por um breve segundo, até que a mulher voltou a atenção para o seu alvo.

— Cê mexeu com a mulher errada, desgraçado! — e a espada se ergueu acima de sua cabeça. Talvez fosse o dia de sorte do homem ao chão, ou melhor dizendo, o dia de azar da garota. Damon viu o indivíduo movimentar agilmente os dedos da mão direita e com o movimento súbito de sua agressora, a enorme lâmina mal-cuidada se prendeu ao teto, destroçando uma ou duas madeiras.

— Desculpe-me, senhorita! — fez uma reverência e saiu correndo pelos corredores, aproveitando-se da quantidade elevada de pessoas para se fazer desaparecer. A morena simplesmente cravou a espada no chão e bufou de raiva, olhando ao seu redor. Era o momento para que Damon se aproximasse. O arco havia ficado em seu cavalo, mas a adaga permanecia escondida debaixo de sua capa para viagens. Envolveu os dedos ao redor do cabo do armamento.

— Ei, você. — Abordou a mulher.

— Que é, inferno?! — ela respondeu, mais do que educadamente. — Você ajudou aquele cara a fugir? Tava querendo me distrair? Qual é a sua?

— Fica fria! Posso achá-lo em menos de uma hora se quisesse, mas o meu interesse agora é por você, Dama de Ferro.

— Errou. — Disse, com um sorriso convencido no rosto.

— Errei o quê? — Damon arqueou as sobrancelhas e abriu os braços, sem entender nada.

— Errou o apelido, idiota. — Ela riu e apontou o polegar para o rosto. — É Megera de Ferro, não Dama de Ferro.

— E qual é a merda da diferença?

— A diferença você percebe na hora de contar os dentes que vão ficar grudados no chão, ô desgraçado. — Deu de ombros. — Afinal, o que você quer, hein? Não vou ficar perdendo meu tempo com você se não me mostrar seu ouro.

— Não vim para passar a noite com você... bem, não do jeito que você imaginou. — Seu olhar era penetrante, e a mulher sentia isso. Não conseguia encará-lo nos olhos por mais de três segundos. — Eu pago uma bebida e você escuta tudo o que vou dizer. Temos assuntos à tratar.

***

— Você só pode tá de brincadeira comigo, cara. — A Megera de Ferro se balançava sobre a cadeira inclinada, que possuía apenas dois de seus pés no chão. — Cê tá mesmo querendo fazer isso bem debaixo do nariz da Cavaleira?

Damon suspirou, exasperado. Levantou-se e começou a caminha em direção da porta. "Total perda de tempo", refletiu. Esperava mais da Megera de Ferro, e não uma mulherzinha covarde que finge ser brutamontes para aterrorizar os menos capazes de se defender. Quando tocou a maçaneta de latão da Taverna do Enforcado, ouviu um grito atrás de suas costas.

— É lógico que eu topo! — a mulher se aproximou fervorosamente de Damon, ficando bem à sua frente com um sorriso de determinação no rosto. — Ter a chance de enfrentar aquela vagabundinha loira no mano a mano? — Subiu em cima da mesa mais próxima e bateu no peito com o punho fechado. — Qualquer um sabe que a Cavaleira não duraria um round comigo, não é, rapazes?! — e os homens foram à loucura gritando em concordância e batendo suas canecas contra a mesa, pisando forte contra o assoalho e jogando cerveja para cima. — Isso te deixa mais seguro, mercenário?

— Com certeza. — Ofereceu a mão para que ela descesse, mas a Megera saltou da mesa sozinha, ignorando a ajuda. Seu corpo era belíssimo, e as roupas curtas facilitavam o julgamento de Damon. O resultado poderia ser tanto de suas atividades no bordel quanto das extracurriculares retalhando vagabundos que tentavam fugir sem lhe pagar, nunca saberia dizer exatamente.

— E como exatamente pretende começar isso? — Estava novamente se apoiando em sua espada. Damon estava quase certo que a cidade tinha um zilhão de buracos no chão por causa desse hábito de cravar a lâmina no chão e ficar encostada nela.

— Primeiro tenho que resolver mais algumas questões e... bem, você não é a única envolvida nisso. — Virou-se e saiu da Taverna, deixando que a porta fechasse sozinha. A Megera continuou no lugar, o que Damon achou sensato. Se ela começasse a segui-lo como um cão de rua, traria seu fim. Odiava que o seguissem, e odiava que fossem ingênuos a ponto de imaginar uma amizade em suas relações de negócio. Seguiu adiante.

Balran não estava muito cheia à esta hora, era madrugada e apenas as tavernas e bordéis tinham seu lugar neste período. As tochas que iluminavam as ruas semi-vazias tremulavam suavemente em seus suportes, criando sombras dançantes que se aproximavam e recuavam do mercenário a todo momento. Damon olhava periodicamente para trás, precavendo-se contra qualquer tipo de inimigo que se aproveitasse da escuridão para lhe apunhalar pelas costas.

Escutou um barulho.

Assim como quando viu o goblin na floresta, este barulho passaria despercebido para uma pessoa comum. Um simples ruído em uma cidade grande, quem se importaria com isso? Damon se importaria com isso. Estava caçando, neste exato momento, e aquele era o sinal de sua presa. Aproximou-se rapidamente da entrada de um beco à direita e ficou em silêncio, encostado na parede do que parecia ser uma padaria.

Silêncio.

Couro raspando suavemente contra o chão.

Passos rápidos.

Damon avançou para dentro do beco em uma corrida veloz. Seja lá quem fosse, também corria noite a dentro fugindo do mercenário. "A adaga!", lembrou-se. Enfiou a mão dentro da capa de viagem e tateou o abdômen, encontrando ali a lâmina embainhada. Agarrou o cabo e puxou-o, sentindo o peso do armamento em sua mão. Ergueu o braço e lançou-o, assim como faria com uma flecha.

O que antes era uma arma de mão, agora era um projétil e o que antes era um alvo em fuga, agora era uma presa encurralada. A lâmina havia se alojado na parede bem à frente do homem em fuga, rasgando ao meio um cartaz que expunha a palavra "Aliste-se!" em cores vibrantes e a imagem de uma mulher loira trajando uma armadura que talvez apenas Frey e Mark conseguiriam usar sem incômodos. "Então essa é a Cavaleira? Bonitinha", pensou.

Aproximou-se do ser encolhido. Trajava vestes da noite, feitas para homens que frequentam lugares que os outros não costumam. Era um nobre, provavelmente. O tecido e o corte das vestimentas revelavam isso, mas... não, era um falso nobre e Damon o reconheceu assim que agarrou-o pelo colarinho e jogou seu corpo contra a parede, deixando seu rosto e o punhal tão próximos quanto dois amantes em um beijo acalorado.

— Por que fugiu? — Perguntou, prendendo-o ainda mais com as mãos.

— Porque correste atrás de mim, ora essa! Não tenho dinheiro para lhe dar, laráp... AI! — Levara um tapa fortíssimo no rosto. — Tá, tá, eu sei o que você quer!

— Sabe? E o que é? — o olhar assustado da vítima poderia ser suficiente para que Damon não acreditasse em suas palavras. Pessoas desesperadas tinham tendência a criar histórias fantasiosas para escaparem de suas situações de perigo.

— Você está procurando a Megera de Ferro, o homem que atrai o azar e... o outro.

— E seria hoje o meu dia de sorte, caro amigo?

— Não. Infelizmente, hoje é o seu dia de azar. — Seus lábios se moveram silenciosamente por uma fração de segundo. Algo em cima dos dois se desprendeu em um movimento brusco. Damon ergueu os olhos rapidamente e avistou uma enorme cascata de tijolos desabando sobre sua cabeça. Rolou para trás e as peças argilosas caíram no chão, criando um estardalhaço que poderia ser ouvido em Sarkon.

— Desgraçado! — o mercenário olhou ao redor, mas a visão estava dificultada pela poeira que se espalhara no beco. Arrancou a adaga da parede e virou-se para procurar o homem que perseguia anteriormente através de seus passos. Era astuto, não havia corrido de Damon, estava caminhando. "Hoje também é o seu dia de azar..." ergueu a perna com agilidade, acertando em cheio o seu alvo com um chute no estômago. Toda a fumaça se dissipou com o vácuo reunido no golpe.

— Afinal, o que você quer, hein?! — gritou o outro, com raiva. Havia se sentado no chão, massageando suavemente o lugar onde Damon acertara. — Já disse que não tenho dinheiro!

— Não quero o seu dinheiro, imbecil. Preciso do seu dom para dificultar as coisas para alguns... amigos, pode-se dizer. Tem muita gente sortuda em Balran, isto precisa ser mudado, não acha?

Um sorriso se espalhou no rosto do homem caído.

— Se estiver insinuando um golpe de proporções maiores, eu adoraria saber se você é idiota o suficiente para ir contra a Cavaleira e caso seja, também não hesitaria em ajudar. Ela protege esta cidade bem demais pro meu gosto, e Galbrei... Galbrei não está nem aí. O Lorde da cidade não liga pra ela, porque a maldita guerreirinha tem que ligar? Que o inferno a parta!

— Vocês falam muito da Cavaleira, chego a pensar que ela já causou grandes complicações à todos aqui.

— Apenas aos que fazem o que é errado, obviamente. Você é um mercenário, entende que o que é certo não rende lucro.

— Fala de lucro como se fosse a coisa mais importante da vida.

— E não é? — o homem arqueou a sobrancelha, indignado pela opinião contrária de Damon.

— Você saberá quando chegar a hora. Por enquanto, ainda preciso encontrar mais alguns amigos. Está dentro, Azarado? — estendeu a mão para o novo aliado, ajudando-o a se levantar.

— Fez o dever de casa, mercenário.

— Seu nome é conhecido em Haurun. — Damon comentou, guardando a adaga novamente na bainha. — "O Azarado, tem mil rostos e ao mesmo tempo nenhum".

O homem sorriu, satisfeito. Virou-se e caminhou para fora do beco, deixando Damon sozinho com seus pensamentos. "Onde acharei os outros?", perguntou-se, inquieto. O Azarado e a Megera de Ferro praticamente caíram do céu à sua frente, mas obviamente não seria tão fácil com o resto dos procurados e por mais difícil que fosse, não podia desistir. Nenhum outro rebelde poderia integrar aquele projeto como eles. Balran é a casa de todos os ladrões e obviamente tinha seus campeões.

Suspirou.

Se as coisas fossem mais fáceis, não teriam graça.


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