Desconexão escrita por Jafs


Capítulo 11
Abençoados sejam todos nós




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/554741/chapter/11

Branco.

Era a cor que reinava absoluta naquele ambiente sem começo, meio e fim. No entanto não era um ambiente vazio. Inúmeras cadeiras, modernas e antigas, de material sintético e natural, flutuavam suavemente em variadas altitudes.

Entre elas havia uma garota.

Onde estou?

Aquele cenário era completamente bizarro para ela. As cadeiras rodopiavam no ar com em um ambiente sem gravidade, mas ela se sentia firme no chão ou o que poderia dizer como chão.

Algo chamou a atenção. Uma cadeira de mogno com estofado verde. A garota a reconheceu, mesmo estando distante dela.

Ou estava.

Hã?

A cadeira agora estava diante dela.

E-eu fui até ela? Ou ela veio até a mim?

Quando estendeu sua mão para tocar a cadeira. Algo novo havia chamado a sua atenção.

Minha mão.

Não era exatamente a mão, mas a luva que ela usava. Branca, com babados e algo brilhante na parte interna...

Os olhos dela arregalaram-se ao ver o que era: estrelas, galáxias, quasares, cometas... sobre o fundo escuro do universo.

É lindo, mas...

Seu vestido era de um branco puro. Assim como a luva, ele tinha babados na longa cauda e nas mangas curtas. A última camada do babado era de um rosa claro, assim como a meia calça. O sapato que calçava projetava uma asa.

Mas...

O decote no vestido, que revelava a curva de seus seios, fechava na altura da gola, onde repousava cinco gemas rosas com forma de gota. A gema que ficava no centro era maior que as demais.

“O QUE ACONTECEU COMIGO?!” Ela colocou as mãos na cabeça.

O grito dela foi capaz de fazer as cadeiras próximas rodopiarem para longe.

“Meu cabelo...” Ela deslizou as mãos. “...está comprido?”

Ao puxar uma mecha para averiguar, ela viu que não havia fim: seu cabelo rosa flutuava, espalhando-se e perdendo-se de vista na brancura do horizonte. A única coisa familiar eram seus rabos de cavalo, um em cada lado da cabeça, mas amarrados com pomposos laços brancos.

No entanto algo a deixou ainda mais estupefata.

Enquanto se contorcia para ver suas costas, ela notou que havia algo flutuando atrás dela. Era um holograma de um par de asas branco.

“S-são asas? E-eu virei um anjo? Isso... isso quer dizer que... estou no céu...”

Chacoalhou a cabeça com força. Não podia ser verdade. Ela estava em casa com a família. Como podia estar nesse lugar agora. Ela precisava se lembrar. Precisava sair dali. Sair. Sair. Sair!

Foi então que, acompanhado de um zumbido, um holograma começou a surgir em frente a ela. Era uma imagem de cor vermelho puro, ainda estava muito borrada porém já era possível dizer que era maior que a garota.

A imagem foi ganhando definição, mesmo assim a garota não era capaz de reconhecer ou compreender o significado daquilo: Eram dois sóis, um dentro do outro.

Antes que pudesse analisar melhor ou até mesmo tocar, outra imagem começou a se formar próxima aquela ali. Essa era composta pelas cores azul e branco, formando o desenho de um televisor mostrando dois anjos se cumprimentando.

“O que está acontecendo?” A garota estava cada vez mais temerosa, enquanto observava uma nova imagem se formando. Era vermelha como a dos sóis, mas tinha a forma que lembrava uma borboleta ou uma coroa de espinhos ou talvez uma flor?

Não havia tempo para respostas, pois outra imagem surgiu. E outra. E outra... Logo aquele fundo branco foi sendo povoado por aquele mosaico de símbolos.

A garota se viu cercada por aquilo, como se estivesse dentro de um imenso globo. Ao olhar para cima, se deu conta que no topo, uns cem metros acima, havia se formado uma imagem maior que as outras.

Devia ter mais de uma dezena de metros de diâmetro. A parte central da imagem era uma esfera negra atravessada por um pino e um par de asas escuras. Sobre tudo isso, estava um laço rosa espalhado.

A garota nem percebeu que estava de queixo caído, ainda mais quando aquela imagem foi se transformando em outra. O laço se fundiu com a esfera, virando em uma estrela rosa com oito pontas. A ponta que apontava para o norte tinha forma de uma coroa. O par de asas clareou até ficar um branco brilhante. Uma moldura de tons dourados com uma borda rosa se formou por trás, onde inúmeras linhas negras projetavam de seu centro para todas as direções. Quatro círculos negros estavam posicionados como pontos cardinais próximos a estrela.

Então, logo abaixo das asas, runas cor de rosa começaram a ser escritas.

“Eterno feminino...” Garota balbuciou, confusa por sua mente ter sido capaz de ler aquela escrita.

Enquanto a garota relia as runas, devido ter dúvidas da sua capacidade de estar certa quanto aquilo, a imagem começou a trincar como vidro.

Oh não! A garota abaixou cabeça e colocou as mãos sobre, temendo pelo pior.

Estouro.

Imagem se fragmentou em milhares de pedaços, caindo sobre e envolta da garota. Felizmente, nenhum pedaço era grande o suficiente para machucá-la.

Voltando a olhar para cima, ela constatou que novamente uma imagem havia substituído a anterior.

Agora era somente preto e branco. Uma salamandra negra com um losango a frente e um par de asas invertidas atrás.

A garota estava completamente absorta contemplando aquilo que não percebeu o perigo: os fragmentos da imagem destruída começaram a derreter, adquirindo o aspecto de um piche. As inúmeras poças formadas daquele líquido escuro então ganharam vida própria e serpentearam em direção a garota.

Ela só se daria conta quando já era tarde demais.

“Hã! AAAAHHH!”

Como tentáculos, o piche se agarrou nas pernas dela. Aglutinando-se, aos poucos começou a subir até a cintura.

Desesperada, ela tentou em vão remover aquele piche com as mãos.

O chão inteiro estava tomado pelo piche. Não havia para onde ir.

Então ela sentiu ser erguida pela cintura. Começou subir.

“AAAAHHHHH!!!” O terror tomou conta dela. Ela estava indo direto contra aquela imagem da salamandra.

Se protegeu como pôde com os braços. Felizmente o impacto não fora tão forte, pois o material era como um cristal fino e leve. A imagem se estilhaçou assim como a anterior.

Contudo ela estava subindo cada vez mais rápido. Abaixo dela agora havia apenas uma montanha de tentáculos negros, que engoliram aquela miríade de imagens que ela havia visto. Os tentáculos estavam amarrados a sua cintura com firmeza, era como uma saia grotesca.

Cadeiras flutuantes passavam por ela com velocidade, enquanto subia. Temia que uma delas a atingisse ou a possibilidade de haver um teto naquele cenário aparentemente infinito.

A única coisa que pensou em fazer era erguer os braços e pedir por um milagre. “Socorro! SOCOOORRROOOOO!!!”

Então ela viu, em uma das cadeiras que havia acabado de passar, um animal. Tinha escamas escuras e devia ter em torno de um metro de comprimento, da cabeça para a cauda.

Depois apareceu outro igual, sobre outra cadeira que passara. Agora ela tinha certeza que o animal era aquela salamandra daquela imagem.

Subindo e subindo. Sua mente exausta com aquela loucura toda, ela acompanhou a salamandra, que agora estava em outra cadeira. Foi então que descobriu que era o mesmo animal, pois ele desaparecera de uma cadeira e reaparecera em outra.

A salamandra estava a seguindo, se esforçando para alcançá-la.

Então ela o perdeu de vista. Não sabia se isso era bom ou ruim. Ele queria salvá-la? Ou estava caçando?

Parecia que logo essas perguntas seriam respondidas, pois ao erguer a cabeça a garota viu a salamandra caindo em direção a ela.

Levantou os braços, com o intuito de segurar o animal. No entanto a sua reação havia sido lenta demais e a salamandra caiu sobre sua cabeça.

O que ela não esperava era que aquelas escamas fossem tão macias...

Ao abrir os olhos, Madoka Kaname viu seus braços estendidos em direção ao teto de seu quarto.

“Hmmmm...?”

As mangas indicavam que ela voltara a vestir seu pijama verde oliva. Esfregou os olhos, ainda sonolentos.

A luz e os cantos dos pássaros que vinham da janela anunciavam o alvorecer de um novo dia.

“Eterno... eterno...” Madoka buscava lembrar do que havia acontecido, mas só havia sobrado alguns flashes em sua memória.

Então se lembrou que algo havia atingido a sua cabeça. Caído no chão, ao lado da cama, estava um coelho de pelúcia cor de rosa.

Madoka deu um salto e abraçou o coelho. “Desculpa por ter te arremessado Meggy, eu acho que tive um sonho terrível...”

Ela levou e colocou o coelho em cima de uma cadeira de mogno com estofado verde.

O quarto da Madoka era composto por duas coleções: uma de bichos de pelúcia, de vários tamanhos, tipos e cores, e outra de cadeiras. Essa inusitada coleção fora iniciada por sua avó materna e passou para as gerações seguintes.

O som de movimentação pela casa chamou a atenção dela. Ao abrir a porta do quarto que dava para um corredor, se deparou com seu pai.

Tomohisa Kaname era um homem magro de boa aparência, fruto de sua adesão a uma dieta de produtos naturais. Mesmo tendo mais de 30 anos, seus cabelos castanhos não apresentavam fios brancos ou qualquer outro sinal da idade.

“Madoka? Já acordou?” Disse surpreso enquanto estava limpando a lente dos óculos com a sua camisa.

“É... Eu acho que descansei o bastante.” Madoka ficou passando a mão no seu cabelo desarrumado.

“Bom. Então poderia acordar o Tatsuya para mim? Aí eu já posso agilizar o café da manhã.” Tomohisa deu uma piscadela.

“Claro pai. Hihi.”

Tomohisa colocou os óculos de volta no rosto. “Depois que arrumar ele, acorde a sua mãe. Ela pediu mais uns minutinhos de sono, pois hoje vai ser um dia daqueles.”

Madoka ficou consternada. “Oh? Ela vai fazer hora extra no sábado de novo?”

Tomohisa suspirou e fechou os olhos. “Pois é.” Disse em tom de decepção.

/人 ‿‿ 人\

Junko Kaname é uma mulher moderna com uma carreira promissora. Vestindo uma típica combinação de blazer e saia lápis de cor preta com uma camisa social branca, só faltava o cabelo e a maquiagem para estar pronta para o trabalho. Ela estava compartilhando um espaçoso banheiro com a sua filha. “Alguma novidade na escola?”

“Nada não.” Madoka, já vestida com o uniforme escolar, disse enquanto penteava os cabelos. Acho melhor não contar sobre a conversa que tive com a Sakura.

“Hum...” Junko colocou um prendedor no seu cabelo de tom rose escuro. “...o que vai fazer depois da escola?”

“Eu vou passear com o Pai e o Takkun.” Madoka respondeu sem pestanejar.

Junko começou a aplicar uma base. “Por que não vai dar uma passeada no shopping?”

Madoka ergueu as sobrancelhas. “Sozinha?”

Junko pegou o aplicador de rímel que estava no estojo. “Por que não? Quem sabe você encontra alguém da escola lá.”

Madoka compreendeu a idéia da sua mãe. “É... Pode ser.”

“Não precisa ser alguém da sua sala. Já pensou em entrar em um clube?” Junko havia terminado com os cílios.

“Até pensei, mas...” Madoka se lembrava daquela estranha conversa com Homura em frente ao mural, ao menos parte dela...

Junko suspirou. “Ai. Ai. Eu nunca imaginei que ficar esses anos fora faria tanta diferença.”

“Não se preocupe.” Madoka sorriu. “Eu não posso ter amigos, mas todo mundo me trata muito bem.”

“É claro, senão iriam se ver comigo.” Junko falou em tom de ameaça, enquanto passava sombra nos olhos.

“Wehihi.” Madoka começou a fazer seus rabos de cavalo, amarrando com um laço vermelho.

“Você sempre usa esses laços para escola, mesmo tendo outros.” Junko preparava o pó para o blush.

“É.” Madoka ficou olhando para um dos laços. “Eu tenho um carinho especial por eles, mas nem me lembro onde eu comprei.”

“Comprou?” Junko questionou. “Você não ganhou eles de presente?”

“É?” Madoka franziu a testa em um esforço para lembrar. “Hum...”

“Bem...” Junko fechou o estojo e deu uma boa olhada em seu reflexo no espelho. “Estou pronta para luta!”

“Mãe! Os sapatos!” Madoka apontou para as pantufas rosas que sua mãe estava calçando.

“Ah sim! Eu tinha deixado para escolher depois.” Junko estendeu a mão para Madoka. “Obrigada filha. Juntas somos invencíveis.”

As duas baterão a palma da mão da outra.

A mesa do café da manhã já estava arrumada.

Legumes vindos direto da horta que tinham casa. O pão e geléia eram preparados artesanalmente por Tomohisa, que estava de avental atrás do balcão da cozinha.

“Anjo! Vvvuuusshhhh.” Tatsuya, sentado a mesa em um banco para crianças pequenas, brincava com um tomate como se fosse um avião de brinquedo.

“Tatsuya! Não brinque com a comida.” Junko chamou a atenção antes tomar um gole de café.

Tomohisa riu. “Tatsuya tem uma imaginação... Enxergar um anjo em um tomate.”

Madoka estava comendo uma fatia de pão. Ela se lembrou do dia que Tatsuya mostrou aquele enorme tomate, desde então ele adquiriu essa mania.

“Alguém vai querer mais café?” Disse Tomohisa.

“Por favor.” Junko levantou a xícara. “Hoje tenho que ficar bem alerta.”

Tomohisa trouxe a jarra. “Junko, você precisa trabalhar todo sábado?” Disse enquanto enchia a xícara. “Não foi por causa do stress que voltamos para o Japão?”

Junko trocou olhares com ele. “Querido. Estou só acertando as contas.”

“Mas...”

“A companhia só cobriu nossas passagens, o transporte da bagagem ficou por nossa conta.” Junko continuou, não dando espaço para o seu marido.

Tomohisa pensou em impor a voz, discursar sobre o valor da família, porém ele viu que Madoka e Tatsuya estavam olhando atentamente para os dois.

Ele ficou em silêncio e sorriu.

Junko respondeu aquele sorriso na mesma altura e segurou a mão de Tomohisa, deslizando com o polegar sobre um anel. “Por isso que me casei contigo.”

Alguns segundos mais longos que os habituais passaram-se.

Infelizmente para Tomohisa o relógio na parede estava ali para estragar o clima. “Acho melhor vocês duas se apressarem.”

Mãe e filha saíram juntas de casa.

“Tenham um bom diiiaaa!” Tomohisa e Tatsuya disseram em uníssono.

Junko foi em direção a garagem para pegar o carro enquanto Madoka seguiria a pé. Não levava dez minutos para chegar a escola com uma boa corrida.

Bye mommy!” Madoka acenou para sua mãe.

See you.” Junko respondeu.

/人 ‿‿ 人\

Esses momentos com a família eram de grande estima para Madoka. Principalmente porque faziam ela esquecer de suas inquietações.

Agora que estava sozinha a caminho da escola, elas voltavam a assombrá-la.

Isso começou desde que voltou do ocidente. Era uma estranha sensação de que algo estava errado. Algo fora do lugar. Algo que não se encaixava naquele meio.

E tinha a absoluta certeza do que era: ela mesma.

Mesmo o ato de andar não parecia familiar. Será que o chão de cada país era diferente?

Não. Aliás não era só isso. Vestir a meia calça, ir ao banheiro, sentir fome... Tudo isso era tão normal e ao mesmo tempo... não...

Chegando na escola, outra sensação com o qual ela lidava surgiu: estar sendo observada. Eram tantas pessoas olhando para ela, notando a sua presença.

Pior era quando entrava na sala de aula. Ninguém para dar aquele oi ou bom dia especial. Os grupos de amigos já estavam formados na sala. Esse era o problema de entrar no meio do ano letivo.

Madoka sabia que devia ter aproveitado os primeiros dias, quando ainda era a ‘nova aluna’, para formar amizades. Porém sua inquietação aliada a timidez atuaram como grilhões.

Sentada em sua carteira, o sentimento de sua insignificância, de que ela poderia sumir a qualquer momento da sala e ninguém se importar, a atormentava.

Talvez ela devesse sumir mesmo. Quem sabe seguir uma carreira similar a da mãe? Comércio exterior? Para uma mulher que viaja pelo mundo, o Japão seria um lugar demasiado pequeno. Sim! Ela pertenceria ao mundo!

Mas teria coragem para isso?

Kyouko certamente teria.

Madoka observou garota com aquele longo rabo de cavalo vermelho. Kyouko não estava prestando atenção na aula, parecia estar mais ocupada com a sua amiga de cabelo azulado. Qual era o nome dela mesmo?

Mi...Michael...Mickey...Miki. Isso. Miki Sayaka.

Kyouko não tinha medo de levar bronca do professor. Não tinha medo de correr pelos corredores. Não tinha medo da detenção. Não tinha medo de ser tachada de delinqüente.

Ela pode ser uma delinqüente, mas...

Na primeira conversa que tiveram. Kyouko já começou falando sobre um assunto tão sensível que havia deixado ela envergonhada. Contudo, Kyouko falou com tanta naturalidade, como se tivessem conversado outras vezes.

Será que... ela aceitaria eu como sua amiga?

Madoka imaginou como seria a vida com aquelas duas. Será que elas saem muito? Andam pelo shopping? Ouvem alguma música? Tanta coisa poderia acontecer. Seria até possível que ela ganhasse um pouquinho da atitude da Kyouko.

Está decidido! Vou falar com ela no intervalo. Madoka estava determinada.

Porém passou a aula de geografia, de história, de inglês...

Era sempre igual. Tocava o sinal e seu coração acelerava. Tanta coisa poderia acontecer. Kyouko podia rir dela, zombar, ignorar... Possibilidades intermináveis que ela não conseguia terminar de enumerar antes do sinal tocar novamente.

Próxima aula vai ser a última do dia.

Esse intervalo era a sua chance final. Ela sabia que as duas sairiam correndo dali quando dia de aula terminasse e nuca conseguiria alcançá-las.

Faltavam poucos minutos para começar o intervalo. O coração já estava em marcha rápida.

O que a minha mãe faria?

A mãe dela era uma guerreira. Viajou para o ocidente pouco tempo depois que teve seu irmãozinho.

Somos invencíveis.

O que seria uma mera conversa diante disso?

Madoka não parava de chacoalhar suas pernas enquanto esperava o som da partida.

Sou invencível. Sou invencível. Sou invencível. Sou inven...

O sinal toca.

Madoka levantou da cadeira e forçou um sorriso. Fechou os punhos com determinação e ignorou seu coração angustiado. Enfim ela iniciou sua caminhada rumo a sua missão.

“Kaname-san?”

O corpo tenso de Madoka virou-se até a pessoa tão rapidamente que ela não tinha certeza se havia sido um movimento voluntário. “Ahhh... um... A-akemi-san?!”

Homura estava próxima dela. “Interrompi algo? Pretendia ir para algum lugar?”

“É... não... hihi...” Madoka ficou coçando a nuca. “Eu só... queria esticar as pernas um pouco. Isso.”

“Que bom.” Homura sorriu. “Já que está tão disposta, gostaria de me acompanhar?”

“Agora?”

Homura estava apreciando as suas unhas. “Uhum...”

“Claro. Hihi.” A missão de Madoka pode ter sido um fracasso, mas andar lado a lado com a excepcional Homura Akemi seria um ótimo prêmio de consolação.

Contudo, antes de sair da sala com a Homura, Madoka olhou uma última vez para o seu antigo objetivo. Nisso ela acabando trocando olhares com a... Qual era o nome mesmo?

“O-oi Mi...michi-san.” Madoka acenou enquanto dava um sorriso sem graça.

Sayaka, que ainda estava sentada, desviou o olhar. Sua expressão misturava decepção e tristeza.

Madoka abaixou e mordeu os lábios. Fazer amizades com aquelas duas não teria sido tão fácil.

/人 ‿‿ 人\

Para quem visse aquelas duas andando pelos corredores, era difícil dizer que estavam juntas.

Homura estava a frente, cabeça erguida, passadas assertivas.

Madoka, por sua vez, ficava olhando para os lados, hesitante. Tanta gente estranha olhando, pois estavam muito longe da sala. Já haviam subido dois andares.

“Para onde estamos indo?” Madoka se deu conta que essa foi a primeira coisa que falou durante todo o trajeto.

“Para o topo.” Homura respondeu sem olhar para trás.

“O topo?” Madoka ficou surpresa. “Mas não é proibido?”

“Não é proibido.” Homura fez uma pausa antes de continuar. “É restrito. Isso significa que algumas pessoas têm acesso, incluindo os estudantes do clube de astronomia, representantes de classe e...”

“...coordenadoras de saúde?” Madoka completou.

“Isso mesmo Kaname-san. Levando em consideração que você será de minha responsabilidade.”

As duas chegaram a escadaria que dava acesso ao topo da escola.

Foi quando Madoka veio com outra dúvida. “Mas por que vir até aqui?”

Homura virou-se para ela, com um sorriso sereno. “Eu notei o quanto você estava aflita nessas últimas aulas.”

“Ah...hum...” Madoka ficara corada.

“Então...” Homura remoeu os lábios, procurando as palavras. “Eu decidi conversar contigo, mas eu não sei como você vai reagir. Eu não gostaria que alguém visse, para o seu bem.”

Madoka franziu a testa. Qual assunto poderia ser? E de que reação se tratava? Raiva? Tristeza? Rir até cair no chão? Considerando a forma como Homura colocou, esse último não devia ser o caso. Devido a isso, ela chegou ao topo com apreensão.

Na verdade essa era a primeira vez que Madoka visitava o topo. Como se arrependeu de não ter vindo antes da restrição... A vista para os modernos arranhas-céus de Mitakihara era incrível. O sol aliado a uma refrescante brisa parecia rejuvenescer. Ela imaginou almoçando em um dos bancos de concreto que estavam dispostos ali. Observando a movimentação dos alunos no pátio. Também era visível a torre com megafones que...

Era como se um raio tivesse atingido ela. “Akemi-san!”

“Sim?” Homura, que continuava a frente, virou-se novamente.

“Não vamos nos atrasar para a próxima aula? Se o sinal tocar...”

“Não se preocupe.” Homura sorriu. “Eu havia trocados e-mails com o professor, ele me informou que chegaria atrasado para aula.”

“Éééé?” Madoka ficou piscando repetidas vezes. Depois deu um sorrisinho. “Que bom então.” Nossa! Ela é tão próxima dos professores. É incrível.

Homura não voltou a andar. “Sobre o que eu gostaria de falar.”

Madoka segurou a respiração.

Homura juntou as mãos, entrelaçando os dedos. “Nakazawa-kun.”

Madoka expirou aliviada. Então era isso? “Ah. Então ela lhe contou tudo.”

Homura ouvira aquela afirmação com satisfação. “Sim. Ela me contou tudo e posso garantir que essa falsa informação não se espalhará.”

Pensando o que aconteceria se a sala, pior, a escola inteira ficasse sabendo, Madoka ficara vermelha mais uma vez.

Homura adquiriu uma expressão séria. “Você não deve dar atenção para Kyouko Sakura. Ela é um modelo a não ser seguido. Isso inclui a colega dela.”

“Entendo...” Madoka falou sem entusiasmo.

“Hum? Algum problema?”

Madoka deu as costas para Homura, em direção a grade de proteção. “Eu acho que Sakura-san apenas entendeu mal.”

Homura estava curiosa. “Verdade?”

“É. Se Nakazawa-kun realmente olha para mim, não é por interesse...” Quando Madoka pôs uma das mãos na grade, ela a recolheu em um ato reflexo devido a dor. A tinta escura, juntamente com o Sol, havia deixado muito quente. Ela ficou observando as pontas do dedo avermelhadas. “É porque eu sou uma garota estranha.”

“Garota estranha? Está infeliz?” Homura continuou a interrogar.

“Não. Não é isso.” Madoka respondeu. “Só estou me sentindo meio deslocada. Não consegui me aproximar de ninguém. E tenho certeza que problema está em mim.”

“Isso... É lamentável.” Homura se preparava para bater palma.

“Mas então veio você.”

As mãos de Homura retraíram com aquela afirmação.

Madoka virou-se. Lágrimas percorriam seu rosto sorridente. “Você é a minha esperança.”

Homura ficou de boca aberta. “Mmma...name-san?”

“Desde o primeiro dia você cuidou de mim.” Madoka cruzou suas mãos sobre seu peito. “Sempre está preocupada comigo, sempre por perto, apesar que conversamos tão pouco.”

O sinal toca.

“Mesmo que, comparado a você, eu sou nada.” Madoka começou a se aproximar.

“Não diga isso, Kaname-san.” Homura balançou a cabeça.

Madoka enxugou suas lágrimas com a mão. “Mesmo que eu deva ser um fardo para você.”

“Você jamais será um fardo para mim.”

“Eu não posso deixar de considerar que você é uma amiga.” Madoka estendeu suas mãos para Homura.

“NÃO!” Homura deu um passo para trás.

Madoka ficara perplexa com aquela reação.

Homura suspirou. “Você está confusa Kaname-san. Isso é... apenas um dever.” Ela sentiu um golpe nas suas costas.

Madoka olhou para suas próprias mãos. “Mas só comigo?”

“C-como eu disse. Você entendeu mal.” Homura recebera mais um golpe. “...E-eu...não...po...” E outro.

Então o silêncio.

Madoka baixou as mãos. “Akemi-san, desculpe.”

“Você não precisa. É eu que devo, por fazê-la vir até aqui.” Homura desviou o olhar. “É melhor você voltar para sala. Até você chegar lá, o professor deve ter aparecido.”

“Ah... E-eu gostei de vir aqui, mas você não vem comigo?”

Homura sorriu de forma singela diante daquela pergunta. “Eu vou aproveitar que estou aqui para checar se está tudo em ordem.” Outro golpe.

“Ok. Eu vejo você lá.” Uma Madoka entristecida se pôs a caminhar.

“Tchau Kaname-san.” Homura aguardou ela sumir de vista. Então passou a mão nas suas costas. Logo sentiu algo úmido e viscoso. Era polpa de tomate.

Procurando pelos seus perpetradores, logo encontrou aves negras empoleiradas nas grades de proteção.

“Suuumam daqui!” Homura exclamou em tom ameaçador e as aves partiram.

Agora sozinha, ela escondeu sua face com as mãos, não se importando por elas estarem sujas. “É eu que sempre precisarei pedir desculpas, Madoka.”

/人 ‿‿ 人\

Já era tarde da noite.

A única luz no quarto de Madoka era proveniente do luar. Sentada sobre sua cama, pensava em Homura. Será que tinha ido longe demais? Então por que uma coordenadora de saúde iria fazer tanto por ela?

Nisso ela ouve o som da porta da casa se abrindo no andar abaixo. O som de sapatos sendo deixados no chão. Pelos passos, ela sabia que a pessoa estava indo direção a cozinha.

Decidiu descer.

Ao chegar na cozinha se deparou com a sua mãe abrindo a geladeira, que era única coisa iluminando o ambiente. Quando a fechou, o luar voltou a reinar.

Junko havia retirado uma jarra de suco. “Filha? Acordei você?”

Madoka sorriu. “Não. Eu não estou com sono.”

“Hmmm...” Junko pegou dois copos.

“Trabalhou até essas horas?” Madoka foi até o seu lugar na mesa.

“Seu pai não disse? Eu estava com a sua professora.” Junko foi enchendo os copos.

“Saotome-sensei?” Madoka indagou.

Junko inclinou a cabeça. “Quem mais?”

Madoka, ainda sorrindo, franziu a testa. “Problemas com homens?”

Junko inclinou a cabeça ainda mais.

“Wehihi.”

Então sua mãe abriu a bolsa que estava sobre o balcão da pia. De lá retirou uma pequena garrafa com um líquido transparente e colocou seu conteúdo no copo de suco.

Madoka percebeu que sua mãe estava lenta em seus movimentos. “Mãe? Você já não bebeu o bastante com a sensei?”

“Minha filha me policiando? Kuku...” Junko disse enquanto colocava a garrafa de volta na bolsa. “Isso aqui vai me ajudar a dormir. Você vai entender melhor quando cumprirmos nossa promessa.”

“Promessa?” Madoka abaixou o olhar, procurando em suas memórias.

“Não se lembra mais?” Junko sentou na cadeira. “De que nós iríamos brindar um drinque juntas quando você fosse maior?”

“Ah...” Madoka bebeu um pouco do suco. “...acho que não...”

“Você anda muito esquecida.” Junko ficou girando o copo, rodopiando o líquido que havia dentro. “Essa sua falta de sono... algo lhe perturba, não?”

“É...” Madoka encolheu seus ombros. “Existe uma pessoa.”

“Uma pessoa...hmmm...” Junko fechou os olhos. “Na escola?”

Madok balançou a cabeça. “Sim.”

“Ela fez alguma maldade contigo?” Junko sondou a filha.

“Não!” Madoka gesticulou. “Ela me trata muito bem, desde o primeiro dia. Ela sempre está preocupada comigo, perguntando como estou. Me dá conselhos e eu sinto que ela me protege, sabe.”

Junko apenas ficou ouvindo.

“Só que...” Madoja ficou esmorecida. “Só que quando quero me aproximar, ela me evita. Eu sinto que daríamos tão bem. Fico confusa com isso.”

Vendo que sua filha havia terminado, Junko ficou pensando, deslizando seus dedos na borda do copo. “Na forma como você colocou, isso me parece mais com um caso de amor.”

Madoka arregalou-se. “A-a-a-amor?! Como isso é possível? Quando a gente ama alguém, não queremos que ela esteja próxima de nós?”

Junko sorriu. “Seria bom se fosse tão simples. Você conhece bem essa pessoa?”

“Uh? Ah!” A face de Madoka iluminou-se. “É incrível. Ela muito responsável. Tem ótimas notas. Muito boa nos esportes também. Os professores sempre estão falando...”

“Hahaha...”

“O que foi?” Madoka perguntou.

Junko balançou a cabeça negativamente. “Eu pergunto: você sabe como ela se vê?”

Madoka ficou em silêncio.

Junko continuou. “Você sente que se dariam bem. Ela pensa o mesmo?”

Madoka ficou observando o seu fraco reflexo na superfície do copo. “Mas... mas então por que ela faz isso comigo? Não seria melhor desistir?”

“O amor tem muitas faces.” Junko deu um gole antes de continuar. “É bonito, mas nem todas as histórias onde ele está envolvido são felizes. Essa pessoa ama você, mas talvez ela acredita ter algo que a faz indigna de ter reciprocidade.”

Madoka contorceu o rosto. “I-isso é terrível. Se isso é verdade, ela nem me deu uma chance...”

“Madoka!” Junko chamou a atenção da filha. “A história pode ser triste, mas ela não terminou ainda.”

“O que você quer dizer com isso?” Madoka estava curiosa.

“Ela se aproxima de você ainda, não?” Junko olhou nos fundos dos olhos da filha, buscando transmitir confiança. “Tenha paciência. Ela vai se abrir aos poucos. Você deve agarrar essas oportunidades.”

Madoka se lembrava da última conversa com a Homura. Ela não tinha ido longe demais e sim rápido demais. Talvez se tivesse esperado por uma abertura...

“Obrigada mãe!” Madoka disse alegremente.

Junko suspirou. “Já me basta a Saotome. Agora tenho essas conversas em casa.”

“Wehihi.” Madoka se levantou. “Deixa que eu lavo a louça para você.”

/人 ‿‿ 人\

Em um vôo solitário, Homura voltava para Mitakihara. No entanto, dessa vez ainda faltava muito para o sol nascer.

Fim de semana e outros dias de folga eram a única oportunidade que ela tinha para caçar demônios no continente americano, devido ao fuso horário. Felizmente eram também os dias que ela tinha mais horas para descansar.

Contudo ela estava sem sono. As lembranças daquelas lágrimas, outrora de esperança e que ela as transformou em decepção, não saíam da sua cabeça.

.opmeT

Não havia mais. Ela adiara o inevitável. Teria que fazer. Era isso ou perder tudo.

Chegando em casa, atravessando o portal, se deparou com o salão com o chão forrado de penas pretas.

Minhas crianças se divertiram muito com vocês, suas malditas.

O salão estava em completo silêncio. Sem as aves, as crianças deviam estar em algum lugar caçando elas. Também estavam ausentes aquela bruxa e seus lacaios, apesar de que ela podia sentir sua presença próxima.

Aquele ambiente lhe trouxe inspiração.

Primeiro ela fez alongamento, estralando seu corpo por inteiro. Depois respirou fundo e bateu a palma duas vezes.

Uma música orquestral quebrara o silêncio.

Como se estivesse em um transe, Homura respondia cada nota, cada acorde, com o seu corpo. A cada giro, a cauda do vestido levantava as penas do chão.

Sua dança era evolvente não pela graça e pureza, mas pela agressividade e sensualidade.

Ah! A música trouxe convidados para o opulento salão. Suas crianças e pyotrs haviam entrado, agora o baile estava cheio. Para quem visse de cima, os convidados formaram círculos concêntricos envolta da meretriz.

Telões surgiram nas paredes com imagens da Madoka. Sua expressão alegre, esperançosa, de compaixão, estavam em todos os cantos.

“FufufwahahahaHAHAHAHA...” Homura rodopiava, fazendo as penas formarem uma chuva negra. Cada vez mais rápido. Ela não queria perder nenhum momento, mesmo o mais sutil, da sua amada.

Suas crianças, suas princesas, tentavam imitá-la. No entanto Homura era a rainha! O seu amor só tinha olhos para ela.

Mas...

Era muito difícil dizer o que havia parado primeiro, Homura ou a música. As penas novamente repousaram. Agora só restava aguardar os jurados.

As crianças, uma após a outra, levantaram as placas com as notas.

0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0

“Obrigada.” Homura abraçou a si própria, deslizando as unhas sobre a pele exposta dos ombros. “Obrigada...”

Aplausos.

Esse evento inusitado chamou a atenção de Homura. Lá estava uma menina de cabelo branco e rosto pintado, em seu costumeiro vestido rosa de bolinhas brancas.

Com um gesto, Homura fez evanescer as imagens de Madoka. “Bruxa? Acordei você?”

Nagisa sorriu. “Não. Não estou com sono.”

“Hmmm...” Homura foi se aproximando da bruxa.

“Incrível Homura-chan!” Nagisa exclamou.

Homura pousou sua face de lado, apoiando sobre seu dedo indicador. “Gostou? Fufu.”

“Gostei? Foi Marawrvilhoso!” Nagisa abriu os braços e começou a rodopiar. “Aquela hora que você começou a girar sobre uma perna só cada vez mais rápido. Eu achei que ia voar.”

Homura levou em consideração que, se ela não estivesse com as asas recolhidas, essa era uma possibilidade plausível. “Você deve estar se referindo aos fouettés.”

Nagisa ainda estava muito excitada. “Você já foi uma bailarina?”

“Hmm... Eu já quis ser uma...” Homura percebeu que estava levando instintivamente sua mão ao lado esquerdo do peito. Ela evitou continuar. “...mas era um sonho infantil. Por falar nisso...”

“Hum?” Nagisa notou que Homura a estava examinando.

Homura proferiu com sarcasmo. “Com essa cara que você tem... por acaso sonhava em ser uma palhacinha? Fufufu...”

Nagisa desviou o olhar e tentou esconder seu sorriso com ambas as mãos. Sem sucesso, suas diminutas mãos não eram páreo para as dimensões da sua boca.

“Sério?! Fwahahaha...” Homura não se conteve. “Você vivia no circo?”

“No hospital.” Nagisa respondeu.

O sorriso das duas desapareceu.

“Hospital?” Homura ficara confusa. “Não é um lugar para essas coisas.”

“Eu discordo.” Nagisa retrucou. “Tinha um grupo de palhaços que visitavam com freqüência. Era bonito os ver trazerem alegrias para as pessoas que estavam sofrendo.”

Homura fechou os olhos em um momento de ponderação. “Ah sim. Eu me lembro deles, mas eu não dava muita atenção. Não via muito sentido naquilo.”

Quando Homura abriu os olhos viu que Nagisa voltara a sorrir. “Quero dizer... eu vi isso em uma notícia...”

Nagisa balançou a cabeça. “Não precisa mentir Homura-chan.”

“Você sabe? Então ela contou para você, não é?” Homura sentiu um gosto amargo na boca. “Você era uma paciente também?”

Nagisa continuara a balançar a cabeça. “Não. Minha mãe era.”

“Você disse que vivia no hospital. O que aconteceu com ela?” Homura sondou a bruxa.

“Ela era doente.” Nagisa começou. “Eu ainda era pequena quando ela teve os primeiros problemas. Eu não entendia direito, os médicos disseram que eram nos rins e tinham que retirar.”

“Os dois?”

Nagisa balançou a cabeça confirmando. “Meu falecido pai é que era japonês e a família dele não aceitou a união com uma estrangeira. Minha mãe não tinha nenhum outro parente para tomar conta de mim.”

“Então eu a acompanhava no hospital. Ela ficava sentada em uma máquina por horas. Eu via o sangue dela passando por uns tubinhos. Ela dizia que era groselha.” Nagisa sorriu.

“Só que depois ela piorou. Os médicos disseram que a doença havia passado para o fígado. Mesmo tomando uns remédios muito fortes, eles deram não mais que seis meses de vida.”

“Meus pêsames.” Homura balbuciou.

“Não!” Nagisa ainda estava sorrindo. “Eu não disse que vivia no hospital? Minha mãe ficou internada, mas os médicos foram bons comigos e me deixaram ficar.”

Homura ficou surpresa. “Você dormia lá?”

“As enfermeiras conseguiram alguns lençóis e eu dormia. Mas não importava, pois estava com a minha mãe.” Nagisa continuou. “Ela perdeu peso e os cabelos, mas nunca o sorriso. Gostava quando eu passava a mão na cabeça lisa dela.” Nagisa então passou as mãos em seus cabelos. “Eu até deixei crescer os meus para fazer uma peruca bem bonita.”

Apesar do conteúdo da história, a voz de Nagisa era cheia de esperança. “Foi nessa época que conheci os palhaços. Eles vinham com uma nuvem de bolhas de sabão e ficavam dançando e buzinando. As caretas que eles faziam eram muito engraçadas. Ehihi”

O rosto da bruxa voltava a ser a da filha que nunca desistira da sua mãe.

“Mais de um ano se passou e minha mãe estava viva. Os médicos disseram que era um milagre. Minha mãe disse que eu dei forças para ela. Entende? Ela desejou viver, por causa de mim!” Seus olhos alaranjados brilharam.

“Mais tarde disseram que ela iria ganhar um rim novo e que iriam tirar a parte doente do fígado e... ela ficou boa. Ela ficou boa!”

Pyotrs começaram a circular Nagisa.

“Nós saímos do hospital, mas ela ainda tinha que tomar muitos remédios. Ainda assim ela estava feliz. O cabelo voltou a crescer e deixou de usar a peruca.”

“Uhum... uhum.” Homura não estava interessada nesses detalhes.

Porém Nagisa parecia não terminar nunca. “Sabia que ela era uma cozinheira de mão cheia? O sonho dela era montar uma confeitaria de culinária estrangeira. Meu pai tinha deixado um dinheiro guardado, mas não era muito. Então ela começou vendendo queijos em feira. Os clientes ficavam impressionados que eu sabia o nome de todos os tipos.” Apontou para si mesma, se gabando.

“Que bela história!” Homura exclamou, procurando interromper. Ela então foi deslizando o dedo indicador que estava apoiando seu rosto até o lábio inferior. “Mas você fez o contrato por causa da sua mãe, não?”

O rosto radiante de Nagisa voltou a empalidecer, seus olhos voltaram a adquirir sua mistura bizarra. “Depois de uns anos ela voltou a ficar ruim. Os médicos disseram que o rim estava parando. Só que ela tomava tudo certinho, eu ajudava a lembrar.”

Homura ficou observando Nagisa baixar a cabeça aos poucos.

“Ela teve que ficar internada. Eles disseram que... que a doença tinha voltado. Foi muito rápido, não conseguia mais levantar da cama, perdeu o cabelo de novo...”

Nagisa colocou suas mãos no peito.

“Eu deixei crescer meu cabelo de novo, mas ela nem pôde ver. Ela só dormia, cheia de tubos, a pele pálida... a boca toda roxa. Eles perguntaram sobre a minha família, eu não queria ir... e eles não me queriam.”

“E nessa hora o maldito apareceu.” Homura deu um singelo sorriso.

Nagisa ficara em silêncio.

“Você desejou salvar a vida dela.” Homura afirmou.

“Não.” Nagisa colocou as mãos no rosto, a voz era chorosa. “Não! Eu desejei um cheesecake.”

“Cheesecake?” Homura ficou tão confusa que nem percebeu que havia recolhido seu dedo.

“Eu queria que ela lutasse. Que ela desejasse viver... por mim... Eu devia ter pedido pratos e talheres...”

O salão começou com um leve tremor.

“...eu peguei um pedaço com a mão...ela tinha uma máscara...eu passei o dedo por baixo...ela gostava de sentir o cheiro primeiro...”

Homura percebeu que mais pyotrs surgiram, estavam agitados. “Bruxa...”

“...as máquinas apitaram...sem parar...entrou gente correndo...me afastaram dela...pisaram sobre todo o cheesecake...eu não podia fazer nada...”

Homura não gostou do que estava presenciando. “Charlotte.”

“...então eu corri...eu corriiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.”

“CHARLOTTE!”

“bbbrrriiii?” Nagisa agora estava diante de uma gigantesca Homura. Não. Não era ela que havia agigantado.

Nagisa agora era uma boneca, não aquela de olhos coloridos e expressiva, mas a bruxa que descobriu que a perseverança não é para sempre.

“Então essa é a sua maldição.” Homura disse enquanto analisava olhar escuro e sem brilho da bruxa.

“bbbrrriiii...”

“Eu não estou entendendo o quer dizer.”

Um líquido roxo vazou pelos olhos. “bbbrrriiii...”

“Ah... Está chor...” Homura foi interrompida por um forte tremor. Um imenso donut começou a emergir do chão do salão. Caramelo escorria pelas paredes. Pudins caíam do teto e espatifavam, se misturando com as penas.

Homura pegou a cabeça da bruxa com a mão esquerda e a ergueu na altura dos olhos. “Pare bruxa! Está sobrepondo a minha barreira!”

“bbbrrriiii...” Chalotte não parou com o choro.

Homura suspirou e fechou os olhos. Então levou a bruxa até seu colo e a abraçou. O choro continuava, mas abafado. O roxo escorreu pelo tecido preto do seu vestido.

Isso perdurou até o tremor ceder.

Enquanto acariciava a bruxa, Homura decidiu dar sua opinião. “A morte dela é uma benção.”

“bbbrrriiii?” Charlotte levantou a cabeça e as duas trocaram olhares.

Homura se deu conta do risco e prosseguiu rapidamente. “Você agora tem consciência sobre as conseqüências do contrato. Pense! O que teria acontecido se a vida da sua mãe tivesse sido salva?”

Charlotte olhando para Homura. Não era possível discernir por quais emoções ela estava passando naquele exato instante.

Homura continuou. “Morta, ser levada pela lei dos ciclos ou mesmo virando uma bruxa. Não importa. Você se condenou, sua mãe iria perdê-la.”

Dessa vez a bruxa abaixou a cabeça.

“Esse era seu desejo? Pois eu nunca irei aceitar um desejo onde a pessoa que você ama vá embora.” Homura falou com rancor.

A bruxa estava estática, não havia como diferenciá-la de uma boneca comum.

Inúmeros pyotrs se amontoaram e cutucavam as pernas da Homura. Ela decidiu então colocar a bruxa sobre eles. “Você lutou por ela até o fim. Eu a admiro por isso. Agora descanse.”

Os pyotrs começaram a carregar Charlotte até o seu quarto. No meio do caminho, a bruxa se virou e a serpente saiu da sua boca.

“Eek!” Aquele rosto sorridente de dentes afiados veio tão rápido que Homura só teve tempo de armar as asas.

Porém Charlotte não abriu boca, ao invés disso ela começou a se esfregar em Homura.

“Ei. Ei! Ok... Vou entender isso como um ‘obrigada’.”

Aparentemente, Homura havia acertado. A serpente recuou até sumir pela porta que dava acesso ao quarto.

“Essa bruxinha...” Homura sorriu. Ela olhou atentamente para a palma da mão esquerda, onde surgiu sua gema em forma de coroa. O violeta brilhava intensamente. “Hoje coletei bastante aflição. Hum?”

Suas crianças, juntamente com vários dentes voadores, estavam mastigando o imenso donut que havia aparecido.

Homura as chamou. “Crianças! Chega de doces por hoje.”

Elas fizeram uma cara de manha.

“Eu tenho algo muito melhor.” Homura levantou a mão cuja gema estava flutuando. “Tragam ele para mim.”

Homura viu suas crianças, em uma verdadeira algazarra de sons mecânicos, pularem de alegria.

...etrom A

“Hum?”

...etrom A

“Ah sim! Concordo plenamente.” Um telão apareceu com uma imagem estática do rosto sorridente da Madoka. Homura estendeu sua mão em direção a imagem e deslizou os dedos como se estivesse a acariciando, como se dali pudesse alcançá-la.

“A morte é uma benção.”“.oãçneb amu é etrom A


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Próximo capítulo: Desconexão