A menina que falava com os pássaros escrita por O Viajante


Capítulo 5
Café


Notas iniciais do capítulo

Como prometido, até o fim da semana irei postar três capítulos para compensar meu atraso. Não tenho muito o que dizer, só agradecer novamente a todos esses leitores e leitoras maravilhosos que arrumei. Para mim, ter um feedback tão bom demoraria anos. Abraços!



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A manhã estava fria naquele dia, ele lembra. Mas mesmo assim estava passeando pelo parque. Falar a verdade, ele havia vindo visitar Hell’s Kitchen. Pensava em se mudar definitivamente para uma de suas ruas bem organizadas. Só não sabia onde, e por ser um lugar não muito grande, não esperava realmente que ainda tivesse um espaço. Mas ele precisava tentar.

Estava com fome, e precisava tomar algo quente para esquentar. Ele usava calças jeans escuras, no mesmo estilo do pai. Algumas coisas, nós herdamos sem querer, outras nós incluímos em nossa personalidade. A genética é algo bom, se seus pais forem alguém que você se orgulha e se espelha. Mas se for o contrário...

Andou pelo parque, sempre cheio de árvores, muita grama e crianças pirracentas correndo de um lado pro outro, enfiados até a cabeça em agasalhos e tocas. Dylan tentava aquecer as mãos dentro da jaqueta escura, enquanto procurava um banco para se sentar. Devia ser algum feriado. Ele era meio perdido no tempo, e estava no último ano de arquitetura. O que esperar da cabeça dele? Nada muito normal.

A maioria dos bancos estava ocupada, e os que estavam vazios, ficavam do outro lado do parque. A manhã não havia trazido muita coragem a ele, então poderia se sentar na grama, caso não tivesse percebido um banco quase vazio. Caminhou com o olhar baixo. Tinha uma garota sentada no canto do banco, e ele decidiu se sentar na outra ponta. Não teria nenhum problema, se ele não olhasse pra ela em nenhum momento, ou soltasse um olhar estranho para ela.

É, Dylan era um cara bem esperto.

Mentira, ele não era.

Na verdade isso era um conceito bem difícil de se fazer sobre ele. Ele era inteligente. Sim, muito. E muito bom com problemas lógicos, ou cálculos. Isso foi um dos motivos que o fizeram entrar na empresa em que trabalha atualmente. Mas quando se falava de problema emocionais, abstratos...

Sentou-se no banco de madeira e olhou para longe. Esperava poder encontrar um lugar antes do entardecer. Havia uma pilha de desenhos e ângulos para criar. Sabe quando nós nos sentamos perto de uma pessoa, e por um motivo desconhecido, ficamos constrangidos? Mexemos no celular, olhamos para o céu, conferimos o relógio. Ele estava fazendo exatamente isso. Até tentar adivinhar que formas as nuvens estavam formando valeria.

Mas com uma expressão de descaso, olhou para o lado, e franziu o cenho com o que viu. Uma garota, um pouco mais nova que ele, jogava pedaços de pão para os pássaros. Nada de mais.

O problema é que por ali não havia nenhum pássaro.

Tinha do outro lado do parque, ele podia ver alguns voando, mas aos pés dela não havia nenhum. Dylan olhou em volta, meio desconfiado, com os olhos levemente cerrados, então olhou novamente para ela.

Uma garota branca, com cabelo amarrado em rabo de cavalo, jogando migalhas para o chão vazio. Olhou atrás do banco, e depois embaixo, para se certificar de que não havia nenhuma ave. Por fim, olhou para ela.

— O que está fazendo?

A alimentadora de pássaros invisíveis respondeu calma, como se estivesse fazendo a coisa mais normal do mundo. Mas em nenhum momento olhou para ele.

— Estou alimentando os pássaros, não está vendo?

— Hmmm, não.

— Ah, desculpe, não percebi que você era cego... – então Jenny encarou ele. Encarou bem nos olhos, e exclamou engrossando a voz, como se estivesse sendo zombada. — Você não é cego, rapaz!

Ele se afastou um pouco.

— Eu nunca disse que era.

Ela inspirou fundo. Não valia a pena perder tempo e calma com um desconhecido que nem a deixava alimentar os pássaros em paz. Concluído isso, voltou a jogar as migalhas no chão. Um silêncio se instaurou. Não um silêncio bom, mas um silêncio desconfortável. Ao menos para ele. Porém, ela parou com as migalhas e seus olhos castanhos acompanharam algo se mover pelo céu, até se fixar no ombro de Dylan.

Ela cerrou os olhos, com a boca meio aberta. Pensava em algo. Olhou para os ombros de Dylan, depois para o rosto dele. Rosto, ombro, rosto, ombro.

— Ah, não! Não, não, não! – ela exclamou com uma careta histérica, tão retorcida que o pobre rapaz se assustou, e até deu um pulo pra fora do banco quando ela tentou estapear ele.

— O que foi isso!? Enlouqueceu, garota?

Jenny se levantou e foi até ele. Tentava espantar algo dos ombros do rapaz maior que ela.

— O que você está fazendo? – ele estava mais confuso que antes. Ela era definitivamente maluca. Que sorte a dele.

— Estou tentando tirar os pássaros dos seus ombros. Agora fica quieto. – e dito isso, ela voltou a abanar os ombros dele. – Saiam daí. Saiam. Saiam.

Enquanto ela fazia essa coisa estranha, o “moço” simplesmente a observava. Observava os traços da garota maluca que havia tentando estapear ele. Pelo menos ela não tinha a expressão de alguém amargo e psicótico que precisava ficar com camisa de força. Ou aqueles olhares frios que gelam sua alma. Não, ela era bem interessante de se observar.

Os devaneios de Dylan foram interrompidos por um tapa bem dado em seu rosto. Então ele voltou para a realidade e viu ela com uma cara de que fez burrada, com as mãos na boca.

— Desculpa, eu estava tentando tirar eles e...

— Não, olha, deixa pra lá. Continua aí dando comida para os seus pássaros. Eu preciso ir agora.

E se virou de costas, começando a andar.

— Ei, espera aí! – ela correu até ele com aqueles tênis brancos de esporte e segurou seu ombro. — Você não pode ir embora com meus pássaros em seus ombros!

Os pássaros. Dela. Estavam nos ombros. Dele.

Ele não fazia ideia, mas aquilo havia sido a maior declaração de amor que ela poderia dar. Mas ela não queria isso. Não queria se apaixonar por ele. Na verdade, não queria se apaixonar por ninguém. Mas os pássaros sabiam de coisas que ela não sabia. E se eles estavam nos ombros dele, era porque haviam visto algo nele. Algo que ela não via, ou que poderia demorar muito para ver. E essa ideia assombrava muito ela.

Ela não estava apaixonada, de forma alguma. Mas seria questão de tempo. Um curto espaço de tempo para que começasse a sentir algo por ele. Ela confiava nos pássaros. E sabia que eles nunca se enganavam. Isso havia acontecido uma vez apenas. Na época de escola, quando ela tinha treze anos. Os pássaros pousaram nos ombros de um menino um ano mais avançado que ela. E à noite, eles sussurravam coisas sobre ele.

Ela havia se apaixonado. Mas tinha medo, e era tão tímida. As pessoas viam-na como uma garota estranha. Ela não sabia o motivo, mas tinha medo que ele também fizesse isso. Três meses de amor platônico depois, o garoto se mudou. Ela não sabe pra onde, mas no fim das contas, esqueceu o que sentia por ele, mas aquela sensação sutil, de que podemos perder algo quando gostamos muito, ficou em seu interior.

Dylan foi esperto em perceber que havia algo estranho com ela, e por pouco não a chamou de louca. Mas ela parecia tão meiga, tão espontânea, que seria crueldade chamá-la assim.

— Olha... eu preciso comer. Estou com fome. Vi que tem uma lanchonete aqui perto.

— Tá, eu preciso ir também. Só estava terminando de alimentar esses pestinhas.

Os dois caminharam até a lanchonete do outro lado da rua calados. Não havia muito o que falar. Na verdade, ambos pensavam que já haviam falado demais. Mas a moça não parecia tão séria. A lanchonete era pequena e fechada, tinha um sino logo acima da porta que tocava cada vez que era aberta. Quando entraram, a mistura de aromas de vários tipos de cafés os envolveram. Era algo maravilhoso.

— Um café expresso pra mim, por favor. – ele pediu. — E dois pedaços desse rocambole.

A garçonete detrás do balcão assentiu e ele se sentou na mesa quadrada que ficava encostada na janela da parede que os separava da rua.

Jenny por sua vez havia pedido um café forte e com uma colher extra de açúcar, com leite e creme. E um pedaço de torta. Dylan não sabia a razão de ter prestado atenção no pedido dela. Ela se sentou na mesa seguinte.

Um breve instante se passou antes dos pedidos chegarem. Ele, encostado na cadeira, costas eretas e mão juntas sobre a mesa. Ela, por sua vez, estava com o corpo projetado pra frente, o queixo encaixado na mão, cujo cotovelo estava apoiado na mesa. Olhava para a rua, para as pessoas. A luz do dia banhava sua pele clara, e dava um certo destaque a ela.

Ela não era tão bonita como as garotas que já deram em cima dele, ou que chamavam sua atenção na faculdade, mas prendia a atenção por algo. Algo que ele começava a sentir vontade de decifrar. Talvez não fosse por beleza, apesar de ter achado que aquele nariz arrebitado combinasse com a boca grande de lábios rosados, embora os traços não fossem os melhores. Talvez fosse a personalidade dela. Ele tentou se lembrar do que Freud possivelmente diria, mas se tocou que nunca havia lido um livro de Freud na vida. Jung? Só serviria depois de sonhar. Pobre homem, péssimo com sentimentos, não sabia segurá-los.

O pedido chegou, e ele começou a comer. Tentava pensar em outras coisas. No apartamento que tentaria alugar, ou em como seria a formatura quando acabasse os estudos, até se perguntava se aquele café era melhor que o de sua mãe. Como previsto, ele olhou novamente para ela, que usava uma colher minúscula para brincar com o creme que estava em cima do café. Talvez estivesse fazendo um desenho. Se isso não bastasse, ela deitou a cabeça na mesa, e ficou observando o suave vapor que subia e logo desaparecia no frio. Seus dedos finos tentavam mudar o curso daquilo, passando de um lado pro outro.

Ele a observou, meio que hipnotizado. Ela era bem infantil, sim. Mas são poucas que fazem isso sem se importar. Não era algo que ele estava acostumado a ver todo dia. E isso o fazia pensar em quanto tempo da sua própria vida ele havia gastado observando as pessoas. Será que haveria mais alguém como ela, no “círculo social” dele? Alguém que valesse a pena observar?

Cansada disso, ela novamente se ergueu, e segurou a xícara de café com as duas mãos, levando em direção à boca, mas não bebeu. Sussurrava. Sussurrava palavras inaudíveis, que só ela deveria entender, enquanto seus olhos serelepes corriam de um lado pro outro da mesa. Ela assoprou o café e tomou um gole.

A luz que vinha da janela também cobria os olhos dela, e vindos pela lateral, davam uma certa claridade a eles. Olhos castanhos e escuros como café forte. E também claros como

como um café fraco e suave. Olhos ávidos, alheios à realidade, mas que observavam cada pensamento fantasioso.

Olhos de café.

— Eu gosto de café. – ele cuspiu as palavras como se tivesse levado um susto.

Ela olhou pra ele um pouco surpresa, e piscou os olhos. Passou um segundo, então respondeu.

— Eu também gosto de café. Na verdade, eu gosto tanto de café que eu poderia transformar todas as pessoas em potes de café e tomar todos vocês pelo resto da vida.

Ela gargalhou. Uma risada gostosa, espontânea.

Apaixonante.


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Notas finais do capítulo

Não esqueça de comentar. Até mais.