A menina que falava com os pássaros escrita por O Viajante


Capítulo 6
Se soubesse antes o que sabe agora, iria embora antes do final?


Notas iniciais do capítulo

Olá, olá! Primeiro de tudo, quero pedir perdão pela demora em postar. Eu realmente queria ter postado antes. Mas em compensação, esse capítulo foi o maior até agora.
Quero agradecer a todos vocês, que estão acompanhando isso aqui, de verdade.
E também quero dizer que estou respondendo os comentários aos poucos. Então se o seu ainda não foi respondido, saiba que não estou ignorando. E irei responder com muita atenção.



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— Eu gosto de café Jenny...

Ele encarava o vazio, sentindo o sabor das memórias na boca. Conseguia se lembrar daquele cheiro de café, da risada dela, também quase podia sentir o tapa no rosto. Talvez porque tivesse levado um mais cedo também.

Mas dessa vez o arquiteto não tinha uma expressão muito boa. Estava triste. Triste porque havia perdido ela uma vez, e poderia perdê-la de novo. Ele precisava se salvar.

— Eu gosto muito de café...

Ao entrar pela porta, um sininho tocou. O interior do lugar era pequeno e aconchegante. Por incrível que pareça, o casaco escuro e a calça negra que ele trajava combinava com aquele lugar. No canto esquerdo, duas mulheres viam um catálogo de fotos. À frente, tinha um balcão de mármore, com a atendente. Atrás dela, havia um corredor que dava para alguns outros escritórios, e outra escada menor que levava para o andar de cima.

Ele não entendia como um lugar tão pequeno atendia a uma demanda que vinha crescendo mais e mais, até que Jenny explicou que ali era apenas uma cédula. Havia mais desses pontos, espalhados pelas cidades.

— Olá... Lilly, certo? – ele perguntou, se aproximando do balcão.

A loira magra assentiu, fechando uma pasta.

— Sim, você é o noivo de Jenny, isso?

Ele assentiu. Sabia que Jenny era muito amiga dessas garotas, mas ele nunca havia parado para cultivar algum laço social com elas, talvez não fosse preciso. Ele não precisava disso.

— Eu preciso muito falar com ela. Poderia avisar que estou aqui?

Ela ergueu as sobrancelhas.

— Desculpa, mas ela não está aqui.

— Como? Ela não veio hoje?

O coração dele acelerou.

— Sim, ela veio, mas precisou sair para trabalho. Sabe, tirar fotos.

Um suspiro de alívio.

— E para onde ela foi? Sabe que horas vai voltar?

— Weehawken. Talvez só no fim do expediente. Você parece meio tenso, está tudo bem?

Não, não está nada bem. Eu estou quase surtando. Tenho poucas horas para impedir que minha noiva morra de novo. De novo! Essa pressão está me destruindo por dentro, e eu nem sei onde ela está. Dá pra acreditar nisso? Eu quero fugir!

— Oh, está tudo bem sim. – ele sorriu – acho que só tomei cafeína demais.

— Ah, certo... um instante, vou tentar ligar para ela.

Enquanto ela discava o telefone, Dylan juntou as mãos e olhou em volta. Um certo alívio tomou conta dele, talvez até diminuiu o peso nas costas. Agora ele poderia conversar com ela pelo... telefone?

Em nenhum momento dessa manhã estúpida ele havia pensado em usar o... celular? Uma súbita raiva tomou conta de seu corpo, e a vontade de se esmurrar não foi pequena. Caminhou até a parede, fingindo ver uma foto emoldurada e bateu a cabeça na parede, com os olhos fechados.

Idiota. – sussurrou entre os dentes, e bateu novamente. — Idiota, idiota.

O sentimento de urgência poderia ter sido o fator principal. A vontade de ver ela, de conversar com Jenny face a face. De poder tocar na pele macia e bem cuidada dela. Tudo isso havia contribuído para que os meios de comunicações desaparecessem de qualquer pensamento. Precisava haver a presença real.

Pensar em presença o fez entender outra coisa. Sua noiva havia morrido. Mas agora estava de volta. Ele esteve do lado dela, ele acordou com ela, mas o que ele disse?

De importante.

O que ele disse?

Havia uma – forte – possibilidade de não vê-la novamente, mas no único momento em que ele teve oportunidade de falar com ela, um momento único que ficou entre a primeira morte e a possível segunda morte, ele não falou nada significativo.

Ele não disse que a amava, ou que o dia ficava mais bonito ao lado dela. Não perguntou como havia sido seu dia anterior, ou se o trabalho estava corrido. As demonstrações de afeto se esfriam com o tempo. Deixam de acontecer. A mecanicidade torna tudo tão automático, frio, insensível.

O amor precisava ser exercitado. Precisava ser aplicado, sentido, estimulado, e acima de tudo, vivido.

Quando vai parar de fazer as coisas errado, Dylan? Quando? Depois que ela morrer? Você tem até o fim do dia pra decidir.

Mas por qual motivo ele estava pensando em tudo isso agora, e não antes? Antes de tudo isso acontecer, antes de tudo começar a esfriar.

A cobrança estava começando. Sua mente exigia algo melhor. Um esforço mais dolorido. Uma visão direta do real significado de toda essa corrida sem lógica alguma.

Um desespero sem um objetivo certo. Apenas faça algo, Dylan. Apenas faça algo. Só não fique parado, céus.

Um toque de celular familiar foi ouvido logo atrás dele. É o celular da Jenny. Jenny chegou!

Mas ao se virar, viu apenas Lilly segurando a mochila aberta de Jennifer em uma mão, e o celular em outra.

— Ela esqueceu o celular. De novo. Quinta vez esse mês, dá pra acreditar?

Ele sorriu. Mas não um sorriso sincero, aliviado. E sim aquele sorriso seco, sem emoção, cujos olhos não sorriem juntos.

— É, verdade... não dá pra acreditar. Você não sabe onde ela foi?

Ela tem que saber. Tem que saber.

Lilly deu um suspiro. Talvez pela insistência dele.

— Ela foi tirar umas fotos de umas casas para colocar em um catálogo. Ela levou a lista de endereços. Se quiser falar com ela, tem de procurar. Mas Weehawken seria muito confusa para uma procura. Mais fácil ela chegar aqui e você ainda

estar lá, procurando. Está realmente tudo bem?

Ele assentiu, já caminhando para fora do local.

— Não se preocupe, vai dar tudo certo.

Ao entrar no carro, seu coração estava acelerado. Músculos rígidos. Pensamentos afiados. Olhos castanhos e cansados se olharam no retrovisor.

Se sentia na areia movediça. Perdido, e até cético.

— Você vai conseguir, Dylan. Você vai conseguir. Por ela.

Decidindo ignorar o pessimismo – não se sabe até quando – ele estufou o peito e suspirou pesadamente, retirando toda a covardia de si. Havia começado, e iria terminar.

Melhor passar o dia inteiro sentindo a areia do tempo escorrer lentamente por entre os dedos, do que ficar o resto da vida medíocre e vazia sem ela, se lamentando por não ter tentado. Precisava tentar pegar o vento, amarrar o ar, escalar uma nuvem.

Precisava driblar a morte.

Uma tarefa divina. Algo que deveria ser confiado a um herói musculoso, que carregava uma espada na mão, um escudo em outra, e mil mortes nas costas. Daqueles que tinham um cabelão enorme, e que tinham algum parentesco com os deuses.

Não um arquiteto qualquer no meio de uma cidade tão turbulenta. Isso não era um drama épico. Não haveria uma glória ao fim da batalha, mesmo que isso resultasse em morte. Só havia a moça bela em perigo. Um perigo que ela nem sabe que existe. Uma fatalidade. Mas quando se ocorre mais de uma vez, continua sendo uma fatalidade?

Ou isso se tornaria um fato pensado e calculado? Será que alguém estava assistindo isso? Porque desde o momento que ele desligou o telefone, sentia-se observado. Não exatamente por alguém, mas por algo. Algo que poderia estar se divertindo com tudo isso. E se quando tudo isso acabasse, amanhã acontecesse de novo?

Se fizeram-no voltar no tempo uma vez, por que não o fariam novamente? Até onde ele iria suportar? Até onde ele conseguiria pensar? Contudo, ele já havia dado os primeiros passos. E iria até o fim. Não sabia o que o carregou até aqui. Medo ou coragem? Talvez nenhum dos dois.

Possivelmente algo mais profundo. Algo mais verdadeiro. Algo que estava dormindo há algum tempo dentro dele. Uma coisa que recarregava todas as suas energias, e todas as suas células. Seja por convicção, ou pura loucura.

Mas o fato é que ele amava Jenny.

O carro começou a andar e deu a volta na esquina. Iria atrás dela.

Estava a poucos minutos do túnel Lincoln, quando parou no semáforo vermelho. A janela do carro estava abaixada, e ao olhar para o lado, viu um telefone público. E como se fosse mágica, ou algo parecido, o telefone tocou. Dylan, o rapaz de cabelo quase bagunçado, barba pontuda e olhos castanhos, ficou a observar. Naquele momento, nada passava na cabeça dele. Encarava aquilo como um fato cotidiano. Telefones tocam, pessoas atendem. Mas ninguém parecia ouvir.

Algo o incomodou.

O sinal abriu, mas ele não seguiu em frente. Antes, encostou o carro. E olhou novamente para o telefone. Não era apenas um, mas um conjunto de três.

— Atende... atende...

Torcia para que alguém atendesse. Para que qualquer ser humano cuja aparência demonstrasse o mínimo de sanidade mental, colocasse aquele telefone no ouvido e dissesse algo. Qualquer coisa.

Qualquer coisa.

O telefone parou de tocar. Ele soltou um suspiro. Mexeu na marcha e se preparou para acelerar o carro novamente. Mas o telefone voltou a tocar.

“Quarta regra. Sempre atenda os telefones que tocarem perto de você. Não importa onde seja, ou em que mão esteja. Você deverá sempre atender. Mas não se preocupe, não sou de falar muito.”

Independente de tudo, ele tinha ainda a desculpa da distância entre o carro dele, e o outro lado da rua, até o telefone. Interessante como em situações assustadoras, mentimos para nós mesmos, e queremos acreditar naquilo. Talvez esse seja um dos males da raça humana. Ignorar os fatos, e ainda por cima, ignorar a própria ignorância.

Acreditar na própria mentira, só para não sair da zona de conforto. Acreditar na própria mentira, só para não ter o trabalho de pensar. De agir. De expressar. Acreditar na própria mentira, por medo. Às vezes, medo de ter medo. As pessoas viviam cheias de medo.

Medo de não serem agradáveis aos outros. Medo de perderem o emprego. Medo de não terem dinheiro no fim do mês para pagar as contas. Medo de ficarem sozinhas. Um medo que as impedia de olhar para a própria imperfeição. Medo de que na verdade crua, não serem endeusadas como a imagem mental que têm de si mesmas. Mas simples cascas vazias, que vivem de stress e tensão.

Quantas vezes já mentimos para nós mesmos hoje?

E para acabar de vez com essa mentira do Dylan, o telefone do lado também começou a tocar. Depois, os três. Aquilo quebrou o silêncio dentro do carro. Sentiu algo dentro dele crescer. Seja temor ou coragem. Mas o corajoso assustado tirou o cinto, saiu do carro, e atravessou a rua, tomando cuidado com os carros.

Cada passo apressado que dava em direção ao objeto que guardava a voz misteriosa era uma velocidade a mais que seu coração batia. Sentia o sangue gelado percorrer o corpo. Quando segurou o telefone, sua mão tremia. Mas mesmo assim, ele atendeu. Com uma palavra seca, ofegante, incerta. E nesse momento, os três pararam de tocar.

— Alô?

Silêncio. Um suspiro.

— Alô?

Nenhuma resposta. Mas mesmo assim, ele continuou ali, atento. Magnífico como nosso cérebro pode ignorar o que não era relevante em momentos de tensão, e focar apenas naquilo que deve. Era isso o que estava acontecendo. Dylan não ouvia carros, buzinas, sirenes, conversas, nem o vento.

Ouvia apenas o silêncio. Mas não o simples, vazio, e calmo silêncio. Ouvia algo mais. Não vindo do outro lado da linha, mas dentro de si. A sensação de estar sendo observado. De estar sendo examinado. Uma marionete? Um brinquedo? A paranoia não precisava de mais que uma simples questão sem resposta para se instalar na mente dos mais observadores.

Podia quase sentir a respiração de quem ligou. Não uma respiração humana, mas mecânica, seca, rígida, inumana. Podia quase ver a boca se abrindo, formulando palavras, mas depois, apenas um sorriso metálico e sádico. Um sorriso doente.

A sua visão sobre mim não é muito boa.

A voz inesperada fez com que ele se assustasse com um grito e se afastasse, soltando o telefone, que ficou pendurado no gancho. Seu peito subindo e descendo forte. A boca seca instantaneamente. Pernas bambas. E assim ficou por alguns instantes.

Segurou o telefone, de uma forma desajeitada, e encostou na orelha novamente.

— Alô? Alô?

Mas a ligação havia sido encerrada.

— Droga! – praguejou entre os dentes.

A ligação podia ser importante! Podia? Cada frase daquela voz era importante. O que ele tinha para falar? O que Dylan tinha para ouvir? E mais importante, o que Dylan tinha que fazer?

Bagunçou o cabelo, angustiado, e decidiu esperar o telefone tocar novamente. Se fosse algo importante, com certeza ele iria ligar novamente. Encostou-se, na parede. E ali ficou. Um minuto. Três minutos.

Sete minutos.

Impaciente, andou de um lado para o outro. Olhou pela vitrine, e viu alguém conhecida. Era a mãe de Jenny. Impulsionado por algo rápido demais para ser explicado, Dylan entrou na loja. Após fechar a porta, ficou ali, parado.

A senhora de olhos azuis o percebeu, e o encarou, sem sentimento certo na face.

A sogra.

Dylan por algum tempo se perguntou: como os olhos de Jenny eram castanhos, e a mãe tinha olhos cor de piscina? Mas essa pergunta se desfez quando conheceu o pai dela. Olhos iguais os da filha.

A relação entre Dylan e Margareth nunca foi lá essas coisas. Não que ela não gostasse dele. Mas a questão é mais difícil quando as personalidades não se encaixam. Não brigaram, discutiram, ou nada parecido. Apenas não se aproximam como deveriam.

Se sentia um pouco incomodo – ou até deslocado – ao ser encarado tão fixamente por aqueles olhos. Não encaravam-no com raiva. Apenas a simples e pura indiferença. Ou até a falta de qualquer ideia que explicasse o motivo dele estar ali.

Que engraçado. Muito engraçado. Porque nem ele sabia o motivo de estar ali.

— Sra. Murray, olá. – Dylan passava as mãos na parte traseira da calça. Visivelmente sem jeito.

A loja não era larga, mas muito extensa. Lá se vendia de quase tudo que uma pequena loja poderia oferecer. Em uma parte, ficavam lanches e salgados, bolos e tudo mais. Ali ela trabalhava. Amava de paixão fazer bolos. Do outro, souvenires, e pequenos objetos. Cartões postais da cidade. Não havia muita lógica em juntar tudo isso.

Mas onde está a lógica desde que ele acordou?

— Dylan, procurado a Jen, suponho.

Os cabelos dela eram totalmente brancos, mas ela não tinha nada de velha, falar a verdade. Era uma senhora de muito bom porte, boa presença. Inteligência invejável e tudo mais que uma mulher gostaria de ter quando chegasse na idade dela. As rugas em seu rosto só deixavam-na com um ar mais rígido, ao menos para Dylan. Usava um vestido escuro e florido, com um avental por cima.

— Sim... como sabe?

— Por qual outra razão você estaria aqui?

— É, bom...

— Ela esteve aqui hoje. Mais cedo.

— Esteve?

— Sim, falou de você. Sente-se aqui, vamos conversar.

Ele obedeceu, e assim que ela se sentou numa mesa redonda, ele sentou-se também. Um pequeno clima estranho pairou entre eles. Ele juntou as mãos, e olhou para ela.

Sempre se sentiu incomodado em ser encarado tão fixamente. Mas nunca havia se perguntado o motivo. Hoje ele poderia responder. Interessante como a necessidade e a tensão fazia com que pensássemos em coisas tão ocultas a nossos olhos quase cegos.

Ele não gostava do olhar azul porque se sentia analisado, criticado. Ela nunca o criticou, mas ele... ele se sentia tão errado perto dela. Se sentia tão torto perto de uma senhora tão reta. Não tinha o olhar filosófico, distante e certeiro que ela tinha.

Talvez por isso. Perto dela, sentia-se incapaz de ser chamado de um homem de verdade. E nesse momento, percebeu que por muito tempo, mentiu para si mesmo. Sentia-se incapaz de amar, e ser amado por Jenny. Havia ele ignorado algo essencial?

— Sabe, eu vou direto ao ponto. – ela falou, em um tom firme, mas sem arrogância. Ela falava bem.

Dylan assentiu, perguntando-se que ponto era esse.

— Você sabe que nunca disse que aceitava o seu namoro com a Jen, certo?

Ele pensou um pouco... e assentiu.

— Mas nunca neguei que namorassem.

Ele assentiu novamente. Margareth sabia ler almas. E sabia que tudo que ela dissesse ali, seria uma verdade dura. Mas ele estava preparado.

Ele estava sim.

— Eu via claramente quem você era. Um rapaz inteligente, com um futuro brilhante. Mas eu também via alguém que não se conhecia. Alguém quase cego, que tinha muito o que aprender.

Ele abaixou a cabeça. Estava aprendendo da pior forma.

— E, sinceramente, eu acho que você ainda tem muito o que aprender. Você não tinha um olhar de gente que pensava de verdade. Você tinha um pouco de inconsequência. Não do tipo adolescente rebelde. Mas não pensava como tinha que ser. Sempre te achei meio pateta.

Ah... a sinceridade. Sempre tão agradável.

— Mas hoje eu vejo outro olhar em você. Vejo que te alguém aí dentro, se esforçando para algo que eu não sei o que é, mas com certeza é pela minha filha.

Ele assentiu, bem rápido.

— Porém, eu acho que já é tarde demais, Dylan.

Tarde demais? Como assim, tarde demais? Pelo amor de Deus, como assim tarde demais?

— Eu... eu não entendi. – ele falou, um pouco hesitante, mas com bastante medo do que iria ouvir.

— Você sabe que minha filha é uma garota especial. E quando eu digo especial, não quero dizer uma deficiente. Você sabe que ela é especial. Você conviveu o suficiente para saber disso.

— Sim, os pássaros...

— Não só isso, Dylan. Mas todo o resto. Toda a personalidade dela é bem diferente. Claro que existem muitas outras pessoas diferentes. Mas a convivência mostraria o que ela tem de tão único.

Ele sorriu um pouco acanhado.

— Ela gostava de falar com os objetos da casa.

— Sim, mas é sobre você que eu estou falando agora. Você sempre foi alguém muito lógico, de sentimentos rígidos e até confusos. Nada intenso de verdade, que se mostrasse para as pessoas. Sempre foi alguém reservado. E isso, eu creio... – ela parou de falar, mordeu os lábios, pensando em como dizer – isso foi o seu pecado em cuidar da minha filha.

— O que está querendo dizer? – ele franziu o cenho. Tarde demais?

— Ela veio aqui me pedir ajuda, Dylan. Ela quer terminar com você.

Mil vezes ela tivesse pegado uma faca e cortado a garganta dele, do que ouvir aquilo. Ela iria falar mais, mas ele já estava se levantando e andando de volta para a porta.

O mundo à sua volta girava. Os sons não mais vibravam em seus ouvidos. Era apenas ele, o olhar no chão fixo, a tontura, e o seu coração batendo rápido.

Tarde demais.

Caminhou até a porta, sentindo algo no peito. Algo que ardia, que feria, que matava e envenenava. Algo pior que dor.

Tarde demais.

O chão havia se tornado distante, e o céu havia se tornado utopia.

Tarde demais.

Atravessou a rua a longos passos e se trancou no carro, como se pudesse fugir de tudo aquilo.

Tarde demais.

Se olhou no retrovisor. Olhos cansados, assustados, desamparados.

Tarde demais.

A sensação de ardor subiu pelo peito, rasgou sua garganta, e saiu como um gemido surdo.

— Não...

E junto a isso, as lágrimas começaram a descer. Primeiro, lentamente, depois, sem pudor algum.

Dylan chorou.

Um choro desesperado, angustiado. Amargo. Perdido. Apertou o volante, da mesma forma como seu coração era apertado.

— Então é assim? – ele mordia os lábios, que se contorciam sem controle. — É assim que tudo acaba?

A voz dele saía feia, sem tom. Às vezes falhava, às vezes gritava. E às vezes só soluçava. Sabe aquele choro genuíno, onde até o coração geme? Onde a voz falta, e as lágrimas descem em abundância? Dylan estava tendo um agora.

— Ou eu não consigo, e ela morre, ou eu consigo, e ela me deixa? Por que? Por que...? Que coisa horrível eu sou, para ter que passar por isso?

Pobre Dylan, estava começando a ficar tão confiante. Antes de parar o carro, estava até pensando onde iria com ela no fim de semana. Já havia feito uma lista mental de coisas a serem mudadas dentro dele, mas agora... por que lutar?

Se desde o começo, algo que estava conectado ao objetivo principal, que era salvar Jenny, agora já não iria mais existir. Esse algo era a própria vida dele. Ele estava se esforçando. Estava tentando continuar vivo. Estava querendo continuar tendo um motivo para lutar. Um motivo para lutar. Um motivo para se sentir completo.

Pois desde sua infância ele se sentia tão miserável. Se sentia tão vazio. Tão insatisfeito. Tão incompleto. Mas depois de Jenny... fazer ela sorrir era tão... vivificador!

— Será que eu não mereço uma segunda chance? Será que eu já não aprendi a lição? Eu quero acordar... eu quero acordar!

As lágrimas quentes abundaram, molhando todo seu rosto, peito e calça. E fora daquele carro, a cidade continuava normal.


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Notas finais do capítulo

... Não esqueçam de comentar. E por favor, não me matem. Eu também não esperava por isso.