Sob os Olhos do Napoleão escrita por Ana Barbieri


Capítulo 4
Capítulo 4




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Capítulo 4

Viagens para fora da cidade sempre foram ocasiões raras na minha vida. Na família Bergerac, elas simplesmente não existiam porque papai estava sempre trabalhando e mamãe as tratava como um luxo pelo qual não poderíamos pagar... mesmo que pudéssemos. Depois que passei a morar com Sherlock e a ajuda-lo com seus casos – à contra gosto dele – e depois que nos casamos, a sensação de ansiedade que se tem em uma estação de trem passou a ser mais familiar. Ainda assim, nunca passamos mais do que alguns dias ou horas em lugares diferentes, o que mantinha meu conhecimento acerca do mundo que me cercava restrito apenas ao que se lê em livros.

No caso do condado de Surrey não era muito diferente. A cidade era conhecida por ser o jardim da Inglaterra, mas eu não dava muita importância para essa informação até que pegamos a carroça para o lado mais afastado do centro da cidade. Dentro de um trem, por mais maravilhosa que seja, a paisagem parece ser sempre a mesma e a distância torna o ato de observar um tanto inútil. Contudo, ao som dos cacos dos cavalos contra o chão e sem metros de ferro sobre a sua cabeça para abafar os ruídos, era possível compreender o que diziam os livros. Tendo crescido na cidade estava acostumada a uma vastidão completamente diferente do que aquela com árvores entrelaçadas e pés de flores crescendo onde qualquer um quisesse...

Não me lembro de quem disse “o que são homens se comparados a rochas e montanhas?”, mas provavelmente passara por Surrey. Gostaria de saber se a sensação de abandonar a cerimônia e abraçar um pouco da selvageria do estado de natureza de Rousseau é comum a todos que saem da cidade e se chocam com algo tão diferente. O próprio vento corria diferente do que correria a Londres. Holmes pareceu perceber o meu fascínio durante o percurso, por mais que estivesse silencioso. A natureza nunca fora uma grande amiga de meu marido, por mais que se interessasse por botânica, e aquela relação tinha poucas chances de mudar. E mesmo assim, a pousada onde ficaríamos era quase um espaço idílico, eu poderia passar horas explorando os bosques do entorno.

A dona da pousada Rose Crown era uma mulher de meia idade pequenininha de voz aguda que atendia pelo nome de senhora Gardiner. Sherlock a cumprimentou com a sua polidez habitual dedicada a pessoas desconhecidas e mais tarde me confidenciaria que realmente a considerara uma excelente anfitriã, no entanto, naquele primeiro momento – quando perguntou a respeito da reserva dos quartos – a resposta dela o deixou tão desconcertado que... Bem, ela mexeu com o humor do meu marido.

─ Ah sim, senhor Holmes e senhora Holmes, o casal da suíte dos recém-casados. – foi a resposta dela. Eu reprimi o que seria uma excelente gargalhada para piorar o embaraço dele.

─A-aham, senhora Gardiner, eu a avisei pelo telegrama que... – começou Holmes tentando esconder o rubor.

─ Sim, e logo em seguida recebemos outro telegrama pedindo pela suíte de lua de mel. – explicou a mulher, confusa com a reação dele.

─ Mycroft. – murmurei segurando o braço de Holmes, fazendo com que ele soltasse um longo suspiro. – Desculpe pela mudança de ideia em cima da hora, senhora Gardiner, mas acredito que tenha sido um telegrama do meu cunhado o que a senhora recebeu depois, por isso a confusão. – me adiantei antes que Sherlock o fizesse. – Podemos ver o quarto? – perguntei libertando o braço dele para me prender ao dela.

─ Mas é claro! – respondeu a senhora Gardiner fazendo sinal para que Holmes nos seguisse.

O quarto ficava no último andar e eu duvidava que outro tivesse uma vista melhor do que aquela. A janela ocupava a parede direita inteira do quarto, com almofadados logo abaixo para que se pudesse sentar em qualquer lugar por ali para apreciar aquela obra prima. Por maior que o cômodo parecesse ser, era bastante aconchegante. Sobre uma mesinha de canto estava uma cesta recheada de mimos e um cartão assinado por Mycroft. “Considerem meu presente pela notícia, M. Holmes.” Mostrei-o a Holmes que mirou uma enorme caixa de chocolate com um sorriso de lado.

─ Devo manter a reserva? – indagou a senhora Gardiner da porta.

─ Sim, senhora Gardiner. Seria falta de educação recusar um presente tão despretensioso do meu irmão. – respondeu Holmes acenando para que ela saísse.

─ Tortinhas de especiarias da Rhodes? – indaguei sorrindo. – E aquela caixa de chocolates é da Melt, eu reconheço a arte do embrulho... Mycroft está mesmo querendo me mimar. – comentei depois de pegar um pedaço de torta com a mão.

─ De fato, ele está. – concordou Holmes me observando lamber os dedos sujos de doce. – Devo me preocupar?

─ Com Mycroft comprando doces para mim ou com os meus quilos a mais depois que eu acabar com essa cesta? – brinquei encontrando um pote com Summer pudding* da senhora Hudson.

─ Nunca reparei que tinha um fraco tão grande por doces, senhora Holmes. – observou meu marido, sorrindo.

─ Eu tento controlar o meu amor por eles desde que era criança, mas, acho que minha imunidade se foi. – expliquei terminando uma tortinha inteira. – Mas, confesso que seu irmão exagerou. – admiti deixando a cesta de lado para me despir do meu chapéu, luvas e casaco. – E... lua de mel? – comentei olhando para Holmes jocosamente.

─ Acredito ser essa a ideia da nossa querida senhoria e a do meu irmão. – concordou ele atrás de mim na penteadeira.

─ E a sua é...? – perguntei virando meu corpo para fita-lo.

─ Não posso negar que a ideia de estarmos sozinhos me agrada, minha cara. Mas, não foi o motivo inicial da minha vontade de viajar. – ele respondeu simplesmente.

─ E qual foi? – inquiri curiosa, me levantando para guardar meu casaco no armário embutido.

─ Sua saúde, é claro. Sua e do bebê, e não acho que o excesso de doces provido por Mycroft fará bem a ele. – falou meu marido, empertigando-se.

─ Não seja mau, Sherlock. – retruquei risonha. – Você só está aborrecido porque os doces não vieram de você. Além disso, ainda me custa a crer que esse foi o único motivo para termos vindo para cá, mas prefiro não pensar muito nisso. Olhe só para essa vista! – exclamei parando na frente da janela.

─ Muito me surpreende o seu fascínio, devo admitir. Logo você que sempre se manteve tão convicta quanto ao desejo de permanecer na cidade. – ponderou Sherlock se sentando de frente para mim no acolchoado abaixo da janela.

─ Você nunca me disse que Surrey era tão bonita. – defendi cruzando os braços, fazendo-o rir. – E então? Vai ficar trancado aqui o dia todo ou pretende se juntar a mim para explorar os arredores? – perguntei me sentando ao lado dele.

─ A recomendação do nosso amigo doutor foi para que eu satisfizesse todos os seus desejos, então, acho que não tenho escolha. – respondeu ele dando de ombros.

─ Lembre-me de mandar um bilhete agradecendo ao John por isso. – disse tomando o rosto dele entre as mãos para beijá-lo. – Mas, prometa não tornar as coisas fáceis demais para mim, do contrário eu as dificultarei para você! – adverti com um sorriso malicioso.

─ Jamais correria o risco de cair na sua lista negra, Bergerac. – assegurou ele se levantando com energia. – Pois muito bem, vamos.

Apesar de não estar completamente isolada, a pousada Rose Crown realmente parecia transportar um ser humano para fora da vida urbana. Toda construção pela qual passávamos era feita em acordo com os robustos carvalhos de mais de cem anos. Holmes incorporava um próprio catálogo de botânica e me apontava todos os espécimes que conhecia. Para minha surpresa, o humor dele não estava tão negro quanto eu ouvira dizer que ficaria em ambientes como aquele e eu me perguntava se não tinha a ver com a recomendação de Watson para que ele não me contradissesse. Fosse ou não fosse, o fato era que longe de Londres, as pessoas passavam por nós sem lançar olhares que dissessem “lá estão os Holmes” e éramos apenas um casal comum. Ou a fama de meu marido não atingira aquela área – pouco provável – ou eles estavam sendo realmente discretos.

Os estábulos ficavam atrás da casa, com um grande cercado para soltar os cavalos pelo menos duas vezes por dia, segundo o senhor Gardiner. Alguns hóspedes também gostavam de cavalgar pela propriedade ou ao redor do cercado, principalmente crianças. Eu nunca tinha parado para observá-las antes, corriam de um lado para o outro sempre tomando cuidado para não esbarrar por ninguém. Os pais ficavam conversando e aquele seria o momento perfeito para fazerem o que quisessem. Não contive um sorriso quando uma tentou pegar o chapéu da mão da mãe.

─ Billy! – uma voz feminina gritou atrás de nós logo depois que um garotinho de no máximo seis anos passou correndo. – Billy Finn volte já aqui! – continuou a gritar uma jovem de no máximo vinte e quatro anos, com as bochechas coradas pelo exercício. O pequeno não parecia disposto a parar, o que me fez rir.

─ Imagine você. – murmurou Holmes, sorrindo de lado.

─ Provavelmente já teríamos desenvolvido uma tática ou uma arapuca para pegá-lo. – brinquei aconchegando mais o meu braço ao dele. De repente, o garoto chamado Billy começou a fazer o caminho inverso rapidamente e acabou batendo em Holmes. Assustado, ficou encarando o pomposo detetive por tempo suficiente para sua mãe alcança-lo.

─ Peguei você! – exclamou ela tomando a mão dele. – Desculpe-me, senhor. Ele sempre fica agitado depois de comer.

─ Não se preocupe. – intervim.

─ Vai ser um excelente atleta um dia. – comentou meu marido.

─ Ah, obrigada. – agradeceu a jovem. – Agora vamos, Billy, você precisa de um banho...

─ Mas eu disse que queria montar um cavalo antes! – rebateu o menino, tentando correr mais uma vez.

─ De jeito nenhum, mocinho, olhe só o seu tamanho! Para você é banho ou os lobos vão jantá-lo!

─ Não existem lobos por aqui, eu perguntei ao senhor Gardiner! – insistiu o menino, o que fez meu marido rir enquanto nos afastávamos.

─ Rapaz bastante inteligente. – ele comentou tornando a se virar para a jovem. – Senhora...

─ Finn, Rosemary Finn. – ela respondeu sem soltar o menino.

─ Senhora Finn, parece que o seu dilema é bastante complicado. Minha esposa e eu ficaríamos encantados em ajuda-la a resolvê-lo.

─ O que...? – Rosemary começou a gaguejar, confusa.

─ Acredite, senhora Finn, resolver problemas é a nossa paixão. – disse entrando na brincadeira de meu marido sem saber onde acabaria. Holmes tornou a se aproximar da mãe e do filho, agachando para falar diretamente com Billy.

─Você não vai parar de fugir da sua mãe a menos que ela lhe deixe montar um dos cavalos, certo Billy? – indagou meu marido, calmamente.

─ Isso mesmo, senhor. Eu já sou homem, posso fazer isso. – foi a resposta do pequeno.

─ Ora, mas é claro. E a senhora não concorda com ele. – sentenciou meu marido, tornando a se levantar, as duas mãos atrás do corpo.

─ Absolutamente! Ele só tem seis anos, senhor! – retrucou ela com os olhos arregalados.

─ Muito bem, e se eu acompanha-lo na cela? – sugeriu ele, o que fez tanto a senhora Finn quanto eu arregalarmos ainda mais os olhos. – Concordaria em dividir o lugar, Billy?

─ Sim, senhor. – assentiu o menino, com os olhinhos castanhos brilhando.

─ Bem, nesse caso... eu não vejo porquê não. – concordou a mãe. Holmes me entregou sua bengala e o xale, seguindo Billy que já ia pulando pela frente. Para minha surpresa, meu marido sabia dominar o cavalo suficientemente bem para que nenhum mal viesse a acontecer a nenhum dos dois. – Seu marido é muito simpático. – comentou a senhora Finn.

─ Cheio de surpresas também. – murmurei. – E o seu filho é uma gracinha.

─ Ele não é nosso, na verdade... Meu marido e eu o adotamos depois que minha irmã tentou afoga-lo num rio em Norwood. O pai havia fugido, ela ficou desolada...

─ Mas, isso não justifica...

─ Eu sei. – concordou Rosemary de pronto. – Concordamos em não dar queixa a polícia se ela o cedesse para nós. Billy não se lembra dela, era muito pequeno quando aconteceu. Estamos indo visitar meus pais.

─ Seu marido está com vocês? – indaguei mirando Holmes tentando ensinar ao pequeno Billy a segurar as rédeas.

─ Está descansando da viagem. – respondeu ela.

Depois de findo o passeio, Billy parecia ter feito um novo amigo e agradeceu ao senhor Holmes por tê-lo ensinado a segurar as rédeas corretamente. Quando nos despedimos e Sherlock e eu continuamos a nossa caminhada, nada foi comentado sobre o assunto... naquela noite, porém...

─ Eu nunca percebi que você levava tanto jeito com crianças. – comentei soltando meu cabelo para fazer uma trança.

─ Porque Wiggins e os outros desajustados de Londres não contam como crianças. – rebateu ele, retirando os sapatos e o terno.

─ Não, são um grupo de garotos com mais de dez anos. Além disso, você paga a eles em troca de informação. Billy não tinha nenhuma informação que interessasse a você. – retruquei sem tirar os olhos do espelho.

─ Eu discordo muito, Anne. Descobrir que estamos a salvo de lobos me deixou muito aliviado.– brincou meu marido, me fazendo rir.

─ Bem, em todo caso foi... uma cena adorável. – disse virando um pouco de lado para fita-lo. – Não devia ter me preocupado, você vai se sair muito bem como pai.

─ Obrigado. – agradeceu meu marido sumindo atrás do biombo para vestir o blusão. – Vou dar essa caixa de chocolates da Melt ao pequeno Billy por ter me ajudado a convencê-la. O que acha?

─ Ah tudo bem... depois de comer todas aquelas tortinhas de especiarias, chocolate é a última coisa de que preciso agora. – respondi dando de ombros.

─ Posso fazer uma pergunta, Anne? – ele disse se aproximando da penteadeira.

─ Nunca precisou da minha permissão antes. – comentei. – Mas, sim, vá em frente. Surpreenda-me.

─ Por que precisa trançar o cabelo toda noite antes de dormir? – eu parei de amarrar a ponta dele no mesmo instante e me virei para encará-lo.

─ Desde quando o meu ritual para dormir interessa você?! – exclamei rindo, surpresa.

─ Só acho que vou desenterrar uma história. – explicou ele se sentando à janela.

─ Não uma muito boa... uma vez, quando eu tinha sete anos, eu não trancei o meu cabelo para dormir e ele acordou com um nó terrível. Minha mãe ficou um bom tempo para arrancá-lo. Aprendi a lição e nunca mais dormi com ele ao natural. – contei fazendo pouco caso. – Bem, para a cama. – disse tomando a direção do meu lado, mas fui parada por Sherlock que se curvou para beijar o meu pescoço.

─ Eu consigo pensar num motivo melhor. – murmurou ele.

Sem conter um riso abafado eu o beijei. Talvez a senhora Hudson nos conhecesse melhor do que eu imaginava.


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Notas finais do capítulo

*Summer pudding é um doce típico inglês... eu achei que seria loucura traduzir para pudim de verão, até porque estamos na primavera na fic.
É claro que eu imaginei a cena depois, MAS, não vou dividi-la com vocês crianças... sorry! Usem a imaginação. Gente... Holmes com o Billy foi uma das coisas mais fofas que eu já tive o prazer de pensar e digitar. Mycroft mimando a Anne e trollando o Holmes também! E sim... a senhora Hudson sabe das coisas, muahahahahhaa... Bem, espero que gostem! Deixem reviews lindas para que eu saiba se estão gostando ou não. O capítulo ficou grande, eu sei, mas eu simplesmente não consegui imaginar um ponto para dividi-lo, enfim! DOSE GRANDE DE SHERLOCK E ANNE PARA VOCÊS! Bjoooos!