Sarah Ah-Dom

Esperava que ele se lembrasse. Ou então iria se arrepender de tê-lo salvo, mas enfim, seria fácil mata-lo. Enquanto entravam no abrigo, repassou as imagens. O plano falhou quando Pandora resolveu entrar no armazém pela segunda vez. Falhou pela segunda vez quando Sarah ordenou que Arabella fosse buscar a outra menina. E falhou pela terceira vez quando os Carreiristas surgiram. Mas nem tudo foi uma perda, estava com Ellie, tinham suprimentos, destruíra o resto dos suprimentos, explodiram os Carreiristas e, mesmo que tenham sobrevivido, não estarão cem por cento em condições de lutar. “Talvez seja melhor atacarmos novamente e aproveitar isto.”. Mas ao olhar para Ellie e para seu rosto manchado de poeira e lágrimas, concluiu que não conseguiria convencê-la de ir novamente ao armazém.

– Não se preocupe. Sabemos que pelo menos uma das duas sobreviveu – disse, tentando consolá-la, mas Ellie apenas se mexeu desconfortável e se afastou das palavras suaves de Sarah. – Me desculpe, mas não fui eu quem mandou Pandora voltar ao armazém.

– Foi você quem fez o plano, é culpada de tudo. – Ellie respondeu, com voz manhosa. Seria possível que ela se apegasse tanto às companheiras de aliança mesmo sabendo que aquilo eram Jogos?

– Talvez seja mesmo. – concordou, com um dar de ombros indiferente.

– Como pode ser tão indiferente em relação a isto? – Ellie disse, num sussurro, encarando-a. Então se voz se alterou – Pandora e Arabella podem estar prestes a morrer e você... Você me disse que era eu ou era nós. Lembra-se? Você disse que me deixaria para morrer com elas se fosse preciso.

– E deixaria, mesmo.

– Como pode ser tão fria?! – gritou.

Sarah a encarou, quase debilmente.

– Estamos jogando. Como um tabuleiro de xadrez. Você abre mão de algumas peças para capturar outras.

Sarah não percebeu por causa da escuridão, mas assim que a bofetada pegou sua bochecha direita, sua cabeça virou para trás e ela se apoiou na parede. O frio fazia com que a pancada ardesse mais, e sabia que as marcas dos dedos de Ellie deveriam estar lá, em sua pele branca. Mas apenas sorriu.

– É o que mereço. Mas você vai me perdoar.

– Não vou.

– Vai sim. – Sarah insistiu, puxando as cobertas para cima dos ombros. – Vai, porque eu sou sua única amiga agora. E tecnicamente eu te salvei.

– Salvou? – Ellie se tornou um rosto vermelho de raiva iluminado pela luz da lua que entrava pelas frestas das paredes. – Você me fez atirar, isso sim.

Sarah então sorriu e se esticou até Ellie, que recuou, mas logo deixou que a menina a tocasse. Relutante, Sarah percebeu que Ellie também possuía afeto por ela. Ótimo, assim não me deixará. Enquanto desatava os laços da bota de Ellie, a menina congelou e então gemeu de dor. A bota, embora estivesse quase destruída, ainda estava bem presa no pé esquerdo de Ellie, e foi difícil tirá-la com cuidado. Sarah enfiou a mão no bolso do casaco e de lá tirou a pomada que usara em Sylvester. Havia apenas um pouco ainda, e ela desejava que fosse o suficiente.

– A explosão não foi em cima de nós, mas alguns objetos voaram. Você não percebeu pois estava em pânico, mas seu pé se prendeu em alguma coisa e eu tive de puxá-la. Por sorte foram apenas cortes rasos, mas mesmo assim poderá morrer se infeccionar. Quer que eu a ajude? – olhou para a menina – Eu disse que guardei isto para mim, mas já usei mais da metade. E usarei o resto em você. Estou praticamente salvando você em vez de mim, então considere isto. – e começou a espalhar gel pela pele ferida de Ellie. Ela reclamou e se contorceu, mas prendeu os lábios entre os dentes para não gritar. Por fim, quando a pomada terminou, Sarah apenas se afastou e se encostou na parede. – Boa noite.

– Boa noite... – Ellie respondeu, ainda duvidosa. E após uma longa pausa, talvez quando ela já achasse que Sarah tinha caído no sono, acrescentou – Obrigada.

º º º

Sarah despertou assim que a porta do abrigo se abriu com força e Ellie voou para abraçar quem a abria. Sarah se conteve apenas em ver quem era e concluir que tinha perdido uma ótima aliada. Ou talvez... Não, se obrigou a largar as esperanças. Mas mesmo assim... Ah, que idiota sentimental estava sendo agora. Não podia lamentar a morte dela... Não podia... Enfim, soltou um suspiro, aceitando que a amava.

– Bem vinda de volta. – disse, quando a menina entrou no abrigo e fechou a porta atrás de si.

– Obrigada, Sarinha, é bom estar viva. – Pandora sorriu.

– E Arabella? Ela está bem? – Ellie se sentou sobre as pernas.

– Não a encontrei... Deve estar presa entre os destroços, a maioria dos Carreiristas estão. Mas acho que se ela estiver bem não aconteceu nada demais. Olhe para mim, estou inteira, apenas com alguns machucados, mas creio que vão cicatrizar logo.

– Ah... Se Sarah ainda tivesse sua pomada... – Ellie disse, mas logo mudou de assunto, se lembrando que Sarah tinha escondido a pomada de todo mundo e só revelara a ela, e seria difícil explicar aquilo a Pandora se ela começasse a achar que Ellie estava escondendo este segredo junto de Sarah. – Sua foice, nós guardamos para você.

– Obrigada. – Pandora sorriu, segurando a arma. – E trouxeram as mochilas.

– Sim. – concordou Ellie, ainda muito feliz.

Sarah apenas escutou a conversa delas, desinteressada. Não podia esconder que estava feliz por Pandora ter sobrevivido, mas mesmo assim tinha de bolar um novo jeito de matar os Carreiristas. “Aqueles vagabundos sobreviveram enquanto uma de minhas aliadas morreu”, mas não disse isso em voz alta. Abrira mão de Arabella, mas conseguiu salvar Pandora, se tivesse simplesmente abandonado as duas, sem causar a explosão, os Carreiristas matariam as duas. No final fez algo bom, certo? Além disso, os Carreiristas não tinham mais seus suprimentos e muitos morreriam de infecção e desidratação.

Se eu soubesse onde outros tributos estão... Provavelmente se esconderam longe da Cornucópia por causa dos Carreiristas, mas muitos devem ter se escondido perto da praça com esperança de conseguir suprimentos extras em uma oportunidade... Mas o maior problema agora são os outros Carreiristas, Aryon e Rayseev. Rayseev não nos machucará por causa de Pandora, e ainda bem que foi ela quem sobreviveu, duvido que Arabella conseguisse seduzir os dois... Eles devem estar em algum lugar muito improvável, se for de acordo com o que eu acho que Aryon faria... Um lugar onde ninguém arriscaria entrar... Mas onde? Tudo estava abandonado e nada parecia realmente assustador ou perigoso. A não ser... O salão na frente da praça.

Era um lugar com fraca estrutura e quase caindo aos pedaços. E ela viu carcaças de cavalos amarrados num suporte para rédeas. É lá, só pode ser lá. Ninguém entraria nele, é extravagante e pode cair a qualquer momento. Deve haver cerveja e alguns petiscos, talvez suprimentos...

Concluiu o pensamento, já idealizando seu próximo passo naquela dança.